XXXVI - Saldo de contas conjugal

74 0 0
                                    

Chegou a Paris a boa nova, desacompanhada de pormenores desonrosos. Dizia apenas o feitor do morgado que a fidalga se retirara para Travanca, deixando tudo que encontrara, e levando tudo que trouxera. Lopo de Gamboa industriara o feitor na direcção que havia de dar à carta. Faltou-lhe apurar o desavergonhamento ao extremo de continuar correspondência com o marido de sua prima.

Calisto desandou para Lisboa, prevenindo Tomásia que ocultasse de Ifigénia a indecorosa cena que sua mulher fizera. Na volta de Paris, o morgado aposentou-se no palacete da brasileira. O passeio à Europa limpou-lhe do espírito as teias: é bom desempoeirar os olhos com a viração salutar dos ares de França e Itália. Lisboa pareceu a Calisto Elói terra pequena de mais para sacrifícios tamanhos. Emancipou o coração, e obedeceu-lhe.

Assistiu ainda o deputado a algumas sessões parlamentares. Floreou os seus discursos com as recordações do progresso industrial no estrangeiro. Enlevou-se nas delícias de França, e não andou por muito longe da frase arroubada do doutor Libório de Meireles na apologia dos esplendores estranhos, e lamentações das misérias da pátria.

Providenciou sobre negócios de sua casa, para que os recursos lhe não minguassem nas pompas do seu viver em Lisboa, e começou um doce viver, não mareado de mínimo dissabor. Renasceu-lhe no espírito, já livre dos sobressaltos do coração, o amor à leitura de livros modernos, em que se lhe deparavam luzes e ideias, que ele, a furto, conseguia entrever nas literaturas antigas. Avermelhava-se-lhe o rosto, quando lia o seu discurso acerca do luxo, e o outro mais tolo sobre Lucrécia Bórgia do teatro lírico. A ciência moderna flagelava-o. Tinha ele escrito nos dois primeiros meses alguns cadernos de papel, no propósito de dar à estampa um livro contra o luxo. Releu com pejo a sua obra, e ordenou a um criado que queimasse o manuscrito. O criado não o queimou. Escondeu-o sem mau intento; e alguma vez saberá o mundo literário como aqueles papéis vieram à minha mão, e ainda me são deleite e lição de sã linguagem e sãs doutrinas.

Decorreram alguns meses sem sucesso que dê capitulo dalgum interesse. Fechado o triénio da legislatura, Calisto Elói foi agraciado com o título de barão da Agra de Freimas, e carta do conselho. Sondou o ânimo de alguns influentes eleitorais de Miranda para reeleger-se pelo seu círculo. Disseram-lhe que o mestre-escola lhe hostilizava a candidatura, emparceirado com o boticário. Comprou o barão dois hábitos de Cristo que fez entregar, com os respectivos diplomas, aos dois influentes. Na volta do correio foi-lhe assegurada a eleição, que, de mais a mais, o governo apoiava.

Por esta ocasião, Brás Lobato, religada a amizade antiga, escreveu ao fidalgo uma carta em que, pouco menos de brutalmente, reproduzia os boatos correntes acerca do procedimento da Sr.a D. Teodora com o seu primo Lopo de Gamboa.

O barão experimentou um mal-estar de espécie nova, que se desvaneceu a pouco e pouco, e só mui levemente se repetiu no dia seguinte. Eu creio que o homem aprendera em Paris dois consolativos versos de Molière:

Quel mal cela fait-il? la jambe en devient ele

Plus tortue, après tout, et la taile moins bele?

Averiguei quanto em mim coube o viver interno de Ifigénia e do primo. Convinha-me descobrir amarguras lá dentro, para tirar delas o sintoma da expiação. Não descobri coisa alguma, que não fosse invejável. O mais que se me deixou ver de novidade foram duas crianças loiras, lindas, alvas de neve, e amimadas entre Ifigénia e Calisto como dois penhores de felicidade infinita.

Como ali caíram dos pombais do céu aquelas duas avezinhas, que saltitavam dos braços de um para o colo do outro, não sei. Eu digo ao leitor o que as mães de recém-nascidos dizem aos filhos mais velhos: «Vieram de França numa condessinha.»

Ouvi rosnar que no solar de Travanca também apareceu um repolhudo menino, que pelos modos, também veio num cesto de alguma parte. Se não fossem estas remessas prodigiosas de crianças, acabavam duas ilustríssimas famílias sem posteridade. A natureza é muito engenhosa.

O barão esperava que a mulher morresse, para legitimar os seus meninos, um dos quais se chamava Mem de Barbuda como seu décimo sétimo avô, e o outro Egas de Barbuda como seu decimo oitavo avô.

A baronesa, que, digamo-lo depressa, não rejeitou o título do marido, esperava que o marido se aniquilasse na perdição dos seus costumes, para também legitimar o seu Barnabé. Chamava-se Barnabé aquele gordo menino, gordo que não parecia fruto outoniço de árvore já tão esgrouvinhada e resseca! O amor é tão engenhoso como a natureza.

Conclusão

D

eixá-lo ser feliz: deixá-lo. Calisto Elói, aquele santo homem lá das serras, o anjo do fragmento paradisíaco do Portugal velho, caiu.

Caiu o anjo, e ficou simplesmente o homem, homem como quase todos os outros, e com mais algumas vantagens que o comum dos homens.

Dinheiro a rodo!

Uma prima que o preza muito!

Dois meninos que se lhe cavalgam no costado!

Saúde de ferro!

E barão!

Conjectura muita gente que ele é desgraçado, apesar da prima, do baronato, dos meninos, do dinheiro e da saúde.

Eu, como já disse, não sei realmente se lá no recesso dos arcanos domésticos há borrascas.

Na qualidade de anjo, Calisto, sem dúvida, seria mais feliz; mas, na qualidade de homem a que o reduziram as paixões, lá se vai concertando menos mal com a sua vida.

Eu, como romancista, lamento que ele não viva muitíssimo apoquentado, para poder tirar a limpo a sã moralidade deste conto.

Fica sendo, portanto, esta coisa uma novela que não há-de levar ao céu número de almas mais vantajoso que o do ano passado.

FIM

A Queda dum Anjo (1865)Onde histórias criam vida. Descubra agora