Às três horas em ponto, parou uma sege de praça, à porta de Calisto Elói de Silos.
O boleeiro subiu ao terceiro andar, perguntando se Sua Excelência estava em casa. O morgado arregaçou com o pente as mechas do cabelo, que lhe escondiam porção das escampadas fontes, apertou os cordões do rob-de-chambre na volta mais airosa da cintura, e desceu ao pátio a receber a visita.
Saltou da sege, amparando-se levemente na mão de Calisto, uma mulher daquelas que Lúcifer fazia, quando assaltava no deserto a pudicícia dos Antónios, dos Paulos, dos Pacómios e Hilariões.
Era alta e pálida: rutilavam-lhe os olhos como lustrosos azeviches à flor de um busto de marfim, algum tanto emaciado. Calisto maquinalmente levou a mão ao coração: traspassara-lho uma azagaia eléctrica.
— É muita delicadeza da parte de Vossa Excelência — disse Ifigénia.
— Oh, minha senhora!... — tartamudeou o morgado da Agra, oferecendo-lhe o braço.
— Parece — tornou ela quando iam subindo — que o meu palpite não me enganou...
— O palpite de Vossa Excelência?
— Sim... Eu contava com um cavalheiro no rigor da palavra... Delicadeza igual ao talento, qualidades que raras vezes se conformam.
Entraram à sala. O morgado conduziu Ifigénia ao sofá, e disse com voz tremida:
— A que devo eu a honra desta visita, minha senhora?
— Abreviarei a minha história e a minha pretensão. As suas horas deve-as Vossa Excelência ao bem da pátria, e indiscreta fui eu obrigando-o a estar fora do parlamento a esta hora...
— Minha senhora... que vale a pátria, em comparação da honra que Vossa Excelência me dá?! — atalhou Calisto Elói, com o coração nos lábios a sorrir.
— Sou brasileira. Pela fala me terá já conhecido...
— Sim: eu estava notando no falar de Vossa Excelência, uma graça indizível...
— Meu pai era português, capitão-de-mar-e-guerra. Foi de Portugal com D. João VI, e casou no Rio de Janeiro, com minha mãe, senhora de boa linhagem, mas de pouquíssimos recursos. Nasci em 1830, e casei em 1846 com um oficial general, do exército do imperador do Brasil. Meu marido tinha sessenta e seis anos. Emigrara em 1834, com a patente de brigadeiro dada por D. Miguel, tendo sido coronel ainda no reinado de D. João. Gonçalo Teles ofereceu a sua espada e inteligência a Pedro II, serviu bravamente o império, e subiu em postos. Eu vivia orfã de pai e mãe, na companhia de parentes maternos, que pensavam constantemente em me dar posição. Casaram-me, e, se me não fizeram feliz, deram-me pai, amigo e mestre na pessoa de Gonçalo Teles.
Há dois anos que meu marido morreu. Deixou-me pouco, porque ninguém pode granjear muito com honra, principalmente na vida militar. Pouco antes de cair enfermo, me disse que, se algum dia me faltassem recursos e benefícios do governo brasileiro, viesse a Portugal e procurasse o amparo de alguns grandes fidalgos, seus parentes que ele me nomeou um por um; e ajuntou que, se os parentes me não amparassem, pedisse ao Estado uma tença em atenção aos muitos serviços que ele fizera à pátria em trinta anos, até ao dia em que foi promovido a coronel de cavalaria.
Há três meses que cheguei a Lisboa. Procurei os parentes do meu marido. Apeei à porta de grandes palácios, e esperei largas horas em grandes salas de espera, como viúva que anda requerendo esmola. Enganaram-se.
Alguns, por mais tractos que deram à memória, já não conseguiram lembrar-se de Gonçalo Teles de Teive Ponce de Leão; outros, os mais velhos, recordavam-se do sujeito, e lastimavam que ele deixasse o serviço da pátria. Quando eu não tinha mais que lhes dizer nem eles a mim, eu levantava-me, eles levantavam-se, e despedíamo-nos cerimoniosamente. A altivez com que eu os desprezo, Sr. Barbuda, autoriza-me a dizer-lhe que os miseráveis são eles: eu tenho comigo a riqueza do meu orgulho; e, se conservo os apelidos de meu marido, é porque ele foi talvez o único de sua raça que os não desdourou...