Fecharam-se as câmaras.
Calisto Elói desamparara a sua cadeira do parlamento, quinze dias antes de encerrada a legislatura. Era opinião geral que o deputado de Miranda, desgostoso do governo e da oposição, se retirara, convicto da fraqueza de seus ombros contra o colosso, que tombava sobre o dessangrado Portugal.
As gazetas realistas indigitavam Calisto como exemplo de peito ilustre e invulnerável no marnel de febres podres em que ardiam e patinhavam miseráveis ambiciosos. Deram-lhe, à conta disso, vários nomes gregos e romanos, que lhe ajustavam tão a primor, como a verdade histórica à legenda das fabulosas virtudes de Grécia e Roma. A oposição liberal lamentava que as medidas obnóxias e híbridas do governo afugentassem da câmara um deputado como Benevides de Barbuda, a cuja alta inteligência e virtude repugnavam os desatinos da camarilha. Calisto Elói lia estas coisas nas gazetas, e dizia entre si:
— Como hei-de eu crer no que vejo escrito a respeito dos outros!...
Ao tempo que estes juízos dos publicistas eram impressos e mandados à posteridade, estava o morgado da Agra no hotel de Sintra, cuidando em alugar e trastejar com elegância britânica uma casa, entre moitas de arbustos, a qual parecia feita para a rainha das flores ou para repousar-se em fresca sesta a Aurora.
Decoradas as paredes interiores, cobertos de oleado os pavimentos, e afestoadas as paredes exteriormente com lilases e jasmineiros, baunilhas e heras de verdejante urdidura, entrou naquela casa D. Ifigénia, conduzida pelo braço de Calisto, e seguida de uma senhora de porte honesto e recomendável, que vinha a ser aquela D. Tomásia Leonor, em honra de quem as musas do defunto tenente suspiraram acrósticos. Mais atrás, iam duas criadas, e um servo fardado de casimira cor de pombo, com gola e canhões escarlates, golpeados de listas amarelas, distintivos da libré dos Ponces de Leão de Espanha.
Ifigénia foi surpreendida pelo seu gabinete de estudo, decorado de graciosas estantes e étagères, cheias de livros luxuosamente encadernados, acondicionados com tão elegante simetria que induziam muito mais à contemplação que à leitura. O restante daquela vivenda de fadas era por igual magnífico, em gosto e riqueza.
Calisto deu posse da casa a sua prima, e retirou-se ao hotel, para que ela sesteasse e se recobrasse da fadiga e calma da jornada.
Ao descair da tarde, o morgado foi bater à porta daquele éden. Ifigénia saiu-lhe ao encontro com um ramalhete de flores, e disse-lhe:
— Aqui tem as primícias do seu jardim, primo.
Calisto aspirou o aroma das flores, osculou a mão que lhas oferecera, e murmurou:
— Fechem-se os meus olhos, quando eu as puder ver sem lágrimas de gratidão.
— Lágrimas... para quê? — volveu ela com meiguice. — As lágrimas deixemo-las aos infelizes. O primo não comparte do meu contentamento? Não vê que me realizou o meu sonho com tamanho excesso de delícias, que eu não me atrevera, sequer, a imaginar? Sinto-me ditosa!... Ainda não quis pensar um instante se estas alegrias podem descair em mágoas... Estou sonhando, e não quero que me acordem. Seria crueldade dizerem-me que há víboras debaixo destas alcatifas de flores. Isto deve ser paraíso sem culpa, ignorância santa do porvir sem pomo de árvore da ciência que mo descubra. Não é assim?...
— Que falar o seu, prima! — disse com veemente, mas sufocado amor, o morgado. — Que melodias!... Eu não sei responder-lhe... Apenas sei escutá-la. Numa composição dramática de Sá de Miranda, chamada Vilhalpandos, há um epíteto dado a uma mulher, o qual eu não podia perceber, sem que o baptismo das doces lágrimas me chamassem o coração à vida.
— Sempre lágrimas!... — atalhou Ifigénia. — Então que é que diz o Sá de Miranda?
— Na boca de um amante, que encontra a sua amada, põe estas palavras: «Mulher santíssima.» Quem disse mais neste mundo? Os seus poetas franceses disseram coisa mais peregrina?... E nesta mesma cena, poucas linhas abaixo, diz o amante a Fausta: «Sabes que sonho?» Que imenso amor devia de ser o de Antonioto, que assim perguntava à vida de sua alma: «Sabes que sonho?»
— Fausta!... é um nome lindo — disse a mimosa viúva.
— Se não existisse Ifigénia... — acudiu Calisto. — Já este nome me soava docemente quando, na minha mocidade relia as angústias da filha da Agamemnão, cujo sacrifício o oráculo de Aulida demandava.
— Ah! Também eu conheço essas angústias da tragédia de Racine. Quantas vezes eu, nas minhas horas tristes, repetia com a Ifigénia do grande poeta francês, e com o espírito na alma de minha mãe, assim como ela o tinha no aflito rosto da sua:
................................................... Ah!...
Sous quel astre cruel avez-vous mis au jour
Le malheureux objet d'un si tendre amour?
— O primo — continuou ela — conhece perfeitamente Racine e Corneille?
— Perfunctoriamente. Conheço melhor Eurípedes e Séneca. Pendi sempre à lição de clássicos gregos, latinos e portugueses. Crê-se nas províncias que o saber humano está nisto. Os franceses começo a prezá-los agora, porque... não há linguagem que não soe divinamente falada por minha prima.
— Essas lisonjas — volveu ela sorrindo — aprendeu-as nos seus livros velhos, primo Calisto?
— A lisonja deixará alguma hora de ser mentira?... Eu não podia mentir-lhe, prima Ifigénia. Não!... Os meus clássicos só me ensinaram duas palavras, que eu possa dizer-lhe: MULHER SANTÍSSIMA!
Ifigénia deixou-se amorosamente beijar nos dedos.
A natureza de Sintra, incluindo os rouxinóis daquelas ramarias, poderia espantar-se: eu, não.