XXVI - E ela amava-o!

19 0 0
                                    

Era já pleno Estio. Os galãs mais ardidos de Lisboa estanciavam por Seteais, por Pisões, e por aquelas várzeas de Colares, a engarrafar lirismo para gastarem por salas nas noites de Inverno.

O primeiro deles que descortinou por entre árvores a formosa brasileira foi alvissarando aos outros a ondina incógnita, que saíra das vagas a buscar camilha de folhagem e boninas entre as fragas da serra da lua.

Entram os agitados monteiros da estranha caça a circunvagarem nas encostas e oiteirinhos que rodeavam a vivenda de Ifigénia. Uns a viam ao Sol-posto, outros ao arraiar da manhã, e outros, quando ela perpassava por entre áleas de cilindras para uma gruta fechada como concha de pérola.

A presença de Calisto Elói, confundido com os arbustos floridos da casinha misteriosa, aumentou a curiosidade dos indagadores. Uns consideraram esposa do deputado a bela esquiva; outros aventaram hipóteses mais românticas, mas menos honestas. À primeira conjectura opunha-se uma forte razão negativa: se era marido, porque vivia no hotel do Vítor? À segunda conjectura, contraditava outra razão ponderável: se era amante, que descuidado amante era ele, que se encerrava no seu quarto do hotel, durante as noites — facto averiguado minudenciosamente pelos interessados? O mistério, pelo conseguinte, a nublar-se, e as esporas da curiosidade impaciente a picar os moços ociosos, e os ricaços velhos, que espreitavam por entre a rede das sebes verdejantes, esta Susana, mais cuidadosa do que a outra, que acendia fogos nos lúbricos juízes de Israel.

Entre os mancebos, estremava-se um, que passava grandes espaços de tempo em quietismo escultural debaixo de um olmo, que sobranceava a casa de Ifigénia. Sempre que ela, à hora da maior calma, se aproximava da janela do seu gabinete a respirar o frescor do jardim, via o contemplativo sujeito de braços cruzados, e olhos fitos. Mas, assim que, ao entardecer, os arredores da casa começavam a ser frequentados, o moço, como quem se resguarda, desaparecia.

Era este sujeito aquele Vasco da Cunha, que esperava a herança de uma tia para casar com Adelaide Sarmento. Os olhos indiferentes de Ifigénia assetearam-lhe a pia alma, num daqueles dias em que ele viera de Lisboa a Sintra para assistir à novena de Santo António de Pádua, celebrada solenemente na capela de uma tia marquesa. Ou porque o ascético fidalgo andasse com o coração amolecido pelas práticas piedosas, ou porque Ifigénia se lhe figurasse algum daqueles serafins que visitavam os anacoretas da Tebaida, o certo é que não houve mais despegar-se-lhe a fantasia daquela imagem, que se interpunha entre ele e o santo filho de Martim de Bulhões.

Ifigénia atentou na pertinácia do homem, e contou ao primo Calisto, gracejando, a tempestade amorosa que lhe andava iminente na pessoa daquele sujeito. Assomaram diferentes cores ao rosto do morgado. Quisera ele dissimular o sobressalto com o sorriso; mas a rubidez sanguínea dos olhos, se o dramaturgo inglês a visse, arranjaria daquele aspeito feroz assunto para mais celerado preto.

Ifigénia lisonjeou-se daquela explosão de lavas que arquejavam na testa do homem.

Lisonjeou-se!... Pois amava-o ela?!

Não sei com que direito me fazem esta pergunta assim com uns visos de espanto! Amava-o como quem não tinha amado nunca. E para lisonjear-se de incutir ciúme não lhe fora mister amá-lo, digamo-lo de passagem, e em nome da consciência incorruptível das senhoras, cuja atenção e reparo é felicidade que eu anteponha a todas.

Amava-o, sem pensar os benefícios extremamente delicados com que ele lhe dulcificava a existência. Amava-o cativa do quer que é que primeiro prende a vontade da mulher, sem dependência dos dons da alma. Calisto Elói de Silos estava uma esbelta figura de homem. A cara compusera-se arabicamente. O bigode cerrado e negro caía-lhe sobre as clavículas. O descostume da leitura restituíra-lhe o aprumo da espinha dorsal. O ventre baixou às proporções razoáveis. No trajar, refinava em elegância e gosto, subordinando-se ao alvitre do alfaiate. Todo aquele ar de meneios, posturas e jeitos, acusava os fidalgos espíritos, resgatados da bruteza da antiga vida. Pode ser que alguma afectação lhe maculasse os modos e garbo das atitudes: sem embargo, o senhor da Agra de Freimas era homem para merecer, sem favor, a consideração de qualquer dama superciliosa na escolha.

Se isto não bastasse a ponderar no ânimo de Ifigénia, mal poderia resistir-lhe o coração aos respeitos, porventura demasiados, com que ele interpunha largo estádio entre as expansões da palavra e o mínimo vislumbre de qualquer intento menos decoroso. Casos houve em que ela o surpreendeu com os olhos marejados de lágrimas e um sorriso nos lábios, sorriso suplicante, de perdão para as lágrimas. Casos houve em que ela sentiu ferver-lhe o desejo de lhe pedir que, em vez de lágrimas, lhe desse um beijo na face, um daqueles beijos, que não tiram nada à formosura do corpo nem da alma, porque no rosto aumentam o rubor — o que é belo —; e na alma convencem a consciência da adoração — o que é sublime. Difícil coisa será achar a virtude que se furta a estes conflitos! Virtude, que se esconde e encolhe para não ser alcançada pela flecha de um beijo, às vezes acontece que, por muito esquivar-se, apouca-se, vapora-se, safa-se e ninguém sabe como ela se foi, nem como é possível que um vaso fechado de essências aromáticas apareça vazio sem ter sido quebrado. Este caso, naturalmente, anda explicado na estética. Eu hei-de ver o que é isto quando tiver vagar.

Vamos já rodeando por longe dos ciúmes de Calisto Elói. Revertamos ao assunto.

Ifigénia tomou-lhe amorosamente da mão e disse-lhe:

— Meu primo, eu não quero ler em sua alma uma página que se não assemelhe às outras.

— Pois que é, prima?... — perguntou ele enleado e tremente.

— Eu não quero ter de justificar-me — tornou ela balbuciante.

— Justificar-se....

— Sim. Duas palavras que bastem a definir-me. Se eu perder a sua amizade, quero morrer. Veja quanto eu farei para lha merecer.

Calisto dobrou o joelho, e beijou a mão, que lhe estreitava calorosamente, a dele.

Seguiu-se silêncio de alguns minutos.

Se houvesse elos na cadeia da felicidade humana, o último, a máxima perfeição, devia prender com os gozos celestiais. Esse último elo não o há: se existisse, o morgado, naquele instante, perderia a consciência desta vida, e entraria na exaltação beatífica dos anjos.

A fortuna dos corações que desbordam da felicidade no amor, deve ser aquela Fortuna parva, à qual Sérvio Túlio erigiu templos. Tito Lívio, a meu ver, toma o parva no sentido de baixa ou pequena: eu traduzo latamente «fortuna lorpa»; porque não conheço, quem, nuns lances análogos ao de Calisto, mantivesse a inteireza de sua razão e espíritos. É que o morgado não disse coisa que mereça escritura, ele que tão donosamente, em supremos apertos, face a face do doutor Libório, tirou da veia copiosa repuxos de eloquência!

No dia seguinte, quando as aves abraseadas do sol das onze horas, se embrenhavam nos tufos das ramagens, lá estava Vasco da Cunha debaixo da árvore.

À mesma hora, Calisto Elói circuitava a parede da mata em que se emboscava o religioso mancebo, saltava de manso, e quase a súbitas passava rente dele ombro a ombro.

Vasco não conheceu o homem que o fitava com sobranceria. Três meses antes se havia encontrado em casa do desembargador Sarmento com um Calisto, que não tinha que ver com aquele homem.

Sorriu-se o morgado, e disse-lhe:

— Costuma Vossa Excelência entremear as suas novenas com a oração mental nas brenhas e florestas, à imitação dos antigos padres? Ou está pedindo aos deuses infernais que lhe levem a alma da tia, e lhe deixem o vínculo da mesma para poder maridar-se com a Sr.a D. Adelaide Sarmento?

Alumiou-se Vasco de uns longes de suspeita, e cuidou estar ouvindo a voz mesurada e sonora de Calisto.

— O senhor... — disse ele.

— Eu, quê? — atalhou o morgado à suspensão do moço.

— Com que direito vem aqui incomodar-me? — tornou o mordomo das três virtudes cardeais.

— Não o incomodo, nem me incomodo. Dir-lhe-ei muito de relance que mora ali naquela casa uma prima de um Barbuda, e acrescentarei que tal dama não faz novenas a santo nenhum das particulares devoções de Vossa Excelência. Se o Sr. Vasco da Cunha aqui voltar amanhã, continuaremos a palestra.

Vasco não voltou.

A Queda dum Anjo (1865)Onde histórias criam vida. Descubra agora