Entremos no coração de Calisto Elói.
Cuidava o leitor que não tínhamos que entender com aquela entranha do homem? Estou que a julgaram inviolável às suspeitas da história em acto de tanto alcance na biografia deste personagem!
Já se disse que orçava pelos quarenta e quatro o morgado. Naquela idade, se há fibras virginais no coração, eram as dele.
Casara com sua prima Teodora, menina estimabilíssima por virtudes, mas mais feia do que pede a razão que seja uma senhora honesta. A noiva deixou-se ir pela mão do pai à casa do esposo. Não ia alegre nem triste. Tanto se lhe dava casar com o primo Calisto como com o primo Leonardo. Logo que o pai lhe consentiu que levasse para Caçarelhos umas três dúzias de galinhas e parrecos, que ela criara, não lhe ficou na casa natal coisa para sérias saudades.
Encontrou marido ao pintar. Coraram ambos ao mesmo tempo, quando o bulício das festas nupciais se aquietou e a mãe do noivo lhes disse: «Meninos, cada mocho a seu soito», frase ameníssima que em pouco e depressa exprime a muita poesia de toda aquela família.
Calisto, ao outro dia da primeira noite de esposo, por volta das sete horas da manhã, já estava a ler a Viagem à Terra Santa, por frei Pantaleão de Aveiro; e, à mesma hora, a noiva andava de pé sobre um catre de pau-preto rendilhado, com uma vassoira de giesta, a limpar teias de aranha do tecto.
Almoçaram, e foram visitar o pai e o sogro, em cuja casa jantaram. Durante a visita, a Sr.a D. Teodora esteve a ensinar uma criada a engomar as camisas do pai; e Calisto, como descobrisse num armário um tratado de alveitaria de 1610, levou-o de um fôlego, e tirou apontamentos, visto que o sogro se tratava por aquela medicina, diminuindo as doses das drogas. Não sei quem lhe dissera a ele que o Sr. D. João IV, nas doenças graves, se medicava com um veterinário.
Ora, deste começo de amores infiram Vossas Excelências o restante daquela doce vida!
Teodora tomou a cargo os cuidados domésticos de sua sogra, e muitos do trato com caseiros, vendo que o marido, tirante as horas de comer, não saía da livraria onde a mulher, como amável sombra, o ia visitar, e olhando com desdém sobre os in-fólios, dizia-lhe:
— Ó homem, ainda não acabaste de ler estes missais?
— Isto não são missais, rapariga. Não estejas a profanar os meus clássicos.
A esposa não entendia isto, e pedia-lhe que lhe lesse pela vigésima vez as Sete Partidas de D. Pedro. E o bom marido lia-lhe pela vigésima vez as Sete Partidas, porque estavam escritas em português de lei. Vida para invejar! Paraíso em que Deus se esqueceu de mandar o anjo do montante de fogo vedar a entrada!
Discorreram anos, sem que o morgado tivesse de perguntar à sua consciência a explicação do mínimo alvoroto de sangue na presença de mulher estranha. Andava por feiras, quando a mulher o mandava comprar utensílios agrícolas; pernoitava por diversas casas da província, famosas pela beleza das donas, e contava-lhes casos miríficos de suas leituras, se acontecia não achar livro velho, que lhe deliciasse o serão.
Da maior, e talvez única dor literária da sua vida, fui eu causa. Calisto, pernoitando em não sei que solar de damas dadas à leitura amena, pediu algum livro, e deram-lhe um romance meu. Consta-me que deixou o volume com as margens anotadas de galicismos e manchas de toda a casta. Imaginem quantas punhaladas eu dei naquele lusitaníssimo coração!
Afora este incidente, as boninas da vida campestre floriam imarcescíveis para o homem de bem, raro exemplo de compostura; salvo quando lhe beliscavam a estirpe que, então, como já disse, retaliava descaridosamente, e revelava a quebra contingente de todo o homem imperfeito de sua natureza. Isto criou-lhe inimigos; mas detraidores de sua fidelidade marital nenhum tentou infamar-lhe o bom nome. Das virtudes conjugais de Teodora até me treme a pena somente de escrever isto para encarecê-las! Duvide-se da pureza das onze mil virgens, antes de maliciar suspeitas daquela matrona, em tudo romana, do puro estofo das Cornélias, Pôncias e Árrias.
Com esta pureza de vida entrara em Lisboa o morgado da Agra.
Aí está um como Daniel à beira da fornalha. Aí está o homem-anjo! Quarenta e quatro anos imaculados! Um coração que, se algumas imagens tem gravadas, são as dos frontispícios aparatosos de alguma edição princeps, de algum Elzevir anotado por Grenóbio.