XVIII - Vai cair o anjo!

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A respeito do último discurso de Calisto Elói, as gazetas governamentais estamparam que a sala da representação nacional nunca tinha sido testemunha de insolências de tamanha rudeza e tão audaciosa ignorância. Os jornais da oposição liberal disseram que o representante de Miranda, à parte as demasias escolares do seu discurso, dera uma útil, bem que severíssima lição, aos meninos que jogueteiam com o país, indo ao santuário das leis bailar em acrobatismos de linguagem, que seriam irrisórios em palestra de estudantes de selecta segunda.

Em casa do desembargador é que o morgado deslumbrou o renome dos fulminadores de catilinárias e filípicas. A numerosa roda do fidalgo legitimista encarava com venerabundo assombro em Calisto Elói. As raças godas, que o não conheciam, concorreram a dar-lhe os emboras a casa de Sarmento. Sangue dos Afonsos e Joões não se dedignava de inventar em Calisto um primo. Todos queriam ter nas artérias sangue de Barbudas. E ele, o genealógico por excelência, modestamente contraditava o empenho de alguns parentes honorários; bem que, de si para si, e para alguns amigos, se ufanava de não carecer de tal parentela para igualar-se barba por barba com os mais antigos titulares em limpeza de sangue.

As expressões laudatórias que mais calaram no ânimo de Calisto Elói disse-as Adelaide. A menina, confessando sua surpresa no parlamento, foi sincera. Não o julgava tão denodado e destemido em face de gente nova, que parecia acovardar-se diante da coragem de um provinciano algum tanto achamboado. Disse ela à mana Catarina que a fronte de Calisto parecia alumiada, e no todo das feições e ademanes se revelava certa nobreza e garbo, que o faziam parecer mais novo.

E era assim. Os quarenta e quatro anos do morgado, vividos na aldeia, e no resguardo da biblioteca, viçavam ainda frescura de mocidade. A reforma do trajar fora grande parte nisto. A casaca antiga, e o restante da roupa trazida de Miranda, tolhiam-lhe a elegância das posturas e movimentos, nos primeiros discursos.

Cícero e Demóstenes, se entrassem de fraque, no fórum ou na ágora, desdouravam os mais luzentes relevos de suas esculturais orações. A estatuária do orador pende grandemente do alfaiate. Vistam Casal Ribeiro ou Latino Coelho, Tomás Ribeiro ou Rebelo da Silva, Vieira de Castro ou Fontes, de casaca de briche e gravata sepulcral da mandíbula inferior: hão-de ver que as pérolas desabotoadas daquelas bocas de oiro se transformam em granizo glacial no coração dos ouvintes.

— Eu estava encantada de ouvi-lo, Sr. Barbuda — disse Adelaide. — Tem uma voz muito sã e argentina. Gostei de ver a presença de espírito de Vossa Excelência, quando se levantou aquela algazarra contra as suas ironias. Lembrou-me então que prazer sentiria sua senhora, se o escutasse!

— Minha prima Teodora decerto me não atendia — observou o morgado. — Enquanto eu falasse, estaria ela pensando no governo da casa, e na calacice dos criados. Eu já disse a Vossa Excelência que minha prima Teodora entendeu no sumo rigor da expressão a palavra «casamento». «Casamento» deriva de «casa». Senhora de casa e para casa é que ela é. E eu assim a aceitei e assim a prezo.

— Mas o coração... — atalhou Adelaide.

— O coração, minha senhora, ninguém lá nos disse que era necessário à felicidade doméstica. Tanto sabia eu o que era coração, como aquela criancinha, que sua Excelentíssima mana tem nos braços, sabe o que é sensação do fogo. Ora veja como ela está estendendo as mãozinhas inexperientes para a chama das velas... Se as tocar, que dor não sentirá ela?

— Então — volveu a filha do magistrado —, hei-de crer que Vossa Excelência ainda ignora o que seja coração... o que seja amor?

— Se ignoro o que seja... — balbuciou Calisto. — Sabe Vossa Excelência — prosseguiu ele, reanimado, após longa pausa —, sabe Vossa Excelência que no paraíso existiu uma celestial ignorância, até ao momento em que na árvore da ciência tocou Eva?

— Sim... E Adão também tocou...

— Depois, minha senhora. Mas não discutamos a primazia: tocaram ambos, e eu compreendo que deviam ambos pecar. Maior crime seria a resistência a Eva que a Deus. Perdoe-me o céu a blasfémia!... A que hei-de eu comparar nos nossos tempos, e neste instante, a árvore da ciência, da ciência do coração?!... Comparo-a a Vossa Excelência.

— A mim?! Que ideia!

— A Vossa Excelência. Eu contemplei-a, e... aprendi!... Hoje sei o que é coração: agora começo a estudar a maneira de o matar ao passo que ele vai nascendo.

Calisto levantou-se, agradecendo à Providência a chegada de um ancião respeitável que se aproximava dele a cortejá-lo.

Adelaide quedou pensativa. Reflectiu, e considerou-se molestada e mescabada no respeito que devia às suas virtudes um homem casado.

Receosa de ajuizar mal, por equívoca inteligência do que ouvira, buscou azo de provocar explicações de Calisto Elói. Como o ensejo lhe não saísse de molde, consultou a irmã, referindo-lhe o suposto galanteio do morgado. D. Catarina dissuadiu-a de pedir esclarecimentos, aconselhando-a a simular que o não entendera.

Pouco antes de terminada a partida, um moço legitimista recitou um poemeto dedicado ao nascimento do terceiro filho do senhor D. Miguel de Bragança. Perguntou alguém a Calisto se conversava alguma hora com as musas, ou se, à maneira de Cícero, escrevia o desgracioso:

Ó fortunatam natam, me consule, Romam.

Disse o morgado relanceando os olhos a Adelaide, que o seu primeiro parto métrico apenas tinha de vida quarenta e oito horas, e tão aleijado saíra, que ele se envergonhava de o oferecer ao apadrinhamento de pessoas autorizadas.

Instaram damas e cavalheiros pela amostra da obra prima, que certamente o era, atenta a modéstia do poeta.

— São versos — disse ele — que se poderiam mostrar aos quinze anos, e que seriam derisão e lástima aos quarenta e quatro.

Objectaram as damas argumentando que o homem de quarenta e quatro anos devia receber as inspirações dos vinte, porque no vigor da idade é que o coração fulgura em toda a sua luz.

Trejeitou Calisto uns esgares de satisfação ridícula. Eram os precursores de alguma enorme necedade.

Embora resistisse à exposição da sua estreada musa, não se conteve que, despedindo-se de cada uma das senhoras da casa, disse, à puridade, a D. Adelaide:

— Vossa Excelência verá as trovas que só Deus viu, e ninguém mais verá no mundo.

D. Adelaide ficou embaçada. Seria agravar as meninas de dezoito anos, e educadas como a filha do desembargador, e amantes como elas de um comprometido esposo, estar eu aqui a definir a entranhada zanga que lhe fez no espírito dela o despropósito de Calisto. A estima afectuosa que lhe ela ganhara, por amor daquela cavalheirosa acção, por onde a paz doméstica se restaurara, não teve força de rebater o tédio e o ódio do tom misterioso do provinciano.

Enquanto ela confiava da irmã o despeito e aversão com que a deixaram as últimas palavras de Calisto Elói, estava ele no seu gabinete retocando e piorando aquelas linhas rimadas, a cuja rebentação assistiu o leitor com piedosa tristeza.


A Queda dum Anjo (1865)Onde histórias criam vida. Descubra agora