Ó coração sensível! Ó pecadora Catarina, que vais agora expiar o teu crime na cruz da saudade! Aquele Calisto, cuidando que te salvava, matou-te!
Não foi tanto quanto diz a apóstrofe; mas, de feito, Catarina, quando recebeu de Bruno de Mascarenhas uma carta saturada de sãs doutrinas e reflexões, como as faria S. Francisco de Sales a Madame du Chantal, entendeu de si para consigo que devia morrer de despeito e raiva. O fugitivo escrevia-lhe pouco antes de embarcar-se. Não referia o diálogo com Calisto; dava porém como certa uma tempestade a prumo das cabeças deles delinquentes. «Irei, dizia ele, morrer longe da mulher que amo, para lhe não sacrificar os créditos e os filhos. Se souberes que eu morri, recompensa-me esta virtude rara, dizendo em tua consciência que eu te amei, como já ninguém ama sobre a face da terra.»
Depois, seguiam-se na carta os conselhos ajustados à felicidade da vida. Expunha as consequências funestas das paixões. E terminava dizendo que as lágrimas o não deixavam continuar.
Que dama resistiria, depois disto, à morte?
Encerrou-se a filha do desembargador, no intento de providenciar em artigo de morte, e entrouxar para a eternidade.
Nestas cogitações a surpreendeu a mana Adelaide, mostrando-lhe uma carta de um certo Vasco da Cunha, que escrevia desde muito, e honestamente à menina solteira, no propósito de casamento. Este Vasco, de boa linhagem, conhecia Bruno, e via com desprazer os amores da dama, que havia de ser sua cunhada. Eventualmente soubera ele do embarque do Mascarenhas. Pessoas que o viram a bordo, referiram-lhe que o sujeito, perguntado acerca dos amores de Catarina Malafaia, respondera fatuamente que se ia escapando a um aguaceiro de escândalos, com que ele não queria brincar, porque a mulher, entusiasta e apaixonada mais que o necessário, seria capaz de o fazer assumir as funções de marido não canónico.
Pouco mais ou menos, era daquela amável contextura o período que D. Adelaide leu a sua irmã lagrimosa.
D. Catarina levantou-se com fidalgos brios, chamou pelos filhos, abraçou-se neles, e disse à irmã:
— Estou bem! Deus me perdoará, rogado por estes inocentes. Meu amado marido, como eu te quero hoje! Como eu sinto o teu coração a consolar-me nestes remorsos!...
Ora, eu não tenho a caridade de crer nos remorsos de D. Catarina; mas piamente acredito que a mulher se estava sentindo mais amiga do marido, fineza que ele devia agradecer-lhe com as suas mais melífluas carícias.
E veio logo a suceder que o esposo, surpreendido pela extremosa ternura da senhora, estranhou o caso, e requereu brandamente a explicação da improvisa mudança. Catarina, imaginosa como todas as pessoas que amam muito, explicou, entre alegre e lagrimante, que afinal se convencera de que o seu Duarte a não traía: suspeita de tanta força para ela, que pudera empeçonhar, com as serpes do ciúme, a felicidade de duas almas, ligadas por paixão.
Duarte ficou lisonjeado e satisfeito. Seguiu-se confessar ele também as suas vagas desconfianças quanto à lealdade da esposa. Aqui é que foi a cena, digna de mais conspícuo narrador. A ofendida senhora pregou os olhos no firmamento de madeira, espreitou por ele o azul do empíreo, com a dupla vista que dá a angústia, e murmurou:
— Céus! Que injustiça!
Era dor que lhe encolhia os folipos das lágrimas. Não arranjou a chorar. Caiu de golpe na poltrona de mais capacidade e flacidez para quedas daquela natureza! E, tapando a face com as mãos alvíssimas, balbuciou, desentalando-se dos suspiros:
— Oh! Que infeliz! Que infeliz!
Duarte inclinou-se com os lábios ao colo de Catarina, e disse afectuosamente:
— Perdoemos um ao outro. Estes ciúmes recíprocos dizem que nos amávamos por igual.
Não queria a magoada senhora perdoar; porém, como lhe faltasse fôlego de despejo para sustentar a cena, envergonhou-se de si mesma, e teve dó do marido, a quem ela, e pai, e irmã, deviam a decência, estado, representação e sociabilidade com as primeiras famílias de Lisboa.
Instantes foram estes de consciência reabilitada, que puderam muito com ela no decurso da vida, e prometem ser-lhe amparo até ao fim.
É-me pequeno o peito para o prazer que sinto, relatando este caso, que é único dos meus apontamentos, em igualdade de circunstâncias. Ainda há gente boa e de muitíssima virtude: isto é que é verdade.
O fautor deste sucesso, com que a gente se consola, foi, sem debate, Calisto Elói, aquele anjo!
Com que delícias de alma contemplava ele a restaurada ventura daqueles casados, e o júbilo do desembargador! E os agradecimentos do ancião, que bem lhe faziam ao peito honrado! E os afectos de Catarina, que de todo ignorava ter sido ele o agente do seu sossego; porém muito lhe queria pelo tom grosseiro, mas paternal com que lhe admoestara a culpa!
Afora o desembargador, uma pessoa única sabia que o morgado tinha sido o conciliador engenhoso da paz da família: era Adelaide.
Esta menina vivera receosa de que o seu Vasco, rapaz timbroso, a não quisesse esposar, fazendo-a cúmplice dos desvios da irmã. Agora, já mais esperançada na realização do casamento, via com olhos agradecidos o bom provinciano, e atendia-o com os desvelos de extremosa amiga. A isto a incitava o pai, que frequentes vezes lhe dizia:
— Se este honrado fidalgo fosse solteiro, e pudesses amá-lo, filha, que prazer o nosso se...
— Oh! Papá... — atalhava quase sempre a menina. — Pois eu havia de casar com ele?...
— Porque não? Honra, riqueza, ciência e nobreza... que mais querias tu, filha?— perguntava o pai.
Adelaide sorria-se, e murmurava de si consigo:
— Ainda bem que ele é casado, senão eu tinha que ver com a jarreta da criatura!...
No entanto, a reconhecida senhora, no auge da sua gratidão, jogava a sueca emparceirada com Calisto de Barbuda, e ensinou-lhe a jogar as damas, prenda em que o morgado revelou uma inabilidade que excede todo o encarecimento.