O morgado previu o seguimento funesto da desabrida recepção e despedida que deu ao mestre-escola.
A sua felicidade era daquelas que o possuidor receia, a cada hora, perder; e o desacordo com sua mulher podia redundar-lhe em dissabores grandíssimos. De todos, o de que ele mais se temia, — o dissabor por excelência monstruoso — era a vinda de Teodora a Sintra, a isso aguilhoada por o professor de primeiras letras, azedado pelo desprezo. Envergonhava-se ele, além de muitas outras vergonhas, que a morgada de Travanca lhe aparecesse em Sintra com a cintura do vestido sobre o estômago, com as ancas desprovidas de balão, com a cara encavernada num chapéu de 1832, que lá chamavam barretina, de imensas orelhas de palha amarelada pelo rodar dos anos. Era-lhe aviltante o caso aos olhos de toda a gente, e especialmente aos de Ifigénia.
Para prevenir esta e outras calamidades, saiu Calisto, caminho de Caçarelhos, quatro dias depois de Brás Lobato, e a fim de encurtar tempo, embarcou no vapor, e do Porto para cima acelerou as jornadas, repousando poucas horas. Contava ele antecipar-se ao mestre-escola. Chegou tarde; mas o coração da esposa estava ainda aberto.
— Tua senhora desmaiou de alegria, primo — disse-lhe Lopo de Gamboa. — Estava chorando comigo quando ouvimos a guizalhada da liteira. Muito te quer a nossa santa prima! Boas as fizeste por lá... Olha que o patife do mestre-escola veio contar tudo!
— Já chegou?!
— Hoje às cinco da tarde.
— Que disse?
— Contou que tens lá em Sintra uma mulher teúda e manteúda...
— Que infame embusteiro! — clamou o fidalgo. — Chama-me um lacaio, que lhe vou mandar cortar as carnes com um tagante!
— Merecia-o! Mas quem deu cá o lacaio? É coisa que ainda cá não vi!
Assim dialogando, entraram à sala em que D. Teodora estava ainda muitíssimo entalada de soluços.
— Então que é isto, Teodora?! — perguntou brandamente Calisto, pondo-lhe as pontas dos dedos na face.
Ergueu-se ela arrebatada, e pendurou-se-lhe ao pescoço exclamando:
— Meu Calisto, meu Calisto, cuidei que te não tornava a enxergar!
— És tola, prima! — disse ele, assaz incomodado com o apertão do abraço. — Pois eu não havia de tornar?! Quem te meteu essa na cabeça?
Teodora entrou a encarar no homem muito de fito, e rompeu num choro desfeito.
— Que tens tu? — perguntou ele.
— Como tu estás mudado! Não me pareces o meu homem!... Corta essas barbas; por alma de tua mãe, corta-me essas barbas, que pareces o diabo, Deus me perdoe!...
Calisto sorriu-se, com um profundo tédio de sua mulher. Naquele instante alanceou-o mortalmente a saudade de Ifigénia. Aquela casa de Caçarelhos e a mulher pareceram-lhe um retalho do inferno, daquele inferno alagado e frio de que fala o padre António Vieira.
Começou a passear na sala, e a despedir baforadas de ansiada respiração do peito. A mulher não lhe despregava os olhos das barbas, e de vez em quando arrancava um ai das entranhas.
— A falar verdade — observou Lopo de Gamboa — estás um homem completamente diferente! E o caso é que pareces muito mais novo! Já nem andas corcovado, nem tens aquela proeminência da barriga. Olha os ares de Lisboa o que fazem, primo Barbuda!
Calisto exprimia o seu nojo de tudo aquilo, sorrindo-se. Tirou da algibeira um charuto, e acendeu um fósforo. Eis que a mulher rompeu em mais desentoada choradeira, dizendo:
— O meu homem a fumar!... Que feitiçaria te fizeram, Calisto!...
— De maneira — disse o morgado vencido pela impaciência —, de maneira que me recebes com choradeiras, e observações estúpidas, Teodora! Ora acabemos com esta feia comédia, e manda-me preparar jantar, que preciso comer e dormir.
Saiu Teodora cabisbaixa da saleta, e Lopo de Gamboa despediu-se, pedindo-lhe que tolerasse com generosidade as tolices de sua prima, que tudo aquilo nela era rudeza e bondade do coração.
— Bem sei, bem sei... — disse Calisto Elói, e recolheu-se à sua biblioteca, a principiar uma carta, que dizia:
Minha querida Ifigénia.
Não te asseguro três horas da minha vida, se me disserem que hei-de aqui viver três dias. Não é enojo, é pior, é horror o que me faz tudo isto! Deixa-me pedir coragem ao teu retrato. Ó imagem da filha do meu coração, salva-me, resgata-me, arranca-me deste túmulo! Ó consoladora desta agonia sem nome, vale-me, tem mão nesta vida, que me foge...»
Entrou Teodora esbofada de dar ordens, de cortar o presunto, de ir à cesta dos ovos, de andar à pilha da mais gorda galinha.
Correu a abraçar-se outra vez nele com mais possante entusiasmo, enquanto o marido com um braço a cingia ao peito, e com o outro escondia o retrato.
— Meu Calistinho — suspirava a esposa palpitante —, meu amado marido, não tornes mais para Lisboa, eu não te deixo sair mais de tua casa!...
— Que remédio senão ir, Teodora!... — disse ele. — Sou obrigado por esta desgraçada posição de deputado a assistir mais algum tempo na capital.
— Não é isso, não é isso! — clamou ela, saindo-lhe dos braços, que a largaram facilmente. — Bem sei o que é...
— Sabes o quê? — interrompeu com violentada placidez o marido. — Sabes as calúnias que te veio contar o Brás, o vilão que se vingou como canalha por lhe eu não alcançar o hábito de Cristo! É o que faltava! Pendurar a imagem da cruz num peito cheio de tanta porcaria!... Então que te disse ele?...
— Que tinhas lá outra... e que te viu a passear com ela.
— Viu-me a passear com uma nossa parenta, viúva de um general. Quem disse ao javardo que esta senhora era minha amante? Hei-de perguntar-lho diante de ti. Manda-o chamar à minha presença.
— Agora mando! Que o leve a breca! — disse Teodora com alegre aspecto. — Como tu vieste, foi o que eu quis; agora, pilhei-te cá, e não te deixo ir embora. Mas tu hás-de cortar estas barbas, sim? E não estejas a fumar por isso, que me fazes embrulhar a estômago, não?
O tom e gesto caricioso, com que ela dizia isto, não moveu medianamente o esposo. Impava de zangado e aborrecido dos lânguidos amorinhos com que a meiga senhora se lhe quebrava langorosamente nos braços.
— Eu preciso escrever umas cartas que ainda hoje hão-de ir para Miranda — disse ele, afastando brandamente a esposa. — Vai-te embora, e logo conversaremos.
Teodora estava num daqueles elevados graus de amoroso sentimento, em que a mulher menos esperta conhece que é desamada. Repelida daquele modo, ainda as lágrimas lhe vidraram os olhos; mas o despeito secou-as.
— Não me podes ver à tua beira! — disse ela com altiveza. — Vê-se mesmo na tua cara que me aborreces! Ainda agora chegaste, e já estás a falar na ida para Lisboa. Escusavas então de cá vir. Mal haja a hora em que saíste desta casa. Já não tenho marido!...
Neste ponto, não pôde represar as lágrimas. Acocorou-se no chão a chorar, com a cara metida entre os joelhos.
Calisto saltou da cadeira num empuxão de raiva, e passou à sala imediata, gesticulando com frenéticos sacões de braços.
— Que diabo vim eu aqui fazer? — dizia entre si o desesperado.
O demónio da expiação já andava às cavaleiras do homem. A saudade de Ifigénia era uma serpente de fogo que lhe abafava os respiradouros das goelas.