Para leitores entendidos na perversidade humana, a carta de Lopo de Gamboa é uma refinada e suja bargantaria, estudada e escrita com um despejo não vulgar em bacharéis daqueles sítios. Aquele homem, se tivesse nascido em terras onde há a centralização dos biltres, morria com um nome para lembrança duradoura. Assim, nascido naquelas serras, onde não apegou ainda romancista de medrança, se o eu não transplantar para a corja dos birbantes das minhas novelas, o homem escorrega lá da serra no inferno, sem que a execração pública o cubra de maldições.
Repulso do coração da prima, que incessantemente se estava entregando à protecção dos santos, mudou o plano das insídias, incitando-a a procurar o marido em Lisboa, como último desengano e final afronta. Convinha-lhe que a pobre mulher afogasse em lágrimas as últimas e mais entranhadas raízes da sua pureza.
Em companhia de um velho inexperiente e crédulo, o honrado Paulo de Figueiroa, que nunca saíra das ruínas solarengas de Travanca, meteu-se D. Teodora a caminho de Lisboa. Deu um jeito às abas do chapéu que se entortara na canastra esquecida, lavou as fitas e a palha com chá da Índia, arejou o bafio do vestido de veludo que embolorecera no Inverno passado, e deste jeito entrajada se encaixotou na liteira, defronte do tio, que tinha a sinceridade de achar sua sobrinha muito bonita, vestida assim à moderna.
Nas diferentes vilas que atravessou até ao Porto, D. Teodora prendeu o espanto público. Muita gente, aliás urbana, ria-se a cair. Onde parasse a liteira, o gentio fazia-lhe roda, e queria saber donde vinha aquela criatura incomparável. Teodora, à entrada de Penafiel, a pedido respeitoso do liteireiro, tirou o chapéu e cobriu a cabeça com um lencinho de três pontas. Ainda assim, o vestido de veludo cor de ginja dava nos olhos. Os padres de Penafiel, quando avistaram a liteira, cuidaram um momento que vinha ali alguma preeminência eclesiástica, como cardeal, ou coisa assim. A desarmonia do lencinho com o vestido ofendia o belo ideal, e a simetria estética das damas da terra, as quais ao verem-na saltar da liteira para o pátio da estalagem com o chapéu na mão, semelhante a um cabaz de cavacas das Caldas, soltaram grande estralada de riso. As meninas da estalagem, condoídas do aspecto doentio e honesto da viandante, informaram-se da qualidade da pessoa, e romperam no louvável excesso de se insinuarem na fidalga, para lhe pedirem que se vestisse de outra maneira.
Acedeu sem repugnância Teodora. As risadas francas do povo haviam-na amolecido. O velho também votou pela reforma dos trajos. E, como ali pernoitasse e deliberasse esperar o dia seguinte, deu tempo a que a provessem de chapéu razoável, e vestido com o competente paletó de seda, nas quais coisas colaboraram todas as modistas da terra. Regenerada pelo vestido, parecia outra. As meninas pentearam-lhe os opulentos e negros cabelos à Stuart, segundo elas disseram. Descobriram-lhe a fronte bem talhada. Deram-lhe umas lições de pisar e arregaçar-se, para a desacostumarem de ir com os pés sobre a orla do vestido, ou mostrar os calcanhares na andadura. O merinaque foi um golpe certeiro no desaire da fidalga de Travanca. Ela mesma, olhando em si, dizia no secreto da sua consciência ilustrada em Penafiel:
— Eu assim estou melhor, a falar verdade!
O tio Paulo torcia um pouco o nariz ao merinaque, dizendo:
— Pareces-me uma boneca de roda de fogo! Tens aleijados os quadris, salvo tal lugar! Mas se é moda, deixa-te ir assim, menina, até Lisboa; porém, quando entrares em casa, manda espetar esses arcos num pau, para espantar os pardais da sementeira.
Como o velho fidalgo desejasse ver o mar, resolveram ir para Lisboa no vapor. Teodora, quando principiou a enjoar, pediu os sacramentos; animada, porém, com as risadas de outras senhoras, convenceu-se de que não era mortal a sua aflição.
Hospedaram-se no cais do Sodré. D. Teodora, não obstante a ansiedade em que ia de avistar-se com o marido, cuidou em reparar as forças com um dormir daqueles que a Providência concede às consciências puras e às pessoas que desembarcam enjoadas.