Em Outubro daquele ano, a frisa dezasseis do teatro de S. Carlos expôs uma cara desconhecida de todos, excepto de alguns raros rapazes da nata social que a tinham visto de relance, entre as aves e flores de Sintra.
Era Ifigénia, a formosa do novo-mundo, que uns chamavam a feição genuína da Circássia, outros a romana herdeira do perfil correcto das Faustinas e Fúlvias; e os mais circunscreviam a sua admiração à mulher dispensando-se de lhe esquadrinhar o tipo.
De feito, Ifigénia era beleza das que somente se assemelham propriamente a si.
Ao lado desta mulher estava um homem, cuja nobre e fidalga presença abonava e encarecia a qualidade da dama: era o morgado da Agra de Freimas, Benevides de Barbuda.
A opinião pública da plateia e camarotes estava ou duvidosa ou indecisa. Aqui dizia-se que Ifigénia era parenta do cavalheiro, além desdouravam-lhe a posição, sem contudo os rostos se voltarem corridos do escândalo.
Ifigénia, à saída do teatro, entrava numa luxuosa caleche tirada por hanoverianos soberbos. Calisto Elói apertava a mão da dama, e entrava noutra sege. A caleche parava na Rua de S. João dos Bem Casados, no pátio de um palacete; o morgado apeava da sege em frente do hotel inglês, a Buenos Aires.
As pesquisas cincavam nesta diversidade de paragens. Sabia-se que o deputado frequentava o palacete a horas em que se visitam senhoras cerimoniosamente. Sabia-se que morava ali a viúva do general Ponce de Leão, o qual morrera no serviço do Brasil. A pouco e pouco, a maledicência ajuntou à admiração o respeito.
Uns parentes do general, porventura filhos daqueles que se entrelembravam de terem sido procurados por uma viúva, levaram os seus cumprimentos ao palacete de S. João dos Bem Casados. Ifigénia fez-lhes saber pelo seu escudeiro que lhes agradecia a delicadeza e a honra do parentesco. E mais nada.
Ora, Calisto Elói, sem embargo da seriedade e gentil compostura de sua pessoa, não podia de todo poupar-se ao riso de certas pessoas da plateia. Estava ali gente que o ouvira fulminar no parlamento o teatro lírico, e nomeadamente a Lucrécia Bórgia. Estava quem se lembrasse daquelas calças de polainas assertoadas de madrepérola, e do farfalhoso colete, e das pantalonas axadrezadas do aljubeta Nunes & filhos. O doutor Libório, do Porto, principalmente, ainda estomagado da reprimenda, saboreava a vingança, indigitando-o à hilaridade dos camaradas parelhos em nascimento, asnidade e estilo.
Numa noite, Ifigénia reparou na atenção e nos sorrisos de um grupo. Ao voltar a vista para seu primo, encontrou os olhos dele, com uma tempestade sobranceira, que era o avincado profundo da testa. Andava por ali naquela fronte sangue de Trás-os-Montes, sangue de Barbudas.
Calisto estremara o doutor Libório de Meireles, entre a roda dos peraltas, que bebiam da garrafeira do paternal tendeiro, prodigalizada ao filho das esperanças suas e da pátria.
Num intervalo, saiu Calisto Elói do camarote, e como não encontrasse no pórtico nem nos corredores o risonho deputado portuense, entrou à plateia.
Avizinhou-se de Libório, que o encarou com semblante de cor incerta.
— O colega por aqui? — disse o doutor. — Reminiscências me não acodem de havê-lo visto na plateia!
Calisto, sem o fitar no rosto, respondeu:
— Venho ver as dimensões das suas orelhas.
— Como assim!... — balbuciou Libório.
— Tenciono puxar-lhas até à boca, no propósito de tapar com elas um riso alvar que vossa mercê tem, e que me incomoda grandemente. Veja lá se a operação lhe convém aqui ou lá fora.
— Não compreendo a razão do insulto! — disse Libório.
— Será lá fora — concluiu Calisto e saiu.
A gente, que rodeava o doutor portuense, comportou-se bem: cada qual, dizia de si para consigo, que, se o caso fosse com ele, o provinciano engoliria a injúria com uma bala; assim, como não era com eles o caso, Calisto mereceu a Deus a felicidade de não ser varado de balas.
O que passa como certo é que Libório nunca mais desfranziu um riso voltado para a frisa de Ifigénia.
Numa dessas noites, estava na frisa fronteira à de Calisto a família Sarmento. Adelaide não despregava o óculo de Ifigénia, salvo quando Catarina lho tirava da mão, para lho assestar.
Calisto exultava em delícias incomparáveis. Era a vingança, a carapinhada dos deuses num meio-dia de Julho, a vingança de amador menoscabado. Este cuidar que se vingam, mulheres e homens, é inépcia de marca maior, a que não houve esquivar-se aquele sujeito de condição muito ajuizada, se o confrontamos com outros, a quem o amor aleijou de todo em todo.
Reparou Calisto que no camarote de Duarte Malafaia, marido de D. Catarina Sarmento, entrara um sujeito que lhe não era desconhecido. Examinou-o com o binóculo, e reconhecera aquele D. Bruno de Mascarenhas, a quem ele se apresentara na qualidade de anjo Custódio de D. Catarina. Sorriu-se o morgado para dentro porque lhe já não ficava bem indignar-se por dentro nem por fora. A esposa de Duarte, segundo parecia, raro relance de olhos desfechava sobre o perturbador da sua consciência de outro tempo. O morgado entendeu que a esposa regenerada reincidira na velha culpa. Enganara-se.
Permanecia ainda o salutar efeito da façanha moralizadora de Calisto Elói. Bruno era odioso a Catarina: o anjo advogado dos maridos a estava sempre lustrando com as lágrimas do arrependimento. Não sei se o morgado da Agra levará ao desconto do juízo final duas acções que pesem tanto como esta na balança.
Passaram dois meses sem que D. Teodora escrevesse ao marido. Embargada no leito pela enfermidade, que a pôs em começos de tísica, a pobre senhora, esteada no amparo da piedade, fazia penosas promessas a santos da sua particular devoção, pedindo-lhes a amizade e restituição do marido. Desta feita, pelo que a gente está vendo, os santos não levaram a melhor da legião de demónios que ressaltam dos olhos de uma brasileira galante. Não obstante, a protecção dos privados do céu valeu-lhe o levantar-se da cama, e convalescer-se com leite de jumenta e óleo de fígado de bacalhau. Mas o coração estava ainda, e cada vez mais encancerado; a saudade crescia consoante a ausência e desprezo do marido se aumentava.
Por ventura, aqueles santos tão rogados estavam em volta dela a defendê-la das tentações do primo Lopo. Já Teodora o repulsava desabridamente, quando se via no risco de ser abalada em sua fidelidade. A pervicácia, porém, do astuto negociador de seus vilíssimos interesses, servidos por infames lágrimas e exclamações compungentes, alguma vez a surpreendeu quase desprotegida do escudo celestial.
Mas — honra à virtude que cai mais tarde que o costume! — honra à virtude de Teodora, que lhe punha sempre diante dos olhos, nas conjunturas perigosas, a imagem do marido, e de sua mãe e avós, todas esposas imaculadas!
Passemos a esponja por sobre Penélopes e Lucrécias.
Começou Calisto a receber cartas de sua mulher. Algumas, que abriu, não pôde digeri-las. Como a dor sincera não costuma ser eloquente, nem a ortografia da filha do boticário exprimia com certeza as singelas lástimas de Teodora, o cru marido queimava as cartas para desmemória eterna.