Capítulo 2

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— Sei que tipo de irmãos são esses...  

Arg! Por que em todos os lugares tem que haver pessoas desprezíveis desse jeito? Claro que eu não vou sair contando para o Daniel o que essa Andressa andou falando para mim; não sou esse tipo de pessoa. Sou aquele tipo de mulher completamente independente dos outros e que resolve seus próprios problemas. Não daquele tipo frágil que sai delatando qualquer probleminha que aparece.  

Passei minha manhã analisando os documentos que Andressa me trouxe. Uns contratos, nada de muito extraordinário. Haviam alguns errinhos poucos mas, em geral, estava tudo bem organizado. O tempo passou sem que eu nem percebesse e, quando dei por mim, já era meio dia. Corri para desligar o meu novo notebook executivo, tranquei os contratos na gaveta — porque eu não queria correr o risco de ser sabotada — e saí. 

Logo depois de trancar a sala, dei de cara com um Daniel muito pontual olhando para mim. 

—  Está dois minutos atrasada, ruivinha. 

Daniel me chamava assim desde sempre. Ruivinha. Isso porque eu sou ruiva, lógico. Mas principalmente porque faço jus à cor do meu cabelo. Me esquento fácil, me irrito fácil e explodo mais fácil ainda.  

— E você tem TOC, alguém já lhe disse isso? — brinquei. 

—  Só você, umas mil vezes. Por dia — ele completou, rindo. — Como foi a sua manhã? Muito chata analisando contratos? 

— Ah, eu não ligo, você sabe. Mas eu prefiro algo mais ativo mesmo. Não que eu esteja reclamando, longe de mim! — já me expliquei logo.

— Relaxa, mulher, eu sei que não está reclamando — Daniel me tranquilizou.

Pegamos o elevador junto com outros funcionários. Um homem mais velho, na casa dos quarenta, outro um pouco mais jovem e duas mulheres na casa dos trinta que pareciam amigas. Todos eles saudaram Daniel e olharam para mim com curiosidade, provavelmente por causa dos braços do meu chefe ao redor dos meus ombros. Daniel não dá muita liberdade para qualquer um; eu mesma demorei para conquistar a confiança dele. Portanto, sei que estranharam a proximidade entre nós. Para não dar bandeira, fingi que não reparei no clima que pairou. 

Saímos do elevador e meu amigo foi direto para o estacionamento de "gente importante". Óbvio que Daniel não ia guardar o seu bebê, um Audi R8, no estacionamento comum, com o perigo de ser roubado, arranhado etc. Fomos para o estacionamento exclusivo de funcionários importantes, que ficava no subsolo do prédio da empresa.  

Daniel destravou o carro e falou: 

— Hey, baby, sentiu minha falta? 

Ao ouvir isso, eu revirei os olhos. Meu amigo é um galinha solteiro e, como ele gosta de ressaltar, o único relacionamento sério que ele terá é exclusivamente com seu amado carro, apelidado de Héstia — uma deusa grega protetora da família.  

Ele não diz, mas sei que tal nome está relacionado ao seu irmão mais novo, Lucas, que serviu ao exército alguns anos atrás e foi recrutado para a missão do Haiti. Hoje em dia Lucas está fazendo uma missão na África — é um homem muito caridoso e doa a sua vida para ajudar aos outros. Não tem nada de vaidoso como meu melhor amigo aqui. São como água e vinho. Lucas puxou, em personalidade, à sua mãe, Helena, uma mulher incrivelmente doce e bondosa. Já Daniel puxou ao seu pai, um homem de negócios vaidoso, mas igualmente bondoso. 

Dani abriu a porta do carro para mim — como sempre, um cavalheiro — e deu a volta para o seu lado. Entrou no carro, colocou o cinto, ligou o som e ouvi os primeiros acordes de alguma música do Matchbox 20.  

— Então, ruivinha, falou com os seus pais ultimamente? 

— Ah, Dani, sabe que não? A última vez que falei com eles foi no fim da semana passada. Até então estava tudo bem. Mas creio que ainda esteja, porque notícia ruim chega rápido, né? Confesso que estou morrendo de saudades dos meus paizinhos. Hora ou outra vou ter que ir fazer uma visita. 

— Também estou com saudade dos seus pais. Da próxima vez que for visitá-los, vou junto contigo. 

Meus pais são praticamente pais de Daniel também, assim como os pais dele são praticamente meus. Com tantos anos de convivência, acabamos nos tornando parte da família um do outro. Há alguns meses não vejo meus "velhos" e não posso negar que estou com uma saudade enorme deles. Mas com o aluguel, contas, gasolina e o meu antigo status de desempregada, as economias não me permitiam ir visitá-los. Agora, trabalhando na Wolter Segurity, será muito mais fácil ir para Barbacena e ainda deixar uma ajudinha para meus pais. 

Depois de conversarmos amenidades durante o caminho, chegamos na loja da Dona Joana, a senhora que faz a melhor lasanha que eu já comi na minha vida. E o melhor: pronta, só para esquentar.  

— Pode deixar que eu desço, viu, Dani? Eu já pedi para a Dona Joana separar uma lasanha pra gente, então vou só pegar e pagar bem rapidinho. 

— Tudo bem, mas dessa vez sou eu quem pago. Você já pagou na última, lembra? 

Não gosto que o Daniel fique pagando as coisas para mim, pois me sinto dependente. Sou meio feminista nesse ponto. Mas, ele estava certo, o nosso combinado é que cada um pague uma vez, e da última fui eu e, portanto, não tive como contestar. 

— Okay, tem razão — respondi, de mau grado. 

Ele me deu o dinheiro e eu desci. A lojinha de massa caseira é antiga e compro nela desde que cheguei a Belo Horizonte, pois é ao lado do antigo apartamentinho em que eu morava. As massas são simplesmente divinas e, o melhor, muito em conta. O meu prato preferido é a lasanha de frango. Dona Joana, a dona e cozinheira, é uma senhora muito simpática também, o que me atraiu em primeiro lugar.  

Entrei na lojinha já cumprimentando a conhecida atendente: 

— Boa tarde, Maria! A lasanha que eu encomendei já pronta? 

— Boa tarde, Duda! Está sim e a Dona Joana fez questão de caprichar no recheio do jeito que você gosta. 

— Nhami, que delícia! Já estou com água na boca! Manda um beijão para a Dona Joana, viu? E fala que qualquer sábado desses eu vou passar por aí pra gente conversar. Aqui, o dinheiro — entreguei. 

— Pode deixar que eu falo sim, ruiva! Bom almoço! 

— Obrigada, Maria! 

Voltei ao carro com a lasanha que estava com um cheiro divino. Assim que entrei na "Héstia", Daniel comentou: 

— Ah, que cheiro é esse delicioso? Já me deixou faminto! 

— Nem me fale! — eu disse. — Só tomei um iogurte hoje. 

— Duda, Duda... Já falei para a senhorita que essa sua mania de não tomar café da manhã ainda vai te dar problemas... 

— Ih, Dani, nem vem discutir isso de novo que nós dois já sabemos como essa discussão termina. 

— Ta bom! Não está mais aqui quem falou — brincou. 

Chegamos ao prédio chique de Daniel nem dez minutos depois. Descemos, pegamos o elevador e, finalmente, entramos no apartamento. Já fui direto para a cozinha, peguei uma forma, coloquei a lasanha dentro e liguei o forno. Enquanto isso, meu amigo pegou os pratos, copos e talheres e foi arrumando a mesa. Estávamos tão acostumados a isso que trabalhávamos em uma sincronia impressionante.  

Enquanto a lasanha esquentava, sentamos no sofá em frente à TV ligada, na qual passava algum filme de ação.  Depois de algum tempo olhando para a televisão sem realmente assistir a nada, perguntei: 

— E, então? Que trabalho é esse que você tinha falado? 

Vida dupla: uma identidade secretaOnde histórias criam vida. Descubra agora