Passei os últimos oito anos da minha vida sem saber onde eu estou e como faço para chegar em casa. Perdi as contas de quantas vezes chorei sozinha antes de Karla chegar.
Ele me trouxe para cá, inicialmente, para me fazer de empregada. Cozinhei, lavei e passei desde o primeiro momento. Não houve enganação da parte dele, só me surpreendi com seu modo de agir no primeiro mês. Talvez isso se deva pelo fato de Karla ter chego logo em seguida. Devo a ela tudo o que eu sei hoje.
Me levantei já pegando o diário da minha mãe encima da pequena mesa e me direcionando até a porta. Golias gosta que eu o esteja esperando já pronta para a leitura quando chega do trabalho.
– Onde você vai? - Karla atravessou a porta com a aparência cansada. Não é para menos, desde que entrei na reta final da gravidez ela não me deixa fazer mais que um arroz e lavar uma louça. Preciso lembrar de fazer o mesmo por ela.
– Vou esperar para ler. - balancei o projeto de livro em minha mão.
– Não quer que eu vá dessa vez? - se aproximou mais de mim. – Você voltou abalada demais ontem. Não quero te ver chorando daquele jeito de novo.
– Está tudo bem, Karla. É que ontem eu li o último dia. De novo...
– E quando tudo começa outra vez você não se sente triste?
Analisei, olhando para baixo, sua pergunta. O que eu sinto quando começo tudo de novo?
– Não, não me sinto triste. - ela me olhou fixamente em um pedido mudo para que eu desse uma resposta melhor. – Começar de novo me da esperança. Sinto que, sempre que eu começo novamente, minha família inicia mais uma busca para me achar.
Karla engoliu o nada. Ela não me fala, mas tem certeza que meus pais já não procuram mais por mim. Eu posso ver em seus olhos que ela pensa que eles, simplesmente, aceitaram que eu morri ou algo assim. Talvez ela tenha razão.
Olhei para cima e Karla logo me imitou, o relógio velho marcava que eu já estava perdendo a hora de assumir meu posto ao lado da banheira e que Victor precisava de um banho para, então, se deitar e dormir antes que sua mãe fosse chamada por Golias até seu quarto.
Sai do quarto subindo as escadas que dava até a sala principal da casa e admirei a porta de entrada por alguns rápidos segundos antes de seguir meu caminho até o banheiro.
Durante esses oito anos Karla quis fugir inúmeras vezes mas eu sempre tive medo. O que faríamos se acaso conseguíssemos chegar ao lado de fora? Correríamos dos dois cachorros gigantes até que eles nos alcançassem e nos dilacerassem vivas?
Ou, quem sabe, se sobrevivessemos aos cães, nos veríamos perdidas no meio da mata, sem saber para onde ir. Isso seria burrice.
Ouvi a porta que dava acesso às escadas para o andar de cima sendo destrancada e me movi, o mais rápido que pude, em direção ao banheiro me posicionando ao lado da grande banheira.
– Levante o rosto. - rosnou assim que adentrou o lugar. – Vamos, leia para mim.
Respirei fundo iniciando, mais uma vez um novo dia da vida que eu tinha. Quando ainda era viva.
– "Um dia qualquer de agosto de 2014.
Parecia ser só mais uma bela manhã de"– Esse não. - sorriu de lado. – Quero o dia 20 de fevereiro de 2023.
Folheei apressada até a data pedida buscando me livrar o mais rápido que eu podia disso.
Em meio a algumas folhas pendendo por apenas uma argola encontrei o dia tão esperado. Meu aniversário de cinco anos.
Em um suspiro eu iniciei.
– "20 de fevereiro de 2023.
O tão esperado dia chegou, filha. Estávamos todos animados para a festa.Sara me acordou animada às sete da manhã, é incrível como ela sempre fica super animada nessa data. A enxurrada de "Mamãe é hoje" e "levanta, eu preciso provar o meu vestido" não permitiu que eu fechasse os meus olhos por mais cinco minutos.
O vestido estava, simplesmente, perfeito. Meu desenho foi seguido cem por cento à risca, esvoaçante, rosa e cheio de brilho. Como Sara queria.
Me vi completamente imersa no mundo das princesas durante todo o dia. Me dividi entre correr atrás de garantir a organização do salão e dizer que Sara precisava ter paciência e esperar até o entardecer para que a festa, enfim, começasse. Acho que se eu não tivesse dito a ela que a festa seria realmente grande, ela não teria estado tão ansiosa durante toda a semana.
Shawn estava radiante durante todo o dia, passou a tarde na piscina com ela tentando impedi-la de sair de lá para me perguntar, mais uma vez, qual o horário que ela deveria tomar banho, já que não queria se atrasar para o "grande evento".
Chegamos no local já nos deparando com uma das coisas mais lindas que eu já vi em todos esses anos. A carruagem da Cinderela estava bem ali, na nossa frente.
Seguimos a noite regados a presentes e fotos. Chorei quando ela foi coroada antes do parabéns e morri pelo ataque de ciúmes de Shawn quando, o pequeno príncipe entrou para dançar com ela.
Quando Sara nos pediu isso, Shawn achou que fosse uma brincadeira e não levou a sério, talvez, se eu tivesse feito como ele, ela nem tivesse se importado mas, como eu amei a ideia, deixei que ela chamasse seu melhor amigo para ser seu par logo após a coroação. Ele estava tão lindo quanto ela.
Por um momento, me peguei imaginando como seria se, no futuro, Miguel e Sara se apaixonassem, casassem, tivessem filhos e vivessem felizes para o resto de suas vidas. Meu erro? Contar para Shawn! Ele surtou com uma hipótese quase impossível se de concretizar. Sei que você não está vendo, mas eu estou revirando os olhos nesse exato momento.
Enfim, filha, eu desejo tudo de mais lindo, maravilhoso e perfeito para a sua vida. Saiba que eu sempre vou estar aqui para te apoiar e fazer a diferença no mundo ao seu lado. Mamãe te ama e promete te apoiar e ajudar a passar por cima do ciúme bobo do seu pai quando tiver seu primeiro namorado. Com amor, mamãe.
C.C."
Eu me lembro desse dia. Me lembro da sensação de felicidade que tomou conta de mim quando eu vi o grande salão decorado, da emoção quando recebi a linda coroa em minha cabeça e do frio na barriga que se instalou imediatamente quando Miguel me estendeu a mão. Nós éramos melhores amigos e, apesar da idade, sinto que eu era apaixonada nele naquela época. Em todas as épocas, na verdade.
Talvez, se eu não estivesse aqui, presa, eu ainda fosse apaixonada por ele... Mas só talvez.
Ergui meu rosto à espera da ordem de retirada, meus pés doíam mas não tanto quanto minhas costas, e, a única coisa que eu queria agora era me deitar e dormir.
Golias abriu um sorriso quase sincero, se eu não o conhecesse poderia achar que ele estava mesmo feliz com a minha lembrança agradável. Mas eu o conheço, sei que ele so fica feliz com as lembranças tristes.
Sua voz saiu rouca e presunçosa quando ele me liberou para sair mas, antes que eu pudesse atravessar a porta, me parou.
– Aliás, feliz aniversário, Cerejinha.
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Apenas mais uma história clichê sobre o que é amar...
FanfictionMemórias de uma história que tinha tudo para dar certo...