23 - Duas Rainhas

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Sophie ficou observando enquanto Agatha se distanciava na trilha, cada vez
menor, até virar um pontinho no horizonte.
"Sophie, só vou levar trinta segundos!"
"Absolutamente não!", Sophie virou-se para Tedros. "Eu não vou ficar
olhando você urinar em plena luz dia."
"Por que você não pode ficar de costas?"
"E ficar ouvindo? Como se eu estivesse dentro de um estábulo de cavalos?"
"Sophie, se eu não fizer xixi, eu vou explodir, e não posso deixá-la sozinha
numa colina, mesmo com as fadas Gillies vigiando", Tedros sentiu o cheiro da
torta de frango e se remexeu, desconfortável dentro das calças. "Imagine se um
dos zumbis aparecer?"
"Então, eu vou me defender, muito obrigada. Além disso, não consigo pensar
em nada mais desprezível do que você se balançando de um lado para o outro,
segurando as calças como se estivesse fazendo algum tipo de dança
interpretativa", concluiu Sophie, estendendo a mão para pegar o agrião, só para
vê-lo ser magicamente devorado. "Essas fadas chegam num instante. Agora,
ande logo, antes que o Hort chegue aqui e o desafie para um duelo."
Tedros ficou parado, enquanto Sophie mordiscava uma folha de agrião.
"Não coma a torta inteira", ele avisou.
Sophie sorriu timidamente e ficou vendo o príncipe disparar colina abaixo.
Além dos topos das colinas, ela avistou parte de Gavaldon, atrás de um campo
protetor, e seu sorriso murchou.
Eu preciso destruí-lo logo, pensou ela.
Antigos heróis estavam morrendo por sua causa, as histórias do Bem estavam
se transformando em histórias do Mal por sua causa, os Leitores corriam perigo
por sua causa. Ao esmagar a aliança, aqui e agora, com a Excalibur, o conto de
fadas terminaria antes que Rafal conseguisse chegar a Gavaldon — o livro de
história seria fechado, o Bem e o Mal voltariam a ser como antes.

 Ao esmagar a aliança, aqui e agora, com a Excalibur, o conto defadas terminaria antes que Rafal conseguisse chegar a Gavaldon — o livro dehistória seria fechado, o Bem e o Mal voltariam a ser como antes

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Sophie beliscava a torta, nervosamente. Ela não podia fazer isso.
Primeiro, ela precisava daquele beijo. Depois que Tedros a beijasse, ele
sentiria algo nos lábios dos dois, como uma resposta para uma charada: que eles
foram feitos um para o outro desde o dia em que fixaram o olhar na cerimônia
de Boas-Vindas.
Mas se destruísse a aliança sem o beijo, ela não teria nada que garantisse seu
Felizes Para Sempre. Não importa quantas vidas de heróis estavam em jogo, ela
não poderia jogar seu próprio final feliz para salvar o deles. Martírio soava Bem
na teoria, mas, na realidade, era algo sem sentido, idealista e insano. Mesmo com
todo o Bem em perigo, ninguém em juízo perfeito estaria disposto a sacrificar
seu verdadeiro amor...
Agatha sim, pensou Sophie. Agatha faria o que fosse preciso para salvar o
Bem, exatamente como fizera, de coração, ao deixar que sua melhor amiga e
Tedros tivessem uma chance do Felizes Para Sempre, arriscando o seu próprio
final feliz... Enquanto Sophie havia tentado matar Agatha pela mesma afronta.
Eu sou do Mal. Sophie engoliu em seco. Decididamente do Mal. Então, o que
a fazia pensar que ela poderia terminar com o maior príncipe do Bem?
Ela afagou o nome de Tedros em sua pele, sob a aliança fria de metal. Seu
coração havia jurado que ele era seu verdadeiro amor. E os corações não
mentem.
"Eu estava brincando quanto a você comer a torta", ela ouviu uma voz de
menino atrás dela. "Mas acho que eu não deveria ter brincado."
Sophie percebeu que tinha comido quase tudo.
"É fome de estresse", resmungou ela, erguendo os olhos para Tedros, com o
sol por trás, deixando seu rosto na sombra e o vento. Ele puxou a Excalibur da
cintura e o brilho da lâmina prateada quase cegou Sophie.
"Um golpe e nós cuidaremos de todos os nossos estresses. Só isso que
precisamos de você, Sophie. Um golpe forte."
Sophie começou a remexer os pratos do piquenique, colocando todas as
sobras num só prato.
"É melhor a gente ir andando. A essa altura, os outros dois devem estar bem
longe."
"Eu não entendo as garotas", disse Tedros, sentando-se sobre uma porção de
tulipas murchas. "Você deixa Rafal, mas não quer destruir a aliança. Você
contrata o Hort como seu guarda-costas, mas quer viajar comigo. Você age
como se vivesse de ar e folhas, mas saqueia uma torta inteira em vinte segundos.
Não que eu esteja reclamando. Muitas garotas Sempre não comem na frente de
meninos porque acham que isso faz com que elas pareçam, eu não sei...
humanas? Pode acreditar. Todo menino prefere ter uma garota que come."
"Então é por isso que você e a Agatha se dão bem. Já vi aquela menina
devorar linguiça frita no alho", disse Sophie, lembrando-se de como ela
perturbara Agatha, durante horas depois, por conta de seu hálito. "Ah, Agatha...",
sussurrou ela. "Tola e maravilhosa Agatha."
Ela ergueu os olhos e viu Tedros se retrair, como se o nome de Agatha tivesse
lhe dado uma pontada. O príncipe percebeu que ela o observava e desviou o
olhar.
"Você está certa. É melhor que a gente não demore até que o doninha
chegue."
"Ele vai estar com fome, não é?", disse Sophie, juntando tulipas mortas num
montinho e colocando o prato com as sobras em cima, para que Hort não
deixasse de vê-lo. "Ele é realmente um menino legal. Só quer me proteger para
que eu não me magoe, mesmo que não me ame mais. Ele abriu seu coração
comigo no banho a vapor, lá na escola. Bem, depois de tudo que eu já fiz pra ele,
garantir que ele tenha almoço é o mínimo que eu posso fazer", ela limpou os
joelhos e se levantou, e viu Tedros parado no caminho com um sorriso malicioso.
"O que foi?".
"Quem poderia imaginar que você tem sentimentos?", disse ele, admirado, e
seguiu escalando na frente.
Sophie corou de surpresa.
Talvez, só um pinguinho do Bem, no fim das contas, ela pensou.
"E quem diria que você tomou banho a vapor com o Hort?", ela ainda ouviu
Tedros dizer.
Graças aos Céus que pelo menos dessa vez eu estou com os calçados
apropriados, pensou Sophie, seguindo pela trilha com suas botas cor-de-rosa.
Eles estavam caminhando sem parar há seis horas, só com pequenos
intervalos para encher as latas de água e descansar os joelhos exaustos. (Sophie
fez algumas poses de ioga para se alongar, até que viu Tedros olhando pasmo e
concluiu que era melhor praticar ioga sozinha.) Agora já estava escuro e só dava
para enxergar a trilha com as brasas mágicas de luz branca que Merlin havia
deixado pelo caminho, como farelos de pão. Antes de partirem da Sede da Liga,
o mago lhes avisara que quando chegassem ao último farelo da trilha, esse era o
sinal para que acampassem para passar a noite.
Desde Gillikin, a trilha os conduzira para fora da fortaleza dos Sempre e para
dentro do território dos Nunca — em Ravenbow, durante a tarde, com seus rios
escaldantes de sangue e castelos de ossos; depois, Magalae, no pôr do sol, com
suas pontes de cordas sobre fossos cheios de crocodilos, e Drupathi, sob o luar,
uma terra de laranjeiras e frutas cor de mamão, completamente deslocada em
meio à sinistra Terra do Nunca e a Floresta Moribunda; até que Sophie avistara as
dunas de moscas mortas, embaixo das árvores, e percebeu que tudo ali era
nocivo.
Por todo o caminho, ao atravessarem a Terra do Nunca, Sophie via pares de
olhos piscando ao longo da trilha, amarelos, vermelhos e verdes, acompanhados
de rugidos e chiados vindos da vegetação rasteira. Apesar disso, nada os atacara
e ela achava que, contanto que eles permanecessem dentro dos limites da luz de
Merlin, estariam fora de perigo.
"Ora, por favor, ninguém tem medo da mágica do velho mago", Tedros
fungou. "Eles temem um príncipe robusto com a espada de seu pai. Até que o
Mal de fato consiga selar um Infelizes Para Sempre, eles sabem que o Bem
ainda ganha, sempre."
"Diga isso aos vilões zumbis mortos-vivos que nada têm a perder", retrucou
Sophie. "Você sabe que casa segura é essa para onde o Merlin está nos levando?"
"Não faço a menor ideia. Se você quer minha opinião, lugar nenhum na
Floresta é seguro."
"E quanto àquele céu roxo estranho onde nós nos escondemos durante a
fuga?"
"O Celestium? É somente um lugar para o Merlin pensar. O ar lá em cima é
rarefeito demais para se respirar por mais de algumas horas. Mesmo que
houvesse uma casa segura em algum lugar da Floresta, o Exército Sinistro
poderia facilmente nos encontrar. Tem que ser um lugar que ninguém conhece.
Um lugar onde o Merlin já guardou segredos", Tedros parou e exalou frustrado.
"Você não vai mesmo me contar por que ainda está usando essa aliança?"
"O seu aniversário é em algumas semanas, não é?", Sophie deu meia volta,
espertamente. "Não se admira que você esteja sendo tão cuidadoso quanto à a
escolha de uma princesa."
Tedros hesitou, como se estivesse incerto quanto a prosseguir com o primeiro
assunto ou com o novo.
"Estou pronto para ser rei", ele disse, finalmente prosseguindo. "Agora já
estou órfão há anos, portanto não sou um daqueles meninos mimados, cheios de
proteção, que se colocam em primeiro lugar, antes de seu povo, como fazem
alguns reis jovens. Não que as pessoas estejam esperando muita coisa. Camelot
está jogada às traças desde que meu pai morreu. O Conselho dele deveria
administrar o reino até que eu completasse 16 anos, mas, em vez disso, eles estão
deixando o povo passar fome, executando dissidentes e pilhando o ouro. Não
importa. Vou jogá-los na masmorra no meu primeiro dia de reinado", ele olhou
para Sophie. "Nós vamos reerguer o reino de meu pai e deixá-lo como novo
outra vez."
Um choque cinético percorreu o corpo de Sophie como um raio.
"Nós vamos?"
Será que havia escapulido? Ou foi deliberado? Ela viu Tedros olhando, como
se esperasse que ela prosseguisse a conversa que ele havia iniciado.
"Ah, eu tenho certeza de que nós... você... sim, será glorioso, não?", Sophie
murmurou. "Mas, e quanto à sua mãe? Ano passado você disse que havia uma
sentença de morte..."
"Nem penso nisso", Tedros respondeu. "De qualquer maneira, a essa altura,
ela já deve estar morta. Ninguém nunca mais viu minha mãe nem Lancelot
depois da noite em que eles fugiram."
"Ao assumir a coroa, um dos seus deveres é executar sua mãe. Isso é algo
em que você nem pensa?", Sophie ergueu as sobrancelhas.
"Olha, minha mãe é uma desertora fria e egoísta, mas ela não é uma vilã",
disse Tedros, soprando os fios de cabelos louros que lhe caíam sobre a testa. "O
último lugar para onde ela voltaria seria Camelot, sabendo que seu filho teria que
matá-la", o rosto dele ficou sombrio. "Mas isso não impede que ela invada os
meus sonhos."
Sophie sabia o que era ser assombrada por uma mãe que havia partido para
sempre.
"Como ela era? Lindíssima, eu imagino."
"Na verdade não. Isso que é estranho. Meu pai era muito mais bonito,
dinâmico e divertido. Minha mãe era magricela, ansiosa e introvertida. Só
ganhava vida quando falava de livros ou estava cuidando dos animais. Não tenho
ideia do motivo por que meu pai, ou qualquer outro homem, a paparicava", disse
Tedros, fazendo uma careta. "Mas, bem feito para o meu pai, por escolher uma
garota que não era boa o suficiente. Lancelot era mais do nível da minha mãe.
Tinha uma cara horrível, o pobre homem, mas era simplório e um cavaleiro
vigoroso. Creio que a mediocridade precisa de mediocridade."
"Não consigo simpatizar com isso", Sophie suspirou. "Você poderia se
imaginar trocando alguém carismático e bonito por alguém perfeitamente
comum?"
Ela viu Tedros desviar o olhar, como se estivesse concluindo essa conversa.
Sophie subitamente entendeu. Tedros não precisava imaginar ter que trocar
alguém lindo e carismático por alguém comum. Ele já tinha feito isso quando a
trocou por Agatha, no primeiro ano. Sophie pensou no jeito como ele havia se
retraído quando ela mencionou o nome da amiga, lá atrás, em Gillikin — do
mesmo modo como ele estava agora, com as bochechas vermelhas como um
pimentão.
"Nós vamos", não queria dizer ele e Sophie.
"Nós vamos" queria dizer ele e Agatha.
Não importava se ele havia prometido lhe dar uma chance. Palavras não
podiam mudar o coração de um príncipe. Um coração ainda apaixonado por sua
antiga princesa.
"Estou tentando imaginar você como rainha", Tedros disse, como se de
repente tivesse lembrado que ela estava ali. "Você provavelmente teria sua
própria ala, com vinte servos preparando banho com leite quente de cabra,
massageando seus pés o tempo todo com ovas de peixe e purê de abóbora, e
catando todos os pepinos do reino."
Sophie ficou olhando para ele, perplexa.
"Eu fiz a Agatha me contar todos os seus rituais de beleza", ele confessou.
"Isso nos ajudava a rir depois das brigas."
"Fico contente de ser a boba da corte!", Sophie disparou, com as lágrimas
brotando. "É isso que você pensa de mim? Uma escrava da beleza, um vestido de
baile vazio, um acessório que nem é digno de se pensar duas vezes?"
"Sophie, você está de minissaia numa trilha de inverno!"
"Porque você não me vê como garota há muito tempo e eu quero que você
se lembre que um dia amou essa garota!"
Saiu antes que Sophie pudesse evitar e ela viu Tedros parar no caminho.
"Você prometeu me dar uma chance", choramingou Sophie, secando os
olhos com seu casaco de pele de urso. "Mesmo que você ainda ame a Agatha.
Você prometeu que me daria uma chance."
Tedros ergueu o queixo de Sophie com os olhos azuis honestos e fixos, sem
piscar.
"Eu estou lhe dando uma chance, Sophie. Estou aqui com você, não estou? Eu
não mencionei a Agatha nenhuma vez durante nossa viagem inteira. Você que
fica tocando no nome dela. Mas, em vez de se preocupar com ela, ou de se
preocupar com o que eu vejo no seu lado externo, talvez você devesse tentar me
mostrar o seu interior", ele falava num tom sério e maduro. "Então me conte,
Sophie de Além da Floresta. O que você faria pelo meu reino, como rainha?"
Ele seguiu caminhando pela trilha por entre os fachos de luz branca das
brasas. Sophie foi atrás dele, radiante de esperança. Na luz da trilha, ela podia ver
a tinta gravada em sua pele sob a aliança de ouro. Esse era o momento que ela
vinha esperando desde que perdera Tedros para Agatha dois anos atrás. O
momento para mostrar ao seu príncipe um amor tão profundo, a ponto de ter seu
nome entalhado nela. E se ela conseguisse encontrar um meio de fazê-lo sentir
esse amor com a mesma profundidade que ela... então, talvez, só talvez, as
palavras poderiam acabar mudando o coração de um príncipe.
"A princípio, achei que os deveres de uma rainha se resumiam a escolher
louças de porcelana, dar bailes, e beijar bebês em paradas", Sophie começou.
"Mas, quando eu estava com Rafal, vi o jeito que os outros alunos me olhavam.
Eu não era mais a antiga Sophie, divertida e frívola... eu era uma nova Sophie,
uma menina que tinha se tornado alguém. Acho que isso os deixou ressentidos...
eles não imaginavam que alguém tão jovem pudesse ser tão extraordinária.
Afinal, eu não era especial nem encantada como eles. Tudo que eu tinha era um
rosto bonito e a fome de ser grande na vida. E, no entanto, passei tanto tempo me
preocupando em conquistar aquela vida grandiosa que me esqueci de perguntar o
que isso deveria representar. Por isso que, no fim, eu não pude me comprometer
com o Rafal. Ele pode me oferecer imortalidade, poder infinito, amor eterno...
mas era o amor do Mal. E não importa o quanto ele pode me achar do Mal, eu
ainda quero ser do Bem, Tedros. Mesmo que eu tenha de lutar contra minha
própria alma até o dia em que eu morrer."
Tedros imediatamente olhou para Sophie.
"Há duas rainhas", ela continuou, agora com a voz mais forte. "Existe a
rainha que duvida de sua coroa. Se você a escolher, vocês irão passar a vida
desconfiando um do outro, brigando e discutindo porque, no fundo do coração,
ela não quer uma vida de rainha. Seu pai escolheu uma rainha assim e sofreu até
o fim. Agora, você pode voltar ao ponto onde a história dele deu errado e
consertá-la. Você pode escolher uma rainha que queira ser sua rainha. Uma
rainha que vai lutar pelo seu povo do mesmo jeito que ela luta para estar com seu
rei. A rainha que eu não pude ser para Rafal, porque estou destinada a ser essa
rainha para você."
Tedros olhou-a tão intensamente que foi como se ele a visse pela primeira
vez. Com o coração disparado, Sophie o encarou, enquanto a respiração dos dois
se misturava.
"Se o seu povo vir um rei e uma rainha que duvidam um do outro, eles vão
perder a fé em você. Mas escolha um novo tipo de rainha e eles verão como um
rei deve ser tratado: com amor incondicional, respeito e lealdade. Ninguém
jamais vai lhe dar essas coisas mais do que eu, pois, ao contrário de Agatha, eu
nunca duvidei de você."
"Sophie...", Tedros sussurrou, pousando a mão na cintura dela. Uma corrente
elétrica percorreu todo o corpo dela, o sangue correndo acelerado.
"Será que você não vê? Eu sou sua rainha desde o primeiro momento em que
nos vimos", ela insistiu, aproximando-se. "A antiga história entre nós estava certa,
Tedros. Tudo o que precisamos fazer é torná-la nova", ela fechou os olhos,
levando os lábios até...
"Sophie."
Os olhos de Sophie se abriram num estalo e ela viu Tedros branco, olhando
além dela. Dois zumbis costurados caminhavam em direção à trilha, vindo de
lados opostos da Floresta escura. Um deles era um homem atarracado, com o
nariz avermelhado e uma farta barba grisalha, a barriga meio para fora da
camisa pequena demais, e um chapéu preto de pirata sobre a careca. O outro era
moreno e magro, com um chapéu ainda maior por cima dos cabelos negros
cacheados. Somente quando ele entrou na trilha iluminada foi que Sophie viu seu
imenso gancho de aço.
"Aqui estamos nós, à procura de Peter Pan e, em vez disso, acabamos
encontrando a rainha do Mal", debochou o Capitão Gancho. "Só que ouvi dizer
que você desertou de seu posto, cara rainha. Conte a ela, Smee, o que nós
fazemos com os desertores em meu navio."
"Prendemos a cabeça no mastro até que os pássaros terminem o serviço",
Smee deu uma risadinha, sacando um pequeno punhal das calçolas.
"E, no entanto, apesar de sua deserção, receio que o Diretor da Escola não a
queira mais de volta", pontuou o Capitão Gancho, olhando cuidadosamente para
Sophie. "Ele insiste que sua rainha deve ser livre para agir como quiser."
Sophie ficou pálida de surpresa. Gancho virou-se para Tedros.
"Mas ele não disse nada sobre o menino."
Os dois piratas seguiram pisando firme em direção ao príncipe. Tedros sacou
a Excalibur com uma das mãos e agarrou Sophie com a outra.
"Fique perto de mim."
Sophie engoliu em seco, vendo os dois homens avançando na direção deles
com as lâminas reluzindo na luz do caminho. Houve uma vez em que Tedros
correu perigo mortal durante uma Prova, enquanto ela só ficou olhando,
amedrontada demais para lutar. Foi naquele exato momento que sua história tinha
dado errado. O momento em que ela havia perdido seu príncipe para Agatha.
Essa é a minha chance, pensou Sophie — de voltar atrás e consertar o seu conto
de fadas, do mesmo jeito que ela estava pedindo que Tedros consertasse o dele.
Se lutasse por seu príncipe, ela finalmente ganharia seu beijo.
Tedros segurou Sophie com mais força, puxando-a para seu lado enquanto os
dois piratas do Mal chegaram a uma distância assustadoramente pequena.
Enquanto o Capitão Gancho erguia sua arma acima do príncipe, Sophie focou em
seu medo, sentindo a ponta do dedo acender e ficar cada vez mais quente, mais
quente... Então, ela magicamente lançou uma das brasas brancas e quentes de
Merlin no olho de Smee, lançando-o para fora da trilha, dentro da floresta.
"Sophie!", Tedros gritou horrorizado.
O Capitão Gancho brandiu sua lâmina contra ele, e Tedros ergueu a espada
bem na hora, fazendo com que as armas de aço tilintassem. Sophie nunca tinha
enfrentado um homem adulto numa luta, por isso ela não estava preparada
quando Smee a surpreendeu por trás, prendendo-a com sua barriga gorda e
peluda, enquanto ela chutava e arranhava.
"Mas que menina bonita", rosnava Smee, já sem o tom de riso. "Nunca
vemos meninas bonitas na Terra do Nunca."
Ele cheirou o cabelo dela e Sophie o esbofeteou com tanta força que o pirata
olhou para ela boquiaberto, com a mão no próprio rosto. Por um instante, ela
achou que o havia neutralizado, mas então o viu ficar vermelho como um
pimentão e agarrá-la pelo pescoço. Ele cravou as unhas em sua laringe, como se
ela tivesse provocado algo em seu íntimo, uma ira assassina que o consumia.
"Você... não... deveria... me... matar...", ela resfolegou.
Mas Smee havia se esquecido ou nem ligava e Sophie estava sufocando,
sabendo que morreria ali mesmo, com seu príncipe a apenas alguns palmos de
distância. De canto de olho, ela viu o Capitão Gancho encurralar Tedros e golpear
a capa do Príncipe enquanto ele se contorcia e gritava. Já ficando com o rosto
arroxeado, Sophie ergueu os olhos para Smee, enquanto puxava o último fio de
ar...
Um galho de árvore em chamas partiu a cabeça de Smee, ateando fogo em
seu crânio, causando uma explosão de labaredas azuladas. De olhos arregalados,
o capanga soltou Sophie com a cabeça queimando e as chamas subindo pelas
costuras, enquanto ela caía para trás, na escuridão.
Perplexa, Sophie olhou para cima, para o Capitão Gancho que tinha saído de
cima de Tedros, enquanto olhava o corpo de Smee sendo consumido pelo fogo
azul. Lentamente, o Capitão olhou além, para a trilha, para um estranho de
ombros largos e cabelos negros brandindo a ponta do dedo acesa em azul.
"E-eu-eu conheço esse menino", exclamou o Capitão Gancho, surpreso. "É o
filho de Scourie. Nascido e criado em meu próprio navio..."
Mas essas foram as últimas palavras do Capitão, pois uma espada o
atravessou e ele caiu de joelhos, de boca aberta, antes de bater de cara no chão.
Atrás dele, Tedros limpava a lâmina da espada suja com as vísceras do zumbi e
se erguia vacilante, observando os ferimentos que Gancho deixara em seu
flanco, manchando a capa de sangue. Ele respirou aliviado ao constatar que
nenhum deles era mortal.
"Eu lhe devo a minha vida, Hort", Tedros agradeceu, olhando para cima.
Hort adentrou a luz do luar com os dentes cerrados para ele.
"Foi ela que eu salvei. Não você."
Sophie viu o ódio estampado no rosto de Hort, resultado do dia inteiro sozinho
ruminando os sentimentos que foram inflamando. Os olhos dela se arregalaram,
finalmente compreendendo.
"Mas... mas... você disse que não me amava mais...", balbuciou Sophie, com
a voz rouca.
"Eu menti!", Hort girou para ela.
Perdida num torpor, Sophie não sabia o que dizer. Mas de uma coisa ela sabia,
com certeza. Ela não podia mais obrigar Hort a viajar sozinho. Não depois que
ele tinha salvado a sua vida. Seu tempo sozinha com Tedros havia acabado.
Eu tive a chance! Ele teria me beijado! Ela pensou, aflita, e olhou para a
aliança de Rafal, ilesa em seu dedo, parecendo ainda mais pesada que antes.
Eles logo retomaram a jornada, os três em silêncio, pois Sophie não podia
dizer nada para Tedros que Hort devesse ouvir, e Tedros e Hort não tinham a
menor vontade de falar na presença um do outro. E quando Sophie achou que a
tensão não tinha como piorar, ela olhou para trás, distraidamente, na direção do
show de horrores que eles haviam deixado.
"Hã... meninos...", ela disse. O príncipe e o doninha se viraram.
Eles olharam além de Sophie e viram que o cadáver de Smee, ainda estava
queimando, ao longe, à beira do caminho. Mas o corpo de Gancho havia
desaparecido.
"Mas eu o atingi no coração!", disse Tedros, na tarde seguinte, ainda se
defendendo.
"Pela última vez, zumbis não têm coração", estrilou Hort. "Por que você
acha que taquei fogo em Smee? É a única forma de destruí-los..."
"Então, por que você não me disse nada?"
"Porque eu estava torcendo para que o Gancho matasse você!"
"Por favor, me digam que estamos chegando perto da casa segura", interveio
Sophie.
Depois de perderem o corpo de Gancho, eles aceleraram pelo caminho
como um bando de conspiradores seguindo o rastro de farelos de luz de Merlin,
até chegarem a cavernas semelhantes a bolhas que lembravam as que existiam
na Floresta Azul. Lá, eles acamparam até de manhã, cada um no próprio canto, e
os meninos revezando a sentinela. Quando o sol raiou, eles estavam novamente
na trilha, atravessando milhas e milhas da tundra coberta de gelo de Frostplains.
Protegidos por suas capas, eles se aventuraram nevasca adentro, enfrentando o
granizo, até avistarem algo em meio à monotonia de todo aquele branco.
Era um reino pequeno e peninsular, construído junto a um penhasco rochoso,
com torres brancas peroladas envoltas na névoa que subia do mar cinzento e
revolto. O som das ondas quebrando na costa ecoava em estrondos violentos,
fazendo com que o reino inteiro estremecesse com as batidas dos imensos
portões de ferro que estavam abertos e colidiam contra a rocha.
Clack! Clack!
Os três adolescentes passaram pelos portões abertos, mas não havia ninguém
ali para recebê-los. Na verdade, parecia não haver ninguém no reino inteiro,
apenas as magníficas torres brancas, sem janelas nem entradas, dispostas em um
círculo acima de uma série de escadarias de mármore. Estreitando os olhos por
cima do alambrado, eles viram um vasto lago ao pé das escadas, com águas
cinzentas e assustadoramente imóveis, que seguia rumo ao mar tempestuoso.
"Chegamos a um ponto sem saída?", perguntou Sophie.
Então, ela viu o rosto de Tedros, tranquilo e calmo.
"É Avalon", ele respondeu.
"Você já esteve aqui?", perguntou Hort.
"Meu pai fez desenhos daqui, em seu testamento", Tedros meneou a cabeça e
disse baixinho, olhando para o lago. "Ele disse que queria ser enterrado na 'casa
segura de Avalon'. Merlin nos trouxe até o local onde meu pai está sepultado."
"Isso é a casa segura?", murmurou Sophie enquanto eles desciam a longa
escada, tentando ser sensível ao que Tedros estava sentindo. "Está
simplesmente... congelante, com as portas escancaradas, e as torres não têm
entrada e..."
Eles pararam quando viram Agatha sentada no gramado seco na beirada do
lago, de costas pra eles. Ver Agatha sozinha, junto à margem do lago, despertou
uma sensação inquietante em Sophie, como se a cena estivesse incompleta...
como se Agatha não devesse terminar sua história sozinha.
Agatha virou-se ao ouvir os passos. Ela sorriu serenamente, como se estivesse
aliviada por seus melhores amigos estarem a salvo depois de uma longa jornada.
O coração de Sophie relaxou e ela chegou mais perto do príncipe. Não havia
motivo para ficar inquieta. Agatha sabia ser feliz sozinha de um jeito que ela
jamais saberia.
"Aí estão vocês", disse uma voz bocejante. Sophie se virou e viu Merlin
despertando de um cochilo, encostado numa rocha. "Demoraram um bocado.
Ah, vejam só, nosso guarda-costas também", disse ele, quando Hort saiu da
escada.
"A casa segura fica dentro desse lago, não fica?", disse Tedros, aproximandose
da beirada. "É onde meu pai está enterrado."
Ele jogou uma pedrinha na água e a viu afundar. Sophie franziu o rosto.
"Como uma casa segura pode ser dentro de um..."
Mas agora, a água estava silenciosamente se revolvendo no local onde a
pedrinha de Tedros havia afundado, espelhando o círculo de torres acima. A água
girava cada vez mais depressa, como uma roca em movimento... tão rápido que
uma espuma branca se acumulava no meio do lago, moldando uma forma
humana...
Uma ninfa fantasmagórica, de cabelos grisalhos e túnica branca saiu
flutuando da água, erguendo a cabeça para seus convidados. Ela tinha a pele
branca como giz, um nariz comprido, olhos pretos imensos que se fixaram em
Tedros antes que seus lábios vermelhos se curvassem num sorriso.
"Nunca mais consegui fazer outro exemplar igual."
Por um instante, Tedros achou que a ninfa estivesse falando dele, mas depois
percebeu que ela estava olhando para a espada.
"Excalibur... você que a forjou... você é a Dama do Lago!"
A ninfa sorriu, virando-se para Merlin.
"Olá, bonitão. Faz um bom tempo", ela observou, numa voz baixa e rouca.
"Deixe-me adivinhar. Você precisa de alguma coisa."
"Perdoe-me se você estiver sentindo falta de visitas sociais, mas eu não viria
a menos que fosse um assunto sério", respondeu Merlin.
"Outra espada? Uma poção para prolongar a vida? Ou, dessa vez, um Santo
Graal?", bufou a ninfa. "Venha até a Dama solitária e ela fará mágica segundo
as suas ordens!"
"Eu preciso lhe pedir algo que já pedi por outros dois, certa vez", disse
Merlin, sério e firme. "Que você esconda essas crianças em seu abrigo, enquanto
eles precisarem."
A Dama do Lago parou de sorrir. Um momento significativo ocorreu entre os
dois feiticeiros.
"Merlin, querido. Você sabe o que está pedindo", ela respondeu, em tom
sombrio.
Os olhos do mago desviaram-se para Tedros por um momento, antes que ele
olhasse de volta para a ninfa.
"Sim, eu sei."
Sophie deu uma olhada para Agatha, profundamente perdida, e Agatha
sacudiu os ombros, igualmente confusa. A Dama do Lago respirou fundo e olhou
seriamente para os quatro alunos.
"E então? Venham, crianças. A água está morna."
"Água? Você quer que a gente nade?", protestou Hort, olhando por cima da
margem do lago. "Como vamos conseguir sobreviver embaixo da..."
Merlin gemeu e o empurrou. Hort foi sugado através da água, com um clarão
de luz, antes de desaparecer totalmente da superfície. Agatha, Sophie e Tedros
ficaram olhando pra Merlin, estupefatos. O mago sorriu.
"Por que vocês acham que a água sempre foi o portal para os Empalhados de
Merlin?"
Ele estendeu as mãos e os três alunos saíram correndo para dentro do lago,
mergulhando de cabeça. A luz explodiu nos olhos de Sophie e ela sentiu seu corpo
inteiro tomado por um calor pegajoso da água ao seu redor, mas sem tocá-la,
como se ela estivesse protegida por um útero invisível. Ela foi mergulhando no
lago, cada vez mais fundo, até que a água recuou e ela estava em terra firme,
sob a luz do sol, completamente seca e encolhida como um bebê.
"Onde estamos?", disse a voz de Agatha, acima dela.
Sophie esticou o pescoço e viu Agatha com Hort e Tedros, em pé num
gramado verde viçoso, a grama de tom tão verde e orvalhada que cintilava sob o
sol que derretia. Sophie levantou e viu que eles estavam cercados de vegetação
com ovelhas, vacas e cavalos pastando livremente, como se tivessem encontrado
um refúgio da morte na Floresta.
"Olhem", Agatha exclamou.
Os outros acompanharam os olhos dela até um pequeno sítio, do outro lado do
brejo.
"Só pode ser nossa casa segura", disse Hort.
"Tem alguém vindo", Tedros estreitou os olhos.
Agora, duas pessoas estavam caminhando na direção deles, os dois de pele
bronzeada e curtida pelo tempo, de mãos dadas. Uma mulher ossuda com
cabelos castanhos desalinhados, e um homem de peito largo com cabelos
cacheados negros.
"Espero que eles tenham água quente", disse Sophie, sorrindo aliviada para
seu príncipe. "Eu realmente preciso de um..."
Ela parou de falar porque Tedros não estava sorrindo. Diante da aproximação
dos estranhos, seu rosto perdeu a cor e ele começou a suar.
"Não não não não não...", ele resfolegou.
Sophie virou-se para os estranhos, confusa, mas a mulher tinha parado
subitamente, seu rosto anguloso estampado de choque.
"Deus me ajude", sussurrou ela.
Tedros cambaleou para trás, segurando o braço de Agatha como uma criança
em pânico.
"Me acorde... por favor, me acorde..."
"T-T-Tedros?", a mulher gaguejou.
"Eu receio que seu filho e os amigos dele precisem de você, Guinevere",
disse a voz de Merlin, quando o mago surgiu de um facho de sol, apressando-se
pelo brejo.
Tedros não conseguia falar, os olhos alucinados desviando de Merlin para a
mulher, enquanto seu corpo tremia tanto que Agatha teve de ampará-lo embaixo
do braço. Sophie sabia que deveria ir até o príncipe, mas não conseguia se mexer.
Ela estava tremendo diante da visão do homem de cabelos escuros e olhos de
carvão, da mesma forma que Tedros tremia diante de sua mãe. Porque, da
mesma forma que Tedros sonhava com Guinevere, Sophie sonhava com ele.
O demônio que surgiu dentro do anel de Rafal.
O demônio que a impediu de receber a coroa de Tedros.
E agora, o demônio tinha nome.
Lancelot.

A escola do bem e do mal 3 Infelizes para sempre - Soman ChainaniOnde histórias criam vida. Descubra agora