34 - A Guerra de Todas as Coisas

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Nenhuma das meninas conseguia olhar para a outra. Elas só olhavam para
Vanessa, morta e linda, em seu túmulo congelado.
"Somos irmãs", constatou Sophie, com um tom estranhamente frio na voz.
"Só que não", redarguiu Agatha, baixinho. "Família, mas não da família. De
sangue, mas não do mesmo sangue. Juntas, mas separadas", ela sentia uma onda
de emoções presas por trás de seu coração, grande e forte demais para deixar
entrar. "Por isso que eu via Sader em meus sonhos, como se ele fosse meu pai",
ela disse, com a voz falhando. "Porque ele sempre me lembrou o seu pai. Em
algum lugar, eu sempre soube que era filha de Stefan. As duas estavam quietas,
olhando o reflexo embaçado da outra na tumba de gelo."
"Sophie?", Agatha finalmente olhou para ela. "Nós temos que ir. Temos que ir
agora mesmo."
Sophie não olhou nos olhos dela. Seus músculos estavam tensos, seu corpo
inteiro com os nervos à flor da pele.
"Você me ouviu?", Agatha pressionou. "Nós temos que ir..."
"Isso não muda nada, Agatha", disse Sophie, friamente, ainda olhando para a
mãe.
"O quê? Sophie, isso muda tudo..."
"Não", ela respondeu. "Isso prova que eu era do Mal desde o começo. Que a
minha mãe nunca foi do Bem e me amaldiçoou a viver sua vidinha infeliz,
apodrecendo sozinha, enquanto você ganha seu final feliz com Tedros, do mesmo
jeito que meu pai ganhou um final feliz com Honora. O Bem ganha o Bem; o
Mal não ganha nada. Só que eu tenho a chance de mudar meu final. Agora, mais
que nunca, Rafal é minha única esperança de não acabar sozinha. De não acabar
como ela."
Ela passou bruscamente por Agatha e começou a bater aleatoriamente nos
túmulos.
"Mas que maldito inferno! Tem de haver uma porta em algum lugar."

"Sophie, será que você não entende?", Agatha ficou olhando para ela,perplexa

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"Sophie, será que você não entende?", Agatha ficou olhando para ela,
perplexa. "Escolher Rafal só torna você mais parecida com ela. Sua mãe fez o
Mal para forçar o amor e olhe o que aconteceu! Escolher o Rafal só vai acabar
deixando você mais sozinha..."
"Aggie, você está agindo como se eu ligasse para sua opinião", Sophie
vociferou, batendo nas sepulturas. "Você ouviu o que o Sader disse. Não existe
amor algum entre nós. Não há elo. Você é do Bem. Eu sou do Mal. E agora, nós
vamos ver quem chega primeiro ao FIM. Ou Tedros leva você para Camelot, ou
Rafal e eu selamos nosso Felizes Para Sempre. Só uma de nós ganha um conto de
fadas."
"Sader também disse que acreditava na gente", disse Agatha, aproximandose
dela. "Ele morreu por nós..."
"Exatamente como minha mãe morreu, sabendo que jamais encontraria o
amor", disse Sophie, acotovelando-a para afastá-la. "Almas do Mal não
encontram amor. Lição número um, na Escola do Mal. Almas do Mal são
destinadas a terminar sem ninguém."
"Não vou deixar que isso aconteça com você", Agatha relutou.
"É mesmo? Porque você, o Tedros e eu viveremos um trio feliz? Porque eu
serei seu bichinho de estimação do Mal?", Sophie disparou, socando os túmulos.
"Será que você não entende? Minha alma é defeituosa! Eu não presto, sou doente
da cabeça, podre até meu âmago! Sou avariada. Jamais encontrarei o tipo de
amor que você encontrou porque jamais serei feliz por dentro. Todos esses anos,
eu quis ser igual à mãe que achei que tivesse — um anjo do Bem e de luz — e,
em vez disso, vejo que sempre fui igual a ela. Detestável até o fundo de uma
alma muito, muito ruim."
"Você não é como ela", disse Agatha, andando atrás da amiga. "No fundo,
você não tem nada a ver com ela..."
"Você é surda? Não ouviu a história dela?", disse Sophie, agora batendo mais
depressa nas tumbas. "Eu fiz amizade com você para poder arranjar um
príncipe, do mesmo jeito que a minha mãe fez amizade com Honora para ter
meu pai. Tentei todos os truques que minha mãe tentou para encontrar o amor:
feitiços de amor, poções de beleza, pedidos às estrelas... só para acabar sendo
odiada e sozinha, enquanto minha melhor amiga ganha tudo. E igual à minha
mãe, vou acabar morta num calabouço congelado, com todos esses outros
covardes que foram fracos demais para aceitarem que eram do Mal", ela se
virou para Agatha com o rosto vermelho de raiva. "Portanto, é melhor você
acreditar. Se eu sair daqui, farei tudo que for preciso para manter meu
verdadeiro amor, não importa o quanto ele seja do Mal. Qualquer coisa."
Um ping agudo ressoou dentro da Brigada. Todas as placas de aço nos
túmulos se acenderam e começaram a piscar, com setas num tom azul brilhante
que apontavam para um túmulo, antes que a porta de seu caixão magicamente se
abrisse.
A voz gravada de Lady Lesso berrava de todos os lados: A saída dos alunos foi
aberta. Por gentileza saia do calabouço com o restante de sua turma e retorne à
escola. A saída dos alunos foi aberta. Por gentileza saia do calabouço com o
restante de sua turma e retorne à escola.
Agatha ficou olhando estupefata para o caixão aceso.
"Agora vão e abram a porta."
As últimas palavras de Sader. Ele deve ter posto um encanto ali, para
destrancar quando elas chegassem perto o suficiente. Seus pensamentos foram
interrompidos, porque Sophie já estava disparando em direção ao túmulo
reluzente.
"Sophie, espere!", Agatha chamou, correndo atrás dela. Ela não podia deixar
que a amiga chegasse até Rafal... Mas Sophie já estava se enfiando no caixão
vazio e passando por uma parede falsa de neve, no fundo do túmulo. Agatha
tentou agarrar Sophie por trás, mas Sophie a empurrou e Agatha se desequilibrou.
Ela se recuperou e pulou atrás de Sophie, passando pela parede, caindo dentro de
um bloco branco congelado.
Ao sair do outro lado, Agatha sacudiu os flocos de neve de seus olhos e dos
cabelos, e viu que estava no escuro, num túnel cheio de goteiras, que tinha uma
inclinação íngreme acima. Sophie já estava bem à frente, quase na porta que
ficava no final. Agatha seguiu atrás dela, ouvindo os ecos da respiração ofegante
de Sophie e o farfalhar de seu macacão de couro, enquanto ela relutava com a
maçaneta. Quando não conseguiu abrir, Sophie bateu com o ombro contra a
porta, com a força que pôde, antes que Agatha se atirasse contra a porta e a
escancarasse com um gemido, enquanto as duas garotas cambaleavam ao outro
lado...
Agatha bateu a cabeça com força no chão de pedras. Quando conseguiu se
ajoelhar e abrir os olhos, Sophie já tinha sumido. Agatha levantou-se no grande
salão vazio, aceso por uma tocha verde fraca. Uma sala onde ela já estivera. A
Exposição do Mal.
Ela seguiu até a saída do museu. Agatha se deteve, subitamente paralisada.
Voltou devagar, e avistou uma pequena sombra encolhida no chão, embaixo da
última pintura que Sader fez de Gavaldon.
"Reaper?"
A criatura careca e amassada miou para ela, antes de olhar para a pintura de
Sader com seus olhos amarelos-acobreados. Agatha correu na direção dele e o
pegou nos braços. Ele mordeu seu pulso e ela o soltou com um gemido. Reaper
virou de volta para a pintura de Sader, com seus olhos de gato fixos na cena.
Todas as perguntas de Agatha sobre como seu gato havia entrado na escola
onde ele passara as últimas semanas, ou por que ele estava no museu do Mal,
ficaram de lado. Porque, naquele momento, Reaper queria que ela olhasse a
pintura na parede. Conforme ela se inclinou na direção da tela, Agatha viu o
motivo. A cena estava diferente de antes.
Estava mais sombria, com apenas um ponto minúsculo de luz no canto
esquerdo do alto. E onde antes as sombras dos vilões se aproximavam de
Gavaldon, enquanto os aldeões queimavam os livros de histórias, assustados,
agora havia vilões realmente saindo das árvores, enquanto eles batalhavam com
heróis jovens e velhos. A única barreira que separava os vilões de Gavaldon era
um escudo fino e esburacado, prestes a se romper.
Agatha se endireitou como uma flecha. Antes, uma visão do futuro, agora, a
pintura de Sader acompanhava de forma mágica, o presente. Ela estava olhando
para a guerra entre o Bem e o Mal enquanto ela se desenrolava... e o Bem estava
perdendo.
Seus olhos vasculharam urgentemente a cena, à procura de Tedros, mas
Sader sempre pintava com pinceladas obscuras, impressionistas, sem detalhe
algum dos rostos.
Eu tenho que chegar até Sophie, ela pensava, em pânico.
Mas, como? Sophie estava muito à frente...
Reaper miou de novo, ainda fixo na pintura, como se as respostas que ela
procurava estivessem dentro daquela moldura. O que ela deixara de ver?
Agatha pôs o nariz ainda mais perto da tela, passando os dedos na superfície
de tinta à óleo... até que seus dedos pararam. A bigorna vazia, da qual ela havia
arrancado a Excalibur, estava enfiada embaixo do toldo da livraria do Sr.
Deauville, bem distante da ação da guerra.
Reaper miou com urgência, incitando-a a seguir adiante. É claro, pensou
Agatha. O Diretor da Escola havia encantado a espada para escondê-la na
pintura de Sader... O que significava que ele também teve de encantar a bigorna.
E se ele encantou a bigorna... então, talvez... Com o coração disparado, Agatha
deslizou a mão direita pela superfície molhada e esticada da pintura, até que viu
seus dedos surgirem na pintura. Ela sentiu o frio do metal rijo da bigorna sob a
palma da mão.
Sua mão não estava apenas dentro da pintura. Sua mão estava em Gavaldon.
Um portal. Reaper enroscou-se em volta da perna de Agatha, garantindo que
estaria com ela para a viagem. A garota sorriu, triste.
"Obrigada por me ajudar, Reap", ela sussurrou, afastando-o. "Eu voltarei
quando for seguro. Prometo."
Enquanto o gato choramingava, Agatha segurou a bigorna com mais força e
se impulsionou de cabeça para dentro da pintura. Seu corpo inteiro foi engolido
por uma escuridão quente e molhada, antes que seu rosto passasse por outra
barreira molhada, adentrando o ar frio da noite. Ainda levitando horizontalmente,
Agatha atracou a bigorna com a segunda mão e se esforçou para passar o
restante do corpo pelo portal, com o calcanhar da segunda bota atravessando,
antes que ela despencasse no chão de paralelepípedos coberto de fuligem.
Quando Agatha levantou a cabeça, a primeira coisa que ela viu foram as
hordas de aldeões berrando e fugindo para se protegerem. Encurralada no
estampido, Agatha rolou como um toco de madeira para baixo do toldo do Sr.
Deauville, quase sendo pisoteada, antes de se esconder atrás da bigorna. Espiando
por cima, ela pôde ver o povo de Gavaldon se espremendo na igreja, entrando
nas lojas, e dentro das casinhas. Houve uma vez em que ela testemunhara as
mesmas cenas, enquanto os pais tentavam proteger seus filhos do Diretor da
Escola. Agora, não eram apenas as crianças que eles estavam escondendo dele.
Agatha se levantou por trás da bigorna, olhando para a Floresta a meia milha
de distância. Era exatamente como ela havia visto na pintura de Sader. Chamas
pontuando as árvores distantes, iluminando legiões de vilões zumbis, enquanto
eles batalhavam com velhos heróis e alunos, na Floresta, recuando-os em direção
a uma barreira invisível que separava a Floresta de Gavaldon. De dentro da
cidade, Agatha não conseguia enxergar o escudo da forma como ela vira da
Floresta. Ela só sabia que ele estava ali, porque um ogro golpeou um sty mph
saindo de umas árvores próximas, lançando o pássaro contra o escudo, e fazendo
com que ele ricocheteasse e caísse no chão, derrubando o jovem cavaleiro
montado em suas costas.
Agatha estreitou mais os olhos, tentando identificar os rostos em meio às
árvores, mas, como nas pinturas de Sader, tudo que ela via era um borrão de
corpos e fogo. Assustada, Agatha procurava o sol, mas não conseguia encontrá-lo
em meio às nuvens de fumaça.
Quanto tempo ainda restava? Vinte minutos? Quinze? Menos?
De uma vez, tudo aquilo a deixou esgotada. Ela jamais encontraria Sophie a
tempo. Ela nunca destruiria aquela aliança. Ela morreria ali, inútil e acovardada,
na livraria de contos de fada. O pânico corria em seu sangue...
Não desista.
A voz de Cinderela ecoava dentro dela, como o batimento de seu coração.
Por nós duas.
O ar foi lentamente voltando aos pulmões de Agatha. Sua mentora estava
certa. Ou ela ajudava seus amigos do Bem a vencer essa guerra... Ou ela
morreria com eles.
Mas, primeiro, ela tinha que passar por aquele escudo. Tomada de
determinação, ela disparou em direção à Floresta. Ao correr, ela passou por um
pai mandando a esposa e o filho subirem uma escada e se esconderem na
chaminé... uma mãe e filha entrando num barril... e um dos Anciões reunindo
crianças na sede da escola, com Radley dentre eles, equilibrando um aquário de
mão, enquanto entrava. Agatha olhou os aldeões espalhados, procurando por
Stefan e Honora, mas não havia nem sinal deles.
Passando pelo moinho e o lago, atravessando a campina, Agatha começou a
ouvir o ruído horrendo da guerra: os metais colidindo, os ossos de sty mphs
esmagados, os gritos de meninos e meninas. Ela logo pôde identificar alguns
rostos iluminados pela floresta em chamas: Beatrix em cima de seu sty mph,
ainda disparando flechas; Ravan lutando corpo a corpo com um duende; Kiko
sendo perseguida por uma bruxa zumbi; mas a maior parte da guerra ainda
estava camuflada pelas árvores e o céu negro azulado. Quando chegou mais
perto das árvores, Agatha começou a olhar os furinhos no ar: centenas deles,
cada um do tamanho de uma laranja. Ninguém jamais havia visto o escudo de
dentro de Gavaldon, o qual antes estava separado por mágica, mas Agatha
conseguia enxergar os vácuos que agora havia na barreira, o que significava que
ela podia calcular exatamente onde estava o escudo. Correndo na direção desses
buracos, ela notou que as cores do lado externo dos buracos eram mais vívidas e
vibrantes do que as cores do lado de dentro e, por um momento, ela ficou
maravilhada em como era realmente tênue a linha entre as histórias e a vida
comum.
Escorregando na direção do escudo, ela estendeu os dedos e sentiu a
superfície ovalada e invisível entre os buracos. Antes da guerra, cada conto de
fadas que o Mal havia reescrito em seu favor tinha aberto buracos no escudo em
volta do Mundo dos Leitores, da mesma forma como abrira buracos na fé que os
Leitores tinham no Bem. Porém, com os maiores heróis do Bem ainda vivos,
nenhum desses buracos era grande o suficiente para deixar que o escudo caísse,
nem que o Mal passasse, adentrando o reino protegido. O que só deixava uma
pergunta...
Como eu devo passar? Pensou Agatha, entrando em pânico.
Através do escudo, ela via parcialmente os heróis além das árvores, tentando
conter a linha de ataque do Exército Sinistro. Se os vilões os empurrassem mais,
eles ficariam encurralados contra o escudo...
Subitamente, Agatha teve um vislumbre de cabelos dourados e ombros
largos.
Tedros?
Ele já tinha sumido. Não havia tempo para pensar em seu príncipe. Se ela
queria ajudá-lo, tinha que passar pelo escudo e encontrar Sophie. Agatha voltou a
se concentrar, e estendeu a mão por um buraco, apalpando as beiradas. Romper
barreiras era seu talento pessoal. Ela tinha atravessado aquela, na Baía do Meio
do Caminho, toda vez que havia tentado; com certeza, ela também conseguiria
atravessar essa. Mas não havia vigia no portão para ser enganado, nem lugar
algum para atravessar os buracos tão pequenos, ou...
Algo mordiscou seu dedo.
Agatha recuou surpresa e viu um dos ratos pretos de Anadil plantado do outro
lado do escudo, na Floresta, com suas patinhas segurando a beirada do buraco,
para se apoiar. Rato número 3, Agatha se lembrou, o único que ainda tinha forças
o suficiente para chegar tão longe assim, pois os outros dois ainda estavam se
recuperando depois de pegar a varinha de Dovey e atravessar a névoa de
chocolate. Agora, o Rato número 3 olhava sério para Agatha, através do buraco,
ordenando que ela prestasse atenção, antes que ele tentasse passar pelo buraco e
adentrar Gavaldon.
No instante em que o nariz do rato atravessou a superfície entre a Floresta e o
Mundo dos Leitores, o rato foi atingido por um choque voraz que o fez sair
voando até o chão. Através do escudo, Agatha viu o Rato número 3 dando um
espasmo na terra, ainda vivo, apesar da descarga mágica do choque.
Então, o escudo não o deixou passar, pensou ela. Ela deslizou a mão
novamente pelo buraco, com facilidade. Então, porque ele deixa que eu passe?
Agatha afastou o pensamento. Que importância tem isso? O buraco ainda é
pequeno demais para que eu atravesse...
Algo voltou a mordê-la. Agatha olhou para o rato de Anadil, que subiu
novamente no escudo, apesar da dor aparente, e ele ainda estava olhando para
ela. Agatha olhava para ele. O que o pequeno rato queria... Ela resfolegou.
Pequeno. Ele está me mostrando como passar. Mogrificar. Ele quer que eu me
mogrifique.
E só havia um animal que Agatha sabia ser. Ela instantaneamente fechou os
olhos e visualizou o feitiço, sentindo a ponta de seu dedo reluzir em dourado
quente. Num flash, ela encolheu ao chão, sua roupa caiu por cima dela, antes que
ela saísse rastejando debaixo delas, como uma pequena baratinha preta.
Balançando as anteninhas, Agatha, a Barata, subiu pela lateral do escudo,
deixando sua roupa para trás, e entrou por um dos buracos, antes de seguir o rato
pela lateral do escudo e adentrar a Floresta.
No instante em que Agatha passou pelas primeiras árvores, uma bola verde
de fogo passou voando por perto, quase incendiando o rato e ela. Petrificada, ela
corria atrás do bicho de estimação de Anadil, disparando a toda em meio à
guerra; porém, como uma barata, ela era tão pequena que só conseguia ver os
pés batendo e os corpos caindo, e o brilho das flechas fumegantes, e os feitiços
mágicos, de um lado para o outro, acima dela. Agatha precisava procurar por
Sophie, mas com toda aquela batalha ao redor, ela nunca a encontraria, como
um inseto...
Uma flecha passou por cima de seu pequeno casco. Assustada, Agatha
acelerou atrás do rato que a conduzia rumo a um arbusto de pinho. Agatha zuniu
pelo arbusto, logo atrás dele, e os espinhos do pinho espetaram seu tórax, mas ela
saiu do outro lado. Agatha parou subitamente. O belo Nicholas, de pele morena,
estava caído de bruços na vegetação rasteira, com um corte enorme atrás da
cabeça. Enquanto o rugido da guerra ecoava atrás do arbusto, Agatha olhava o
jovem menino Sempre, sentindo um nó por dentro. O valente e meigo Nicholas...
morto? Por causa do conto de fadas dela? A tristeza e a culpa irromperam, seus
olhos de inseto se encheram de lágrimas...
O rato de Anadil chiou. Agatha o viu olhando para ela, e puxando o uniforme
de Nicholas.
Ele quer que eu pegue a roupa dele.
De jeito algum, Agatha queria fazer o que estava prestes a fazer, mas ela não
tinha escolha.
Não pense. Não pense. Não pense.
Com um profundo mal-estar, ela se reverteu à forma humana e se forçou a
vestir o uniforme de Nicholas, agachada atrás do arbusto. Enquanto calçava as
botas grandes e vestia a capa, o rato cutucava o arco de Nicholas e o estojo de
flechas, que estavam caídos ao seu lado. Agatha se debruçou e tocou a mão
trêmula nos cabelos negros de Nicholas.
Encontre Sophie, disse ela, com os dentes cerrados.
Encontre-a agora.
Ela pegou a arma da mão do rato e saiu do arbusto toda vestida de preto, com
os olhos escurecendo e o maxilar contraído. Agatha respirou fundo e se infiltrou
na guerra.
O ar estava escuro e nebuloso, repleto de fumaça das flechas que passavam
voando e queimando os cadáveres dos zumbis, que, a princípio, ela só conseguiu
ver sombras. Escondendo-se atrás de uma árvore para ter cobertura, ela estreitou
os olhos e identificou Hort e Peter Pan, a seis metros de distância, ambos
tentando rechaçar o Capitão Gancho com varetas, pedras e o que pudessem
encontrar no chão. Enquanto isso, Sininho lançava pó mágico em cima de
Gancho, tentando afastá-lo, mas o Capitão girou e cortou-lhe a asa com seu
Gancho, lançando Sininho ao chão. Enquanto a fada rastejava pela grama,
tentando encontrar um lugar para se esconder, Gancho golpeava com mais
força, contra Peter e Hort. Hort tropeçou para trás, no pé de Peter, tentando
defendê-lo, e Gancho o empurrou de lado, partindo para cima de Pan.
De trás da árvore, Agatha sabia que só teria uma chance de salvá-lo. Com o
dedo aceso, ela acendeu a ponta de sua flecha e mirou diretamente no coração
de Gancho. Quando ele avançou na direção de Peter Pan, tentando cravar o
gancho em seu pescoço, Agatha lançou a flecha que saiu voando...
Ela errou o coração, mas acertou sua bochecha, ateando fogo em seu rosto.
Enquanto Gancho cambaleava para trás, surpreso, tentando em vão apagar as
chamas, Hort e Peter nem sequer olharam pra ver quem havia salvado suas
vidas. Ambos correram para se proteger, enquanto Agatha olhava Gancho
sucumbir ao fogo e cair na terra.
Menos um. Mesmo que tenha sido por acidente. Agatha saiu de trás da árvore
com outra flecha pronta. Ela vasculhava a Floresta em busca de Sophie, mas só
via mais alunos e mentores tentando lutar com os vilões zumbis, que agora
pareciam mirar exclusivamente nos heróis famosos: João e Maria brigavam com
a bruxa, Chapeuzinho Vermelho e Dot lutavam com o lobo, João e Anadil contra
o gigante... a cada segundo, os heróis do Bem perdiam terreno contra seus vilões,
continuamente empurrados para fora das árvores, na direção do escudo de
Gavaldon. O campo de batalha em volta deles estava pontilhado de sty mphs
fraturados, vilões mortos e alunos gemendo, feridos ou com membros quebrados.
À distância, Agatha viu um lampejo de Aric correndo na direção da
Professora Dovey com uma faca dentada. A velha Reitora tentou atingi-lo com
um feitiço, mas o jovem Reitor vinha depressa demais. Ele a derrubou no chão,
deixando-a desacordada. Agarrando Dovey por seus cabelos grisalhos, ele se
ajoelhou acima de seu corpo desmaiado.
Agatha ficou pálida. Se ela tentasse acertar Aric dali, teria que ser bem no
alvo, ou acabaria acertando Dovey. Ela mal tinha conseguido atingir o Capitão
Gancho, e ele estava a seis metros de distância. Agatha saiu correndo de forma
instintiva na direção de Aric, remexendo o estojo em busca de uma flecha,
tentando se aproximar o suficiente para ter uma pontaria melhor. Mas era tarde
demais. Aric ergueu sua faca acima da garganta da Professora Dovey, prestes a
acabar com ela. Agatha gritou.
Por trás, Lady Lesso segurou o punhal, Aric deu-lhe um soco atrás do
pescoço e dominou-a. Sua mãe caiu de barriga, mas deu um impulso à frente,
pegando Aric pelas orelhas. Os dois estavam vermelhos, mãe e filho lutando pela
faca, o brilho do metal desviando de um para outro, até que Aric deu um chute,
mandando a faca para longe. Agatha mirou sua flecha de longe, tentando acertar
a cabeça de Aric, mas ele e Lady Lesso agora estavam rastejando loucamente
em direção ao punhal, empurrando e acotovelando um ao outro. Lady Lesso
pegou a faca primeiro, mas Aric pulou em cima dela. Sua mãe virou ao
contrário, segurando o filho pelo pescoço, os rostos dos dois encostando, a faca
presa no meio deles... Os olhos de Aric se arregalaram e ele deu um grito
atordoado.
Em pé, acima dele, a Professora Dovey cravou um osso de sty mph quebrado
mais fundo em suas costas. Os músculos volumosos de Aric perderam a firmeza
e ele caiu em cima da mãe, sangue escorrendo da boca. Lesso empurrou o filho
para o lado, tirando-o de cima dela, tentando respirar. Deitada de costas, a
Reitora do Mal segurou o punho da Professora Dovey e deu um leve sorriso para
sua melhor amiga.
Agatha soltou seu arco e correu na direção de Lesso e Dovey, grata porque as
duas estavam a salvo. Algo trombou em Agatha, por trás, puxando-a para atrás
de uma árvore.
"Onde está ela?", Hester rugiu, acima do ruído do caos. "Onde está Sophie!?"
"Eu não sei!", Agatha sacudiu a cabeça.
"Olhe!", Hester pegou Agatha pelos ombros.
Agatha seguiu os olhos dela por entre as árvores, até um pontinho de luz, já
enterrado no horizonte.
"Dez minutos. Isso é tudo que temos. Você precisa encontrar Sophie...",
Hester ordenou.
"Onde está o Tedros?", perguntou Agatha.
"Merlin está tentando manter os meninos vivos pelo tempo que conseguir",
Hester disse, apontando para o mago, correndo de um aluno ferido para outro,
cuidando de seus ferimentos com pó mágico do chapéu.
"Onde está Tedros?", Agatha pressionou.
Elas ouviram um grito agudo e se viraram. Pinóquio estava sendo perseguido
por vinte ogros e duendes, atravessando a Floresta. Bem na hora em que os vilões
o pegaram, uma horda de animais irrompeu de dentro da floresta e colidiu contra
os zumbis, soltando Pinóquio. Princesa Uma saltou de uma árvore, pendurada
num cipó, e atracou o velho herói, levando-o para a segurança de seus galhos
junto com Yuba e o Coelho Branco, enquanto o exército de animais de Uma
lutava com os zumbis, lá embaixo.
Outro grito ecoou e Agatha viu Lancelot batalhando com Rafal, perto das
primeiras fileiras de árvores. O ombro do cavaleiro estava encharcado de
sangue, mas ele habilmente desviava os feitiços do jovem feiticeiro, apesar dos
rugidos de dor. Agatha empalideceu. Tedros não estava com ele.
"Agatha, ouça-me", Hester disparou. "O Capitão Gancho está morto. Ani
matou a fada Rosa e eu matei minha mãe zumbi, fingindo estar feliz em vê-la. Só
sobrou o gigante do João, o lobo da Chapeuzinho Vermelho e a madrasta da
Cinderela. Nós faremos tudo que pudermos para evitar que o escudo caia. Mas
você tem que achar Sophie..."
"ONDE ESTÁ TEDROS?", Agatha berrou.
"ELE ESTÁ BEM. O PRÍNCIPE PERDEDOR ESTÁ BEM!", Hester disparou.
"Lance está mantendo-o longe do Diretor da Escola, está bem?", ela apontou
para o outro lado da floresta, para Tedros, empunhando a Excalibur e batalhando
contra ogros, como fizera com Lancelot, no campo, enquanto Chaddick voava
acima do príncipe, montando um sty mph, derrubando os ogros feridos com
flechadas vorazes. "Mas você não tem tempo de ajudá-lo, nem de ver como ele
está, nem de chegar perto dele, portanto, nem tente", Hester ralhou. "Nós
precisamos que você encontre Sophie, agora. Dez minutos, Agatha."
"Dez minutos", Agatha olhou em seus olhos.
"Ande logo", Hester implorou, antes de sair correndo para ajudar Dot e
Chapeuzinho Vermelho.
Num piscar de olhos, Agatha disparou na direção oposta, com olhos atentos
em busca de Sophie, enquanto pulava por cima de alunos e zumbis caídos. Um
estrondo ecoou atrás dela, que se virou para ver o gigante de João caindo no
chão, derrubado por Kiko, Beatrix e Reena, que o bombardearam do alto das
árvores, enquanto Anadil, João e Rosa o distraíam, lá embaixo. Atrás delas, o
lobo estava avançando para cima de Chapeuzinho Vermelho, com Dot
aparentemente ferida no chão. Mas na hora em que o lobo ia fechar as
mandíbulas na cabeça de Chapeuzinho Vermelho, Dot apontou seu dedo aceso e
transformou as mandíbulas do lobo em chocolate. Seus dentes de chocolate
cravaram na Chapeuzinho Vermelho e esfarelaram em suas gengivas. Quando
ele recuou, chocado, Hester tinha uma flecha com a ponta de fogo mirando nele.
Agatha respirou aliviada, olhando em volta, procurando Sophie. Os velhos
heróis estavam a salvo, por enquanto. O escudo não cairia... Ela arregalou os
olhos. Cinderela estava paralisada perto do escudo, vendo suas irmãs mortasvivas,
pela primeira vez. Agatha viu o rosto de Cindy se desmanchar de
felicidade, olhando as irmãs adoradas, a quem ela um dia amou mais que
qualquer outra pessoa. Não importava que elas fossem zumbis empunhando
lanças, ou que estivessem do lado do Mal. Como uma mariposa indo de encontro
ao fogo, Cinderela seguiu na direção delas, de mãos erguidas, em paz. Quanto
mais perto ela chegava, os rostos enfurecidos das irmãs iam se abrandando, as
mãos delas iam enfraquecendo nas lanças, como se elas também sentissem o
revolver do antigo amor pela irmã, apagando todas as novas ordens para feri-la.
Cinderela lentamente estendeu os braços para elas, com um lindo brilho em seu
rosto...
Ela não viu a madrasta que veio por trás dela, empunhando um machado.
"Não!", Agatha gritou, disparando na direção dela. Cinderela virou tarde
demais.
O machado desceu com toda força. Conforme a velha princesa caia, a visão
de Agatha ficou embaçada pelas lágrimas, seu coração quase parou de bater.
No centro infernal da floresta, a guerra parou. Até Lancelot e Rafal cessaram
seus golpes, vendo Cinderela bater no chão, a apenas alguns metros do escudo de
Gavaldon.
Merlin virou-se, ao lado de Ravan ferido, a quem ele estava cuidando. O
corpo do mago enrijeceu, seus olhos voaram para Agatha. Chocados, tanto ela
quanto o mago, ambos seguiram em direção ao escudo de Gavaldon. Havia um
menino do lado de dentro da bolha protetora, observando-os. Ele não tinha mais
que 7 ou 8 anos, e segurava um livro de história aberto nas mãos. Agatha o
reconheceu imediatamente.
Jacob. Filho caçula de Honora.
Ele viu Cinderela morrendo, do outro lado do escudo fino, na mesma posição
da pintura que mudava, na última página do conto de fadas que ele trazia nas
mãos. O livro reescrito escorregou de seus dedos e caiu na grama. Atrás dele,
Agatha viu uma turba de sombras lideradas por um homem alto e forte, correndo
na direção do menino, vindo da praça de Gavaldon. Ela ouvia Stefan chamando
pelo nome de Jacob, dizendo a ele para se afastar... Mas agora, não importava
mais. Os buracos no escudo acima de Gavaldon estavam magicamente se
expandindo, se fundindo uns aos outros, aumentando cada vez mais...
De repente, o escudo explodiu com um estrondo ensurdecedor, detonando um
clarão de luz branca cegante que sacudiu a Floresta como um terremoto. Os
heróis velhos e jovens se espalharam pelo chão, enquanto os sty mphs
trombavam de cabeça nas árvores, explodindo com o impacto. Agatha se
protegeu do clarão faiscante, seu corpo foi jogado na terra, enquanto ela cobria
os olhos.
Então, a luz pareceu diminuir. Aos pouquinhos, ela foi espiando por entre os
dedos e viu os pontos cintilantes brancos chovendo sobre o Mundo dos Leitores,
como uma chuva de estrelas. O escudo entre a Floresta e Gavaldon se fora. Na
Floresta, os heróis iam lentamente se levantando... mas os zumbis já estavam
ficando de pé... Agatha não conseguia mais ver Tedros em lugar algum... nem
Merlin, nem Lancelot...
Ela se virou para onde estivera o escudo. Jacob tinha sido levado pela turba de
aldeões que vieram salvá-lo. Honora o segurou com força, junto aos quadris, e
Adam, seu irmão mais velho, estava embaixo de seu outro braço, enquanto ela os
levava para a segurança da multidão. Olhando o campo de batalha iluminado
pelo fogo, o Ancião mais velho estremeceu diante da linha de frente da horda,
assustado demais para discernir quem era amigo e quem era adversário. Ele
estendeu as mãos em rendição, recuando junto com seu povo.
"A cada quatro anos, vocês destruíam nossas famílias. Vocês levavam nossas
crianças! Isso não é suficiente?", o Ancião suplicava. "Nós faremos qualquer
coisa que vocês queiram. Por favor, não nos matem..."
"Eu não tenho intenção de matá-los", disse uma voz fria e dura.
Agatha sentiu um frio na espinha. Ela se virou devagar, junto com os aldeões,
e viu Rafal, sozinho, dentro da fronteira do Mundo dos Leitores.
"Bem... exceto por ele", sorriu o jovem Diretor da Escola ao dar um passo
para o lado e revelar Stefan ajoelhado na grama, amordaçado com uma vareta.
Sophie estava em pé, diante de seu pai, com olhos frios e fixos.
"Na verdade, não sou eu que farei a matança. Meu verdadeiro amor será
responsável por terminar essa história", Rafal beijou delicadamente a mão de
Sophie e a aliança reluziu junto aos lábios dele. "Sacrificando o sangue do próprio
pai por amor."
Agatha começou a suar.
A pessoa mais perigosa num conto de fadas é aquela disposta a fazer qualquer
coisa por amor.
Nunca foram os Leitores que Rafal queria em Gavaldon. Era somente um
Leitor. Um Leitor cujo assassinato poderia desfazer a morte do próprio irmão do
Diretor da Escola. As palavras de Merlin voltaram depressa para ela... aquelas
que ele dissera no Celestium, na noite anterior à guerra... as coisas que não
faziam sentido...
E se nós estivermos analisando a história de maneira inteiramente errada,
Agatha?
No dia em que Rafal matou alguém do próprio sangue, ele tinha provado que
o Mal não podia amar e amaldiçoou seu lado, fadando-o à derrota eterna. Mas,
agora, ele tinha uma rainha que mataria alguém do próprio sangue para provar
que o Mal podia amar.
Um pecado original seria apagado. A maldição sobre o Mal seria revertida.
Um Diretor de Escola imortal sem ninguém para detê-lo, até que o último
Sempre estivesse morto. Até que o Bem fosse apenas uma lembrança.
Exatamente como ele havia prometido.
Apavorada, Agatha olhou para Sophie, em pé ao lado de Rafal, cujos cabelos
brancos espetados contrastavam com o céu noturno. Enquanto Sophie olhava seu
lindo e verdadeiro amor, não havia nada nos olhos dela, exceto um profundo
vazio esverdeado. Abaixo dela, Stefan não relutava. Ele sabia que havia sido
derrotado.
Agatha sentiu a ponta de seu dedo aquecer, sabendo que Tedros devia estar
por perto. Lancelot e Merlin também. Eles certamente poderiam ajudá-la a
chegar até Stefan a tempo. De alguma forma, eles tirariam Sophie de perto do
Diretor da Escola. O mago sempre tinha um plano. Mas agora ela via Rafal rindo
ironicamente para ela, seus olhos fixos em seu dedo aceso, como se ela estivesse
atrasada, sempre dois passos atrás dele.
Com o pavor aumentando, Agatha viu os zumbis de Rafal contendo o exército
de Merlin, jovens e velhos, todos com armas em seus pescoços. Duendes zumbis
e ogros quebravam os arcos dos heróis e esmagavam os últimos sty mphs com
seus punhos, triturando seus ossos. Presos diante de lanças e espadas, os heróis
jovens e velhos rendidos e de joelhos, assim com Stefan. Primeiro, Hort e Peter,
juntos... depois, João Rosa... Uma, Yuba e Pinóquio... até Hester sabia que seu
demônio não era páreo para uma bruxa zumbi empunhando uma faca, e caiu de
joelhos na terra, ao lado de Anadil e Dot.
Petrificada, Agatha procurava por Tedros, mas ela não conseguia mais vê-lo
em lugar algum, enquanto olhava todos os lados do bosque, até os dois últimos
duendes amarrando prisioneiros a uma árvore. Seu coração parou. Os
prisioneiros eram Merlin e Lancelot.
O cavaleiro tinha um corte no rosto, estava com uma queimadura na coxa e
seu ombro parecia ainda pior que antes, enquanto ele perdia a consciência e
voltava, tentando manter a cabeça erguida. Merlin tinha sido despido de seu
chapéu e da capa, e um dos ogros havia cortado sua barba. Encolhido na terra,
com a túnica imunda, o mago olhava o sol por entre as árvores, minutos antes
que ele se apagasse. Ela via o desespero em seus olhos azuis, refletindo os últimos
raios de luz. Juntos, eles tinham fracassado em destruir a aliança de Sophie...
fracassado em manter o escudo protetor... fracassado em impedir que o Diretor
da Escola tivesse seu final. Em vez disso, eles tinham dado a ele tempo suficiente
para selar a destruição do Bem para sempre.
Agatha esperava que Merlin olhasse para ela... que lhe dissesse o que fazer a
partir dali... que desse ao Bem uma saída... Mas Merlin não fez isso.
Rafal olhava de esguelha para o mago sem sorte e o restante de seus reféns
ajoelhados.
"Por que algumas almas não conseguem amar?", ele perguntou, num tom
abafado que ecoava noite adentro. "É uma pergunta com a qual relutei por muito
tempo, vendo o Bem ganhar cada história, enquanto almas como a minha
definhavam sem uma arma com a qual lutar. Tantos Nunca tentam amar do
mesmo modo que o Bem, com a esperança de que também possamos encontrar
um final feliz. Até eu: eu tentei amar meu irmão do Bem, com tanto fervor
quanto a rainha do Mal um dia amou um príncipe do Bem. Mas o Mal não
consegue amar do mesmo jeito do Bem, por mais que nos esforcemos para isso.
Porque nossas almas não foram criadas com amor. Nós somos os descartados, os
negligenciados, os derrotados. Somos os odiados, os expulsos, as aberrações. O
desespero é nosso combustível; a dor é nosso poder. O amor que ganha os Finais
Felizes jamais pode ser o suficiente para nós. Nada jamais será o bastante para
satisfazer o buraco negro em nossos corações. A menos que nós modifiquemos o
que o amor significa...", um sorriso cortante surgiu no rosto dele ao erguer os
olhos para Agatha. "...e então o Mal encontrará seus próprios finais felizes."
Um ogro atracou Agatha por trás e amarrou seus punhos. Ao mesmo tempo,
gritos sufocados irromperam no silêncio e Agatha viu dois duendes empurrando
Tedros até o lado dela, com as mãos amarradas, peito nu e amordaçado com sua
camiseta. Ele não estava mais com a espada do pai. Rafal se inclinou no meio
dos dois, com os lábios perto dos ouvidos de ambos.
"Eu lhe prometi um final que você jamais esqueceria", ele sussurrou, com a
respiração gélida na pele de Agatha. "O Último Para Sempre do seu conto de
fadas."
Um duende entregou a Excalibur para Sophie, que instantaneamente levou-a
ao pescoço de Stefan. O segundo duende arrancou o machado do cadáver de
Cinderela e entregou a arma a Rafal, que empurrou Agatha e Tedros, forçandoos
a se ajoelharem lado a lado, antes de colocar a bota preta nas costas de cada
um, primeiro Agatha, depois Tedros, empurrando seus rostos para encostá-los a
um tronco caído de árvore, enquanto dois ogros seguravam seus corpos para que
eles não se contorcessem.
O jovem Diretor da Escola cuidadosamente pousou a lâmina do machado
sobre os pescoços de Agatha e Tedros, a extensão do metal era comprida o
suficiente para dar conta dos dois de uma só vez. Agatha sentia o sangue
pingando do aço, junto com fragmentos de ferrugem.
"O Bem encontra o Felizes Para Sempre com um beijo. O Mal o encontra
com a morte", Rafal olhou para Sophie, com pele branca como a neve salpicada
de manchas vermelhas. "Você foi ferida por todas as pessoas em que já confiou,
minha rainha. Porém, uma machadada e eles terão sumido para sempre. Uma
machadada e nosso amor ficará selado para sempre."
Agora, havia uma expressão de loucura, uma paixão luxuriosa no rosto dele.
"Porque essa noite, eu a tomarei, Sophie, como a minha Infelicidade Eterna.
Desse dia em diante, na escuridão e no desespero, pelo Mal ou pelo Pior, pelo
amor e pelo ódio, até que a morte jamais nos separe. Essa morte, eu dou a você.
Meu único e verdadeiro amor."
Ele pressionou o machado junto ao pescoço de Agatha e Tedros, tomando a
mira. O rosto de Sophie estava imóvel e rijo, uma máscara fantasmagórica. Ela
pressionou a Excalibur na garganta de Stefan.
"Essa morte eu dou a você, Rafal. Meu único e verdadeiro amor", ela
repetiu.
"Sophie, não!", Agatha gritou, virando para olhar nos olhos dela. "Ele é seu
pa..."
Rafal apertou a bota nas costas dela, silenciando-a.
"Espere", disse Sophie, com a voz tão afiada quanto um chicote, detendo o
jovem Diretor da Escola. "Eu ainda não terminei com ela."
Rafal tirou a bota de cima de Agatha, e ele sorriu maliciosamente para sua
rainha, surpreso.
"Certamente, meu amor... como queira."
Sophie virou-se para Agatha, com a rigidez em seu rosto se transformando
em algo mais profundo e aterrador.
"Você acha que esse homem merece o nome de 'pai'? Um homem que me
despreza?"
Stefan tentou falar, mas Sophie apertou a lâmina da espada em seu pescoço.
"Eu tentei fazer com que ele me amasse. Tentei mostrar a ele meu
verdadeiro eu. Mas ele só me odiou ainda mais. Assim como o Tedros. Assim
como todos do Bem", Sophie vociferou para Agatha. "Eu sou a minha mãe. Má
até o osso. Isso é tudo que qualquer um sempre verá."
"Menos eu.", Agatha ergueu a cabeça do tronco.
A voz dela estava surpreendentemente calma, como se viesse de um lugar
que ela não conseguia controlar. Ela via os últimos raios de sol refletindo na
lâmina da Excalibur.
Merlin já tinha avisado: ela teria apenas uma chance com Sophie. Use-a com
sabedoria.
Ela tinha tentado ouvir o mago. Ela tentara ter um plano... Mas não havia
plano.
Jamais poderia haver plano para ela e Sophie. Só havia a verdade. Ela sentia
Tedros relutando em suas amarras, como fizera na pira em Gavaldon, tentando
ajudá-la. Mas, dessa vez, era ela que delicadamente tocava o pé na perna dele,
acalmando-o. Agora, ninguém poderia ajudá-la. Esse era o seu conto de fadas
com Sophie. E esse era o FIM.
"Eu conheço o que existe dentro de você, Sophie", Agatha olhou para a
amiga. "Além de sua mãe. Além do Mal. Eu conheço o seu verdadeiro eu."
"Esse é meu verdadeiro eu. Esse sempre foi meu verdadeiro eu", respondeu
Sophie, segurando a espada com mais firmeza. "Aquela que não precisa mais
fingir que é do Bem. Aquela que não tem que sentir que não é o suficiente.
Aquela que não precisa sentir nada. Eu finalmente estou feliz, Agatha."
"Não, não está", Agatha disse baixinho. "Você não está feliz."
"Prestes a morrer com seu amado príncipe e ainda pensando em mim",
Sophie irritou-se. "Minha história vai continuar sem você, Agatha. Não preciso
mais de você, nem da sua piedade, como um de seus gatos decrépitos. Não sou
mais a sua Boa Ação."
"Mas eu ainda sou a sua", Agatha respondeu. "Porque sem o seu amor, eu
jamais teria me tornado quem eu sou. Portanto, mesmo que eu morra, sempre
serei sua Boa Ação, Sophie. E não há Mal no mundo que possa apagar isso."
Manchas rosadas surgiram nas bochechas de Sophie. Ela engoliu em seco.
"Você não deveria ter voltado para me buscar. Você devia ter ido viver sua
própria vida e deixado que eu vivesse a minha. Nada disso teria acontecido."
"Eu faria tudo outra vez", disse Agatha.
"Por que nós somos irmãs?", Sophie debochou, relutando com a emoção.
Stefan murmurou confuso. Sophie apertou mais a espada.
"Porque somos mais que irmãs", Agatha corrigiu, encarando-a diretamente
nos olhos. "Nós nos escolhemos, mutuamente, Sophie. Somos melhores amigas."
"Uma princesa e uma bruxa jamais podem ser amigas", Sophie desviou os
olhos. "Nossa história sempre provará isso."
"Não, nossa história prova que uma princesa e uma bruxa precisam ser
amigas. Porque cada uma de nós interpretou ambos os papéis", disse Agatha. "E
sempre interpretaremos os dois papéis. É assim que somos. Por isso somos quem
somos."
Sophie ainda não conseguia olhar para ela.
"Tudo que eu sempre quis foi amor, Aggie", ela disse ofegante, com a voz
falhando. "Tudo que eu sempre quis foi um final feliz como o seu."
"Você já tem um, Sophie. Você sempre teve um", Agatha sorriu em meio às
lágrimas. "Comigo."
Sophie finalmente olhou nos olhos dela. Pelo momento mais breve, o som e o
espaço sumiram, as duas se olhavam fixamente, com tanta intensidade que se
tornaram um reflexo uma da outra. Luz e Escuridão. Bem e Mal. Heroína e Vilã.
Só que quanto mais profundamente cada uma delas olhava, nenhuma delas sabia
mais quem era quem. Pois, nos olhos uma da outra, elas viam as respostas para
as perguntas silenciosas de suas próprias almas, como se nem fossem reflexos,
mas duas metades de uma mesma pessoa.
Uma lágrima escorreu pelo rosto de Sophie, sua boca se abriu e deixou
escapar um leve ofego, como se o fogo dentro dela tivesse se apagado. O jovem
Diretor da Escola parecia irritado, as mãos inquietas no machado, as pupilas
desviavam entre a prisioneira e a rainha... Sophie piscou e o momento passou.
Ela olhou para Agatha, como se ela fosse uma estranha, seu rosto novamente
frio, com a mesma máscara dormente de antes. Sophie se virou para Rafal.
"Quando eu disser três", ela ordenou.
Rafal sorriu cruelmente para Sophie e empurrou novamente a cabeça de
Agatha, colando-a no tronco da árvore.
"No três", disse Rafal, medindo a lâmina junto ao pescoço dela e ao de
Tedros.
Agatha ficou mole, de coração partido.
"Um", disse Sophie.
Tedros parou de se debater, como se soubesse que o fim tinha chegado. Ele
pressionou o ombro nu junto ao de Agatha, e ela se aproximou ainda mais dele,
querendo sentir cada parte dele, enquanto morriam.
"Dois", disse Rafal, segurando o machado com as duas mãos.
Ela sentia o calor da respiração de Tedros.
"Para sempre", ele sussurrou.
"Para sempre", ela sussurrou.
Rafal ergueu o machado acima das cabeças deles. Sophie mirou a espada no
pescoço de seu pai...
"Três", gritou Sophie.
Agatha sentiu passar o vento do machado caindo e viu Sophie girando a
espada de Tedros, o sol implodindo na escuridão, no espelho do aço. Mas quando
a Excalibur raspou na pele de Stefan, prestes a cortar sua garganta, Sophie
subitamente desviou o giro, erguendo a espada. Ela tirou a mão direita do cabo
por alguns segundos, resvalando-a pela mão esquerda e arrancando a aliança do
Diretor da Escola, que voou pelo ar, o ouro captando o último raio de luz do céu,
como um belo e novo sol.
O clarão cegou Rafal e ele paralisou o movimento do machado com o
choque, precipitando-se em direção à rainha. Conforme a aliança caía na
direção de Sophie, os olhos dele se arregalaram de pavor e ele estendeu a mão
espalmada, lançando um facho de fumaça negra na direção dela.
Segurando a espada novamente com as duas mãos, Sophie olhou dentro dos
olhos do Diretor da Escola e desceu a Excalibur com toda sua força, espatifando
a aliança em milhões de estilhaços de ouro. A luz dourada envolveu o corpo de
Sophie como um escudo, quando o feitiço mortal do Diretor da Escola colidiu
contra ela e a nuvem negra se desintegrou com o impacto, dissipando-se como
uma névoa remanescente de uma tempestade. Atônito, Rafal olhou as últimas
brasas de sua aliança esfriando, a traição estampada em seu lindo rosto jovem.
Então, ele começou a mudar. Seu rosto enrugou como fruta azeda; seus
cabelos brancos e grossos começaram a cair em tufos, revelando seu crânio
mosqueado; sua coluna se curvou com estalos horrendos, lançando seu corpo
com contorções horríveis. Manchas escuras começaram a surgir em sua pele,
seus olhos azuis foram enevoando num tom acinzentado, seus membros
musculosos encolheram até se tornarem gravetos ossudos. A cada segundo, ele ia
ficando mais velho, envelhecendo milênios, e gritos de fúria irrompiam de dentro
dele, conforme sua carne fervia de calor. Suas roupas queimaram e caíram, a
fumaça emanando de sua pele mumificada, até que finalmente o Diretor da
Escola foi desmascarado, restando apenas um cadáver de carne enegrecida e
odiosa.
Seus olhos cruzaram com os de Sophie. Rugindo por vingança, ele cambaleou
à frente, na direção dela, cada vez mais depressa, estendendo uma garra pútrida
no rosto da Rainha. Sua mão virou pó ao tocá-la.
Rafal soltou um grito monstruoso e explodiu em cinzas, lançando uma chuva
cinzenta no chão, como areia numa ampulheta. No meio das árvores, o Exército
Sinistro de velhos vilões também sucumbia, suas armas caindo e tilintando no
chão, em nuvens de poeira. Uma última rajada de vento varreu as trilhas de
fumaça da Floresta como uma cortina. A noite estava mais quieta do que as
profundezas de uma tumba.
Estupefato, Tedros arrancou a mordaça e, primeiro, se ajoelhou, olhando
boquiaberto para o céu negro.
"Nós estamos aqui", disse ele, se virando. "Nós ainda estamos aqui. Agatha...
nós estamos vivos! O livro de história fechou..."
Sua princesa não havia se mexido, ainda continuava com o rosto virado para
baixo, sobre o tronco.
"Agatha?"
"Tedros, acho que vou desmaiar", lentamente, Agatha olhou para ele.
"Você me segurou, eu seguro você", seu príncipe sorriu.
A cor sumiu do rosto de Agatha e ela desabou nos braços dele.
De frente para eles, os aldeões petrificados soltaram Stefan que, com os olhos
cheios de lágrimas, abraçou Honora e os dois filhos pequenos. Na vegetação
rasteira da Floresta, heróis jovens e velhos se levantavam do chão, observando o
massacre da guerra. Hester soltou Lancelot e Merlin, enquanto Hort devolvia o
chapéu e a capa estrelada ao mago. Enquanto isso, Anadil e Dot circulavam em
meio aos velhos mentores, ajudando-os a ficarem de pé.
"Nós lhe faremos uma asa nova, Sininho", disse Peter, consolando sua fada,
que estava aos prantos.
"Faça uma nova cadeira para mim, também", disse João, franzindo a testa ao
olhar a roda quebrada de sua cadeira de rodas.
Com os óculos quebrados, o Coelho Branco dependia de Yuba para guiá-lo,
enquanto a Princesa Uma fazia uma prece silenciosa por todos os animais que
haviam morrido durante a guerra.
"Alguém viu o João?", perguntou Pinóquio.
Chapeuzinho Vermelho apontou para ele e Rosa se beijando atrás de uma
árvore. Enquanto Merlin cuidava dos alunos feridos, Beatrix usava as habilidades
que aprendera liderando a enfermaria do Mal para ajudar Lancelot a enfaixar o
ombro ensanguentado.
"Gwen nunca mais vai me deixar sair de casa", ele resmungou.
Enquanto recobrava a consciência, Agatha sentiu Tedros passando os dedos
em seus cabelos.
A primeira coisa que ela viu foi Merlin agachado ao lado de Cinderela,
envolvendo seu corpo com a capa. A velha princesa parecia tão serena e leve; do
jeito que estava quando viu as irmãs de criação pela última vez. O mago cruzou
com o olhar de Agatha e deu um sorriso muito afetuoso, como se para
tranquilizá-la de que, embora não estivesse mais viva, Cinderela havia finalmente
encontrado seu final feliz.
Agatha ficou olhando, enquanto Hort e Chaddick ajudavam o mago a
carregá-la. Amanhã haveria um funeral, e ela poderia se despedir...
Amanhã.
"O sol", ela disse com a voz embargada, olhando para o céu escuro. "Onde
está o sol?"
"Esperando para nascer, pela manhã", disse o príncipe de peito nu, ajudandoa
a se levantar. "Graças a você."
"São necessárias duas pessoas para um final feliz", Agatha suspirou,
procurando pela melhor amiga. Mas Sophie não estavam em lugar algum.
"Sabe o que passou em minha cabeça, quando o machado estava descendo?",
perguntou Tedros. "Que nós nunca arranjamos apelidos um para o outro, como
todos os outros casais."
"Nós não somos como todos os outros casais", disse Agatha, olhando para ele.
"Não, não somos", admitiu Tedros. "Nem todo rei encontra uma rainha mais
inteligente, mais forte e melhor que ele em todos os sentidos."
"Pelo menos você é o bonito", Agatha pousou a mão em seu rosto dourado.
"Mmm, talvez você também me supere nisso", Tedros sorriu, se
aproximando.
Ele lhe deu um beijo longo e suave, deixando Agatha com as pernas ainda
mais moles. Tedros amparou-a com o braço forte, trazendo-a para junto de seu
peito suado. Depois de tudo isso, de alguma forma, ele estava mais cheiroso do
que nunca. Ela o beijou novamente e um rubor surgiu em suas bochechas.
Então, o sorriso dela sumiu. Tedros percebeu e se virou.
Em meio às árvores, Sophie estava ajoelhada ao lado de Lady Lesso,
tremendo, deitada de barriga para cima, enquanto a Professora Dovey segurava
a mão da amiga.
O vestido da Reitora do Mal estava encharcado de sangue.
"Ah, não", sussurrou Agatha.
Sophie afagava o rosto de Lady Lesso, olhando em seus olhos cor de violeta.
A Reitora estava chiando baixinho, tentando, em vão, dizer alguma coisa.
"Shhh", a Professora Dovey disse a ela, impassível e firme. "Apenas
descanse."
A Reitora do Bem soubera, assim que viu o ferimento feito pela faca de Aric,
que magia não adiantaria. Sophie viu Agatha, Tedros e todos os outros heróis,
jovens e velhos, reunidos à distância, olhando, solenes.
"O que... fez que você... fizesse aquilo?"
Sophie olhou para baixo.
"Diga... me...", disse Lady Lesso.
"A mesma coisa que também a fez dar as costas para o Mal", Sophie sorriu.
"Uma amiga."
Lady Lesso pegou a mão de Sophie e, na outra mão, ainda segurava a de
Clarissa.
"A Antiga e a Nova, juntas", ela sussurrou. "Ambas em boas mãos."
"Isso é culpa minha...", as lágrimas escorriam pelo rosto de Sophie.
"Não", disse Lady Lesso, resoluta. "Isso, nunca. Você é minha filha. Tanto
quanto meu próprio filho. Você é amada, Sophie", a voz dela falhou. "Lembrese,
sempre. Você é amada..."
"Lady Lesso, por favor...", Clarissa tocou-lhe o rosto.
"Leonora", Lady Lesso olhou para a melhor amiga. "Meu nome... é
Leonora."
Os olhos da Reitora se fecharam lentamente. Ela não respirou mais.
A Professora Dovey enfim chorou, debruçada acima da melhor amiga.
Sophie, em silêncio, deixou as duas sozinhas. Agatha estava esperando por
ela, à margem de Gavaldon.
Elas ficaram ali em silêncio, vendo Dovey abraçar o corpo de Lady Lesso,
do jeito que Agatha um dia havia abraçado o de Sophie. Os dedos de Sophie se
entrelaçaram aos de Agatha. Agatha delicadamente apertou os de Sophie.
"Onde está Tedros?", Sophie finalmente disse.
"Reunindo os outros, para que possamos seguir até a escola", respondeu
Agatha, vendo Tedros e Lancelot na Floresta, erguendo Ravan, a Professora
Anêmona, e outros feridos, para pôr em cima da garupa dos poucos animais da
Princesa Uma que haviam sobrevivido. "Tantos feridos que vamos precisar da
ajuda dos outros professores."
"Venha. Vamos ajudar", disse Sophie, seguindo em direção às árvores.
"Ainda não", disse Agatha. "Primeiro, tem alguém esperando por você."
Sophie olhou por cima do ombro da amiga e viu Stefan em pé, na grama, e o
restante dos aldeões reunidos, ao longe. O coração de Sophie desmoronou.
Stefan não disse uma palavra. Ele apenas deu um abraço apertado na filha,
enquanto os dois choravam.
"Me desculpe", ela gemeu. "Me desculpe, pai."
"Eu nunca odiei você. Nunca", Stefan disse. "Tentei ser um bom pai... você
não imagina o quanto eu tentei..."
"Você foi", Sophie disse, fungando. "Você foi um bom pai."
"Eu te amo mais que tudo no mundo", Stefan sussurrou. "Você é minha filha,
Sophie."
Stefan viu Agatha chorando agora, ao vê-lo com Sophie.
"Embora você sempre tenha feito Agatha também parecer ser minha filha",
disse ele, sorrindo carinhosamente para ela.
"Venha, Aggie", Sophie limpou o rosto.
Agatha também abraçou Stefan, aninhando-se junto a ele, enquanto as
lágrimas molhavam sua camisa. Ela queria contar para ele. Queria contar tudo
para ele. Mas ao olhar nos olhos de Sophie, a amiga claramente pensando na
mesma coisa, nenhuma das duas disse uma palavra. Pois, num único instante,
elas tinham encontrado tudo que precisavam. Elas não precisavam de mais nada.
Ali, no espaço entre mundos, duas meninas abraçavam o pai, seus corpos
estavam calmos e serenos, como se três pedaços finalmente tivessem se tornado
um só.
Agatha olhou para Sophie, sorrindo. Com um ofego, ela se afastou dele... Pois
Stefan estava tremulando, assim como o restante dos aldeões atrás dele. Em
segundos, seus corpos ficaram translúcidos, enquanto Gavaldon começava a
desaparecer num clarão de luz branca.
Perplexo, Stefan olhou para cima e viu um escudo descendo pelo céu...
Agatha sentiu a mão de Sophie segurando a sua, afastando-a dele.
"Não. Fique conosco, Sophie...", Stefan suplicou, sumindo mais depressa.
"Fique com a sua família!"
"Eu te amo, pai, mas você agora tem uma nova família", disse Sophie, com
os olhos cheios d'água. "A família que você sempre mereceu. A família que o
fará verdadeiramente feliz", ela abraçou Agatha mais forte. "Eu também tenho
uma nova família. Uma família que finalmente pode me fazer feliz. Portanto,
não se preocupe comigo, pai. Por favor. Nem olhe para trás. Nunca olhe para
trás."
"Não... Sophie, não..." Stefan estendeu a mão para a filha, enquanto o escudo
surgia entre eles... "Espere!"
A luz passou por entre seus dedos.
E ele se foi.

A escola do bem e do mal 3 Infelizes para sempre - Soman ChainaniOnde histórias criam vida. Descubra agora