33 - Uma Inesperada Lição de História

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Com o teto fechado e sem aquecimento vindo do teatro, a masmorra tornouse
mortalmente gélida. As duas meninas cambalearam para ficar de pé e
recuaram junto paredes opostas, iluminadas pela luz fria que emanava das
tumbas. Cada uma delas estendia a ponta do dedo aceso, tentando recuperar o
fôlego, enquanto olhava nos olhos uma da outra.
"O que você vai fazer? Me matar?", disse Agatha, ofegante, tremendo em
sua capa preta. "Ainda assim, isso não irá tirá-la viva daqui."
"E você, consegue?", disse Sophie, de cara feia, com a ponta do dedo
fumegante, em meio ao ar gélido. "Você, que faz qualquer coisa para me obrigar
a destruir minha aliança? Que me persegue, me provoca, me machuca... aposto
que você tem uma varinha nesse seu bolso, pronta para apontar para minha
cabeça. Vá em frente. Pode me ameaçar, Aggie. Pode me fazer uma ameaça
de vida ou morte. Eu prefiro morrer a destruir essa aliança por você."
Agatha ficou quieta, fraca por causa do feitiço de choque e pelo frio. Ela
olhou para além de Sophie, para as longas fileiras de túmulos que adentravam a
escuridão. Ela não pôde deixar de dar risada diante da ironia de tudo isso.
"Você acha isso engraçado?", Sophie irritou-se.
"É só que... foi assim que Tedros e eu começamos, quando voltamos para
salvar você", disse Agatha. "Ficamos presos numa sepultura."
"E agora, você está aqui comigo, tentando encontrar um jeito de salvá-lo",
Sophie ironizou. "Sempre a salvadora, Aggie. Sempre tão do Bem. Como eu
poderia me igualar a você, algum dia?"
"Amizade não é uma competição."
"Olha só quem fala, a amiga que tornou a amizade uma competição",
respondeu Sophie, apontando o dedo aceso para o coração de Agatha. "Você e
seus velhos subordinados querem que eu destrua o meu verdadeiro amor para
que você possa manter o seu. E se, em vez disso, eu destruir você?"

"Ele não é seu verdadeiro amor", disse Agatha, esforçando-se para semanter calma

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"Ele não é seu verdadeiro amor", disse Agatha, esforçando-se para se
manter calma. "Ele está te usando para conseguir o final que ele quer."
"Da mesma forma que você está tentando me usar para conseguir o seu",
Sophie retrucou, com o dedo reluzindo ainda mais quente. "Mesmo que eu acabe
sozinha."
"Meu final inclui você, Sophie", Agatha enfrentou o olhar dela. "Mesmo que
eu esteja com Tedros. Nunca deixarei você para trás, por mais que você seja do
Mal, não importa quantos meninos entrem em nosso caminho, ou quão mais
velhas estejamos. Nós somos mais fortes que o Bem e o Mal, que Meninos e
Meninas, que Velhos e Jovens. Somos melhores amigas."
A fúria sumiu do rosto de Sophie.
"E, ainda assim, não conseguimos encontrar um final feliz juntas, por mais
que tentássemos", ela disse, agora com a voz mais amena. "Todos os caminhos
nos deixam encurraladas."
Agatha se ateve às palavras de Cinderela.
"Não desista de nós, Sophie."
"Você sabe o que está me pedindo, Aggie?", o brilho do dedo de Sophie
diminuiu, seus olhos brilhavam como esmeraldas lapidadas. "Você está me
pedindo para jogar fora o meu Felizes Para Sempre em nome do seu, e ainda ser
feliz. Você está me pedindo para acabar igual à minha mãe, só que pior, porque
você quer que eu vá viver como vocês dois. Seria como as irmãs de criação de
Cinderela indo viver com ela e o príncipe, no palácio, como uma imensa família
feliz para sempre. Sabe por que nunca vimos isso em um livro de história?
Porque isso jamais poderia acontecer."
Agatha olhava para ela, com o brilho de seu dedo diminuindo também. O
rosto de Sophie ficou sério outra vez.
"Mas também seria tolice matá-la agora", ela concluiu, com a voz gélida.
"Ajude-me a encontrar um jeito de sair daqui e quem sabe você consegue voltar
a ver seu precioso príncipe."
Ela ajustou a aliança no dedo e saiu andando, adentrando mais a Brigada. O
coração de Agatha murchou, vendo a silhueta de Sophie vestida de couro preto,
afastando-se dentro da névoa. Onde estaria Tedros, nesse momento? Será que
ainda estava vivo? O sol devia estar em suas últimas gotas, com menos de uma
hora restante...
Não. Eu não posso pensar nisso. Um herói sempre encontra uma saída. Tedros
encontraria uma saída. Agatha respirou fundo e se forçou a ir atrás de Sophie.
"Deve haver uma porta secreta em algum lugar", a voz de Sophie ecoou.
Agatha não conseguia acompanhá-la, suas pernas ainda latejavam, seus
dentes começavam a bater. Mancando, ela olhava os caixões em paredes
opostas, ocupados pelos que haviam traído seus deveres para com o Mal. O
Professor Espada, que dava aulas de esgrima... o Professor Lukas, que lecionava
cavalheirismo aos meninos... Albemarle, o pica-pau de óculos que era
encarregado da Sala de Embelezamento... cada um deles recém-sepultados, ao
se recusarem a servir o jovem Diretor em sua nova escola. Lesso e Dovey não
tiveram tempo de salvá-los, mas todos três ainda estavam vivos e saudáveis, com
olhos arregalados, piscando como bonecos, através do gelo, encurralados. Pelo
menos, eles ainda estavam vivos, ela pensou, porque agora ela via mais adiante
caixões mais velhos, sombrios e cheios de teias de aranha, com cadáveres
putrefatos dentro deles. Cada um tinha uma plaquinha de aço na lateral, em
branco, esperando para ser preenchida.
Conforme Agatha seguia em frente, ela passou pelo túmulo de um menino
adolescente de cabelos pretos cacheados e, subitamente, notou que as placas não
estavam em branco. Havia marcas entalhadas no aço. Uma série de bolinhas em
relevo, pequeninas como cabeças de alfinetes, dispostas em fileiras alinhadas.
Seu coração começou a bater mais depressa. O Professor August Sader, que
era cego, não podia escrever história com palavras, como um historiador normal.
Mas ele vira a história de uma maneira que ninguém mais podia ver, e achou um
meio de ajudar seus alunos a verem também, usando pontinhos mágicos como os
que Agatha estava vendo agora. Sem ar, ela não pôde resistir a passar as pontas
dos dedos em cima das bolinhas.
Um sopro de ar prateado emanou da placa, rodopiando e formando uma
silhueta humana tridimensional do tamanho de uma fada. O Professor Sader
sorria para Agatha, como se pairasse em pleno ar, usando seu habitual terno de
trevos, seus cabelos grisalhos estavam arrumados e limpos, seus olhos castanhos
cintilavam com vida. Por um instante, Agatha ficou radiante e surpresa, achando
que ele estivesse olhando para ela, antes que o olhar de Sader se fixasse além
dela, dirigido a uma plateia maior.
"O próximo traidor em nosso circuito é Fawaz, de Shazabah, um capanga
ordenado por um sultão do Mal a esconder uma lâmpada mágica onde ninguém
pudesse encontrá-la, mas Fawaz tentou ficar com ela. O sultão o capturou e
mandou matá-lo, antes que ele fosse trazido aqui para a Brigada, para ficar em
exposição permanente. Para sua prova final do segundo ano, você não precisará
saber qual foi o sultão que ele traiu, mas fique de olho em Fawaz, que tem um
papel crucial no modo como Aladim virá a encontrar sua lâmpada mágica..."
É claro que ele não me viu, Agatha suspirou, seguindo em frente. Primeiro,
Sader era cego; segundo, ele estava morto; e, terceiro, agora ele não passava de
um fantasma. Sem dúvida, ele deixara aquelas placas para trás para as futuras
turmas de história, depois que previu a própria morte, assim como ele uma vez
tinha retificado os livros para incluir seu obituário. Agatha não conseguia mais
enxergar Sophie em meio à névoa.
O que o Sader me mandaria fazer?
O sol ia se pondo... o escudo estaria caindo... Tedros em dificuldades... uma
aliança no dedo de sua melhor amiga era a única maneira de sair...
Um final feliz bem debaixo de seu nariz.
Isso que ele diria. As lágrimas brotaram nos olhos de Agatha. Ele sempre foi
como um pai para ela. Às vezes, em seus sonhos, ela o via com seus cabelos
grisalhos e olhos brilhantes, olhando para ela com o sorriso mais bondoso do
mundo. Mas quando ela acordava, sabia que ele não era real, assim como não
era real agora. Assim como não havia nada debaixo de seu nariz, além de
escuridão e neve.
Enquanto passava apressada pelas tumbas, ela corria os dedos pelas placas,
para poder ver o rosto dele surgindo, repetidamente, as vozes se sobrepondo à
imagem de Sader explicando sobre cada um, até que a masmorra inteira ecoava
com os tons profundos da voz do Professor. Não importava se não era real,
pensou Agatha. Havia algo tranquilizador em ouvi-lo, como se ela estivesse
segura e protegida, contanto que Sader estivesse falando...
Só que agora ela podia ver a sombra de Sophie, parada diante de um dos
túmulos à frente. Agatha sentiu um aperto na barriga.
"Você encontrou uma saída?", ela pressionou. "É uma porta secre..."
Sophie não respondeu. Ela estava contemplando uma bela mulher de vestido
branco de seda, seus olhos estavam fechados dentro do caixão, seu rosto estava
sereno, como uma princesa esperando para ser beijada. Ao contrário dos outros
cadáveres em decomposição, ela tinha uma pele imaculada, cor de baunilha,
lábios sedutores e os cabelos mais lindos, compridos e louros, como ouro em pó.
A julgar pela palidez de sua boca e a pela com textura encerada, estava claro que
ela foi morta e embalsamada muito antes de ter sido colocada em seu túmulo
gélido.
"Quem é essa?", Agatha indagou, mas Sophie não respondeu.
Atrás delas, as vozes gravadas de Sader haviam se calado. Agatha franziu o
cenho.
"Sophie, nós não temos tempo para ficar aqui paradas, olhando mulheres
mortas que por acaso se parecem com você...", seu coração parou. Não. "Essa
é... é ela?", Agatha falou sem pensar. "Essa é..."
"Minha mãe", disse Sophie, com a voz inexpressiva. "Seu corpo sempre
esteve aqui na Floresta. A sepultura no Cume Necro não era um equívoco.
Alguém deve tê-la trazido pra cá."
"Mas isso é impossível!", Agatha ergueu novamente os olhos para Vanessa e
viu o quanto ela se parecia com Sophie. "Não é?"
"Só há um meio de descobrir", disse Sophie, com a voz rouca.
Agatha seguiu seu olhar até a placa na sepultura de Vanessa, e nos pontinhos
prateados gravados no aço.
"A história dela está gravada nesses pontinhos", Sophie prosseguiu, com a voz
trêmula. "A resposta para a lápide no Cume Necro. De por que ela está aqui, no
calabouço do Mal", Sophie olhou para a amiga. "E, talvez, o motivo para que nós
duas estejamos nesse conto de fadas, juntas."
Agatha ficou na expectativa, observando Sophie estender a mão trêmula e
passar os dedos sobre o pontilhado. Uma nuvem prateada emanou da placa,
novamente se fundindo à miniatura da silhueta de Sader. Só que dessa vez, ele
não estava mais sorrindo, nem à vontade. Ele estava com os ombros tensos, o
maxilar contraído e os olhos castanhos fixos nelas.
"Não temos muito tempo, meninas. Se vocês estiverem vendo isso, minhas
visões se provaram verdadeiras e vocês estão se aproximando do final de sua
história."
"Mas, Professor Sader, o que acontece..."
"Videntes mortos tampouco podem responder perguntas, Agatha, embora eu
já soubesse que você faria pelo menos uma, porque sou vidente e vi isso. Mas,
até que essa gravação termine, nenhuma de vocês voltará a me interromper. Não
há tempo para interrupções."
Agatha e Sophie se entreolharam. Isso quer dizer que tudo acaba num final
feliz, pensou Agatha, com a esperança renovada. Sader vê o futuro... ele sabe que
nós saímos vivas...
"Eu não sei como termina o conto de fadas de vocês duas", Sader continuou,
sério, sustentando o olhar de Agatha que o observava novamente.
"Minhas visões param depois que você e Sophie surgem à minha frente,
ouvindo esta mensagem. A partir daqui, eu não sei se vocês vivem ou morrem, se
terminam como amigas ou inimigas, ou se alguma de vocês sequer terá um final
feliz."
Agatha sentiu a esperança se esvair.
"O que eu sei, no entanto, é que vocês não têm como chegar ao final de seu
conto de fadas, se não souberem como ele começou. E ele começou muito antes
de vocês virem para a Escola do Bem e do Mal. Cada antiga história dá origem a
uma série de acontecimentos que levam a uma nova história. Cada nova história
tem suas raízes na história antiga. A história de vocês, mais que todas."
Ele elaborou um livro de história duas vezes maior que corpo de uma fada, e
o deixou flutuar em direção às meninas. Ele tinha uma capa de madeira de
cerejeira, exatamente igual ao A História de Sophie e Agatha, no qual o Storian
está escrevendo, nesse momento, na Torre do Diretor da Escola. Só que quando
Agatha olhou mais atentamente, ela percebeu que esse não era o conto de fadas
dela e de Sophie. O título desse era:
A História de Callis e Vanessa
Agatha viu que o corpo inteiro de Sophie se contraiu.
"Ela esteve num conto de fadas", Sophie resfolegou.
"E agora está na hora de vocês entrarem", Sader disse e abriu o livro na
primeira página. Uma baforada de névoa emanou acima do livro, junto com
uma cena fantasmagórica de uma casinha comum.
Agatha e Sophie ficaram olhando a pequena imagem, confusas.
"Eu nunca fui muito fã dos feitiços da minha irmã Evely n, mas havia um que
eu gostava um bocado", explicou o Professor Sader, com um sorriso se abrindo.
"Podem dizer o que quiserem sobre ela, mas quando Evely n Sader contava uma
história... ela fazia com que você se sentisse dentro dela."
O professor ergueu o livro aberto e soprou a cena fantasmagórica. Com um
crepitar, a cena se estilhaçou em mil pedaços que choveram nas duas meninas
como se fosse uma tempestade de areia e vidro. Agatha protegeu os olhos,
enquanto seu corpo flutuava pelo espaço, até que seus pés tocaram o chão, ao
lado de Sophie. Elas lentamente ergueram os olhos.
Elas estavam dentro da casinha que viram na página do livro, o ar era pesado
e nebuloso ao redor delas, dando uma sensação vaporosa ao ambiente, como se
não fosse exatamente real. Agatha reconheceu o efeito, pois era assim que
Evely n Sader as trouxera para seus contos adulterados, um ano antes. Agora,
August Sader as trouxera para dentro de uma história que elas nem sabiam ter
existido. Agatha olhou a cozinha familiar e branca, a mesa redonda de jantar...
"Espere um segundo...", ela começou a dizer.
"Essa é a minha casa", disse Sophie, também percebendo.
"Mas, se essa é sua casa, então, quem é aquela?", Agatha franziu o rosto.
Sophie seguiu seus olhos até uma menina magrinha de cabelos negros, num
canto, olhando emburrada pela janela. Ela tinha um nariz empinado, olhos
castanhos grandes, e lábios rosados e finos. Ela não poderia ter mais que 16 anos.
"É... você...", respondeu Sophie, estudando-a. "Só que não é você."
Decididamente, não sou eu, pensou Agatha, porque aquela garota tinha uma
boca cruel e um brilho pernicioso nos olhos. Havia algo sombrio e venenoso nela
que fez com que Agatha a temesse, mesmo sendo apenas um fantasma. Ela
nunca tinha visto a menina. Não fazia ideia de quem era e por que ela estava na
casa de Sophie. Mas uma coisa era certa: algo que a menina via através da
janela, o que quer que fosse, tinha sua total atenção e profundo desprezo.
"Era uma vez, uma terra além da Floresta, onde morava uma menina
chamada Vanessa", disse o Professor Sader.
Sophie e Agatha ficaram imóveis, de olhos arregalados, a respiração
ofegante. Elas não se olhavam. Nem falavam. Observavam, boquiabertas, a
menina de cabelos escuros, que parecia profundamente diferente da mulher
loura que elas tinham acabado de ver na tumba congelada. Porque se, essa era
Vanessa, então elas tinham imaginado essa história totalmente diferente.
"Vanessa era uma alma miserável que se achava muito melhor que a cidade
onde ela vivia", disse Sader. "Talvez ela tivesse se tornado uma aluna regular na
Escola do Mal, exceto por um raio de luz em meio à escuridão de seu coração..."
A cena magicamente entrou em zoom, portanto, agora, Sophie e Agatha
podiam ver o que a menina estava olhando pela janela... Um jovem adolescente
ia passando, com seus cabelos louros ondulados, um porte altivo e vigoroso, olhos
verdes-azulados e um sorriso temerário.
Stefan, pensou Agatha, mais uma vez arrebatada pela semelhança com
August Sader, mesmo ainda menino. Mas não era para Stefan que Vanessa
estava olhando, conforme ele passou por sua casa. Era a menina gorducha de
cabelos desgrenhados e expressão meiga, caminhando de mãos dadas com ele.
"Honora", Sophie sussurrou. Sader continuou:
"Desde o dia em que pousou os olhos nele, Vanessa se apaixonara pelo jovem
Stefan. Não que eles se conhecessem. Vanessa fantasiava com ele, de longe,
desejando que ele a salvasse de sua vida horrenda. Dia após dia, ele era sua
única fonte de felicidade. Apesar do fato de suas almas serem espelho uma da
outra. Enquanto Vanessa era calculista, controladora e desdenhava de seus
colegas moradores da vila, Stefan era jovial, gregário e um favorito dos Anciões.
Não que ele não também tivesse os seus defeitos: Stefan era despreocupado de
um jeito que obrigava as mães a manterem as filhas longe dele. Mas se Vanessa
achava que isso abria o caminho para que Stefan a escolhesse, isso logo mudaria,
pois Stefan se apaixonou por uma garota chamada Honora, que, apesar de sua
aparência comum, compartilhava do mesmo espírito jovial e brincalhão que ele.
Stefan não tinha olhos pra mais ninguém."
Vanessa olhava mais fixamente para Honora, que remexia nos cabelos de
Stefan, até que Honora percebeu alguém olhando pela janela e Vanessa
rapidamente fingiu que estava lavando louça.
"Desnecessário dizer que Vanessa não viu o menor traço de bondade em
Honora, e a enxergava somente como uma bruxa do Mal. Vanessa passava a
maior parte do tempo tramando um meio de separar aquela bruxa de Stefan,
antes de bolar o plano perfeito. Afinal, que melhor maneira poderia haver para
se aproximar de seu verdadeiro amor, do que tornar-se amiga da bruxa?"
A casinha em volta delas sumiu e foi instantaneamente substituída pela praça
da cidade, onde Vanessa e Honora caminhavam, de mãos dadas, enquanto Stefan
passeava ao lado delas.
"E Honora, que era tão afável quanto Stefan, foi mais do que receptiva a uma
nova melhor amiga. Enquanto isso, Vanessa finalmente teve sua chance com o
menino de seus sonhos..."
Vanessa se aproximava de Stefan, pelo caminho, e sorria pra ele... Ele se
afastava, ignorando-a.
"Mas havia uma falha no plano de Vanessa: Stefan não gostava dela. E não
havia nada que Vanessa pudesse fazer para mudar isso", declarou o Professor
Sader.
A praça da cidade se dissipou e agora Vanessa estava ajoelhada no cemitério,
à noite, perto da margem da Floresta, rezando no escuro com as mãos unidas, em
prece.
"Então, a jovem Vanessa fez aquilo que os livros de histórias a ensinaram a
fazer quando se ama alguém que está fora de seu alcance. Ela pediu à Floresta
que lhe desse um feitiço que ajudasse a ganhar seu único e verdadeiro amor."
A cena começou a sumir ao redor das duas meninas.
"A história de Vanessa, no entanto, não é a única história de amor que importa
nesse conto de fadas...", ecoou a voz de Sader.
Cores ilusórias se mesclavam ao redor delas, e agora elas estavam na Torre
do Diretor da Escola, enquanto o feiticeiro mascarado entrava voando pela
janela, carregando uma jovem atraente nos braços, com cabelos castanhos
curtos, olhos imensos e lindos braços esguios e bronzeados.
"Porque enquanto Vanessa rezava pelo coração de Stefan, o Diretor da
Escola estava tentando ganhar o de Callis."
"Callis?", Agatha quase engasgou com a língua, arregalando os olhos, vendo
a mulher de postura elegante, cachos castanhos, pele sardenta. "Mas essa não
pode ser Callis. Ela não se parece em nada com..."
Algo pulou do vestido preto da mulher, dando um salto no chão. Um gatinho
pequeno, enrugado e careca. Reaper.
Agatha empalideceu. Merlin tinha contado parte dessa história, que o Diretor
da Escola quis o amor de sua mãe, mas a mulher nos braços dele não se parecia
em nada com sua mãe. Ou parecia?
Mas quando Agatha olhou mais atentamente para os olhos grandes e lúcidos,
o nariz comprido, ela começou a ver traços da mãe, como uma escultura que
havia sido deliberadamente alterada. Algo que Merlin dissera lhe ocorria agora,
algo que ele mencionara no Celestium, quando ela estivera lá com ele, pela
primeira vez... algo sobre Callis ser bem bonita, antes de Tedros bufar,
incrédulo... Agatha viu o Diretor da Escola levando a mulher para seus aposentos,
Reaper caminhando ao seu lado.
Era, sim, a sua mãe. Mas, então, por que não se parecia com ela?
Ela saiu do transe, pois Sader já seguira adiante.
"O Diretor da Escola estava curioso sobre aquela nova professora, Callis da
Floresta de Baixo, que o Storian havia escolhido para sua história mais recente,
depois que ela assumiu um cargo lecionando Enfeiamento, na escola. Segundo o
Storian, Callis há muito sonhava em encontrar seu verdadeiro amor, embora ela
lecionasse na Escola do Mal. Na verdade, Callis já não sabia mais se era
realmente do Mal. Dessa forma, quando o Diretor da Escola se apaixonou por
ela, um Diretor que, à época, todos julgavam ser do Bem, Callis viu sua saída.
Uma chance de mudar de lado para o Bem e finalmente encontrar o verdadeiro
amor.
O Diretor da Escola mascarado tirou do bolso uma aliança de ouro e se
ajoelhou diante dela. Ela lentamente estendeu a mão para a aliança, mas...
subitamente, parou. Ao olhar atentamente para a aliança, ela viu as marcas
negras por baixo do ouro, como um veneno esperando para se fixar naquela que
a colocasse no dedo.
"Até que ela percebeu quem o Diretor da Escola realmente era."
A cena surgiu num lampejo, mostrando Callis fugindo pela escuridão da
Floresta, na chuva, com um gatinho careca e enrugado embrulhado em seus
braços.
"Ela o enrolou por uma noite, mas na noite seguinte, depois das aulas, ela
partiu em fuga. Ela tinha de alertar Merlin que ele estivera certo quanto ao
Diretor da Escola ser do Mal e usá-la como arma contra o Bem. Tudo que Callis
sempre quis foi o verdadeiro amor e, em vez disso, ela havia encontrado um
vilão tentando usar esse amor para começar uma guerra. Ela xingou a si mesma
por não ter aceitado a ajuda de Merlin quando ele tentou vê-la, na escola. Agora,
não havia tempo para encontrar o mago. Quando o Diretor da Escola percebesse
que ela tinha fugido, ele certamente iria encontrá-la e a mataria, já que ela havia
descoberto o segredo por trás de sua máscara. Só que não havia um lugar onde
ela pudesse se esconder, onde ele não a encontrasse. Lugar algum que fosse
isento de seu poder..."
Callis subitamente parou, ouvindo um coro de sussurros baixos flutuando ao
vento.
Eu desejo. Eu desejo. Eu desejo.
"Como todas as bruxas, Callis ouvia os pedidos dos que estão realmente
desesperados, a ponto de pagarem um preço. Mas esse pedido não vinha da
Floresta. Vinha de Além da Floresta, onde o Diretor da Escola não exercia poder
algum. Callis disse a si mesma que não pediria um preço para atender a esse
pedido — somente uma chance de virar a página e viver uma vida livre do Mal.
Atender a esse pedido seria sua primeira boa ação, algo em favor do Bem. E
assim, a bruxa que sonhava com seu único e verdadeiro amor, seguiu o pedido...
Callis rastreou os sussurros até o Cume Necro, a uma sepultura aberta e sem
identificação, no alto da colina. Ela cavou até o fundo de uma cova vazia, com
Reaper ajudando, cada vez mais fundo... até chegar à menina no Mundo dos
Leitores, sonhando com o seu único e verdadeiro amor."
Quando Callis saiu do outro lado da sepultura, ela se viu no cemitério de
Gavaldon, em pé, diante de uma garota de cabelos escuros, ajoelhada no capim.
Vanessa olhou para Callis e sorriu, sabendo que seu pedido finalmente havia sido
concedido.
De repente, Agatha e Sophie estavam de volta à Torre do Diretor da Escola,
enquanto o feiticeiro mascarado observava o livro de história aberto no altar,
com o Storian paralisado em cima dele.
"Durante esse tempo, o Storian vinha escrevendo o conto de fadas de Callis,
mas, quando ela desapareceu, a caneta ficou imóvel, como se tivesse perdido
contato com ela. Desconfiando que tinha sido traído, o Diretor da Escola ordenou
que seus sty mphs encontrassem Callis e a trouxessem viva até ele. Mas quando
eles não conseguiram encontrá-la e não havia qualquer sinal de que ela tivesse
passado para o lado de Merlin, o Diretor da Escola presumiu que Callis estivesse
morta. Suas suspeitas se confirmaram quando o Storian abandonou o conto de
fadas dela e começou a escrever outro. Para o Diretor da Escola, a história de
Callis havia sido concluída e esquecida."
A cena desapareceu e as meninas estavam num breu absoluto, com a
pequena silhueta de Sader levitando acima delas.
"Porém, ao contrário do Diretor da Escola, eu tinha o poder da vidência, o
que significa que eu conseguia ver o que acontecia depois que o Storian parava
de escrever. Sem que o Diretor da Escola soubesse, Callis não estava morta e sua
história estava longe de terminar."
Sophie e Agatha se olharam, abaladas.
"Depois de deixar a escola, Callis nunca mais quis ter algo a ver com o Mal
nem com bruxaria. Mas ela não tinha desistido de seu sonho de um verdadeiro
amor. Vendo o quão seguro e singular era Gavaldon, ela alimentou fantasias de
recomeçar e encontrar um novo caminho como Leitora", prosseguiu Sader.
"Mas ela ainda devia um pedido a Vanessa, já que optar por atender a esse
pedido lhe proporcionara um refúgio seguro do Diretor da Escola. Callis
prometera que esse seria seu último ato de magia, antes de ingressar numa vida
comum. Assim, ela fez a poção do amor que Vanessa havia desesperadamente
desejado. Mas Callis alertou: a poção só duraria uma noite, pois as questões do
coração eram delicadas demais para magia, e o uso de qualquer feitiço amoroso
para objetivos de longo prazo levaria a finais muito infelizes. A magia sempre
teve o seu preço."
Uma nova cena se materializou, e Sophie e Agatha estavam num pub lotado,
onde Stefan entrou com os amigos.
"Vanessa não deu a menor atenção", disse Sader.
Stefan pousou sua bebida numa mesa e uma sombra encapuzada passou
sorrateiramente e despejou um frasco de líquido vermelho dentro do copo, pouco
antes que Stefan o pegasse.
"Ela enganou Stefan, que bebeu a poção enfeitiçada e instantaneamente se
apaixonou por ela. E embora o feitiço logo tivesse passado, conforme Callis havia
alertado, a poção tinha um efeito bem mais duradouro, pois não demorou para
que Vanessa batesse na porta de Stefan e lhe dissesse que estava esperando um
filho dele. O que significava, segundo a Lei do Conselho, que ele teria de se casar
com ela."
A cena mudou para Honora e Stefan numa discussão inflamada, na varanda
da casa de Honora.
"Furiosa, Honora rompeu com Stefan. Como ele pôde trair sua confiança? E
com ninguém menos que sua melhor amiga? Stefan jurou que havia sido magia
negra. Ele não sentia amor por Vanessa e, quando foi à casa dela, para
confrontá-la, ele notou uma estranha convidada em seu quarto. Ela tinha feito
isso, ele disse a Honora. A estranha. Ele viu a culpa nos olhos dela. Aquela bruxa
havia lançando um feitiço nele — ele tinha certeza! Como Vanessa podia fazer
algo tão cruel? Prendê-lo num casamento usando um filho? Uma criança
inocente? Ele temia que, de alguma forma, o feitiço fosse um tiro pela culatra...
Mas Honora não queria nem ouvir. Stefan implorou que ela não desistisse dele,
mas não adiantou. Não importava o que ele dissesse, Honora não acreditava em
sua história e não queria ter mais nada a ver com ele. Então, Stefan levou seu
caso aos Anciões."
Agora as garotas estavam ao ar livre, na praça, à noite, com uma turba de
espectadores assistindo Callis amarrada a uma pira com uma tocha acesa,
enquanto três Anciões barbudos presidiam a cerimônia do palanque.
"Os Anciões acreditaram nele, pois Stefan sempre havia sido um filho
amado. Além disso, há anos os Anciões vinham conduzindo caçadas às bruxas
em busca de qualquer um que pudesse ser o responsável pelo sequestro das
crianças que continuava a acontecer, a cada quatro anos. Portanto, quando Stefan
apontou o dedo para Callis — uma mulher estranha e descasada, que eles nunca
tinham visto na cidade — os Anciões finalmente encontraram sua bruxa.
O executor estendeu a mão até a tocha acima da pira de Callis. Sophie e
Agatha viam Stefan na lateral do palco, olhando fixamente para Callis, enquanto
o executor baixava a chama até os gravetos embaixo da bruxa. O rosto de Callis
estava inundado de lágrimas de terror e arrependimento; ela se arriscara num
último ato de magia em troca da chance de uma vida de bondade e amor, e
agora, em vez disso, ela seria assassinada como uma bruxa do Mal. Enquanto ela
chorava pelos erros de sua vida, as chamas iam se espalhando sob seus pés,
Stefan a observava e seu rosto também começou a se abrandar.
"Quando ele a viu, naquele momento, uma alma de coração humano, como
o dele, Stefan percebeu que não queria carregar a responsabilidade pela morte
de outra pessoa", explicou o Professor Sader. "Embora ainda acreditasse que
Callis fosse uma bruxa, ele mudou sua história e concordou em se casar com
Vanessa para salvar a vida de Callis. Segundo as condições impostas pelos
Anciões para poupá-la, Callis teria que se mudar para o cemitério e manter-se,
para sempre, fora dos assuntos do povo da cidade. Ela jamais poderia se casar
com um homem da vila, nunca poderia ter uma loja na praça, ou uma casa na
rua das casinhas... mas manteria sua vida, mesmo que fosse uma vida sem amor.
Assim como Stefan, que, ao salvá-la, também havia sido condenado a uma vida
sem amor ao lado de Vanessa."
Agatha não conseguia respirar, vendo Stefan libertar Callis da pira.
"A dívida", ela sussurrou. "Essa era a dívida que ela tinha com ele."
"Mas ela parece tão diferente de sua mãe, Aggie", Sophie meneou a cabeça.
"Sua mãe também", disse Agatha.
As garotas se viraram de volta para a história, conforme a cena se fundia a
um casamento ostentoso e ensolarado, na igreja da cidade. Stefan estava em pé,
no altar, ao lado de Vanessa, grávida. Ele nunca pareceu mais infeliz.
"Stefan se casou com Vanessa, enquanto os pais de Honora logo a obrigaram
a se casar com o odioso filho do açougueiro. Agora, Vanessa tinha tudo que
sempre quisera. Seu único e verdadeiro amor e, para mantê-lo, um filho a
caminho. A garota que ele amara um dia, agora estava fora do caminho, casada
com outro. Um final perfeito para um conto de fadas. Ou, assim ela pensava.
Porque Vanessa não contava com uma coisa..."
A igreja sumiu e, agora, as meninas estavam em Graves Hill, no meio da
noite. Com o rosto entristecido, Stefan jogava pás de terra para encher o restante
das duas pequenas sepulturas. Vanessa observava, chorando.
"O medo de Stefan, de que o feitiço fosse um tiro pela culatra, tornou-se
realidade. Vanessa deu à luz dois meninos. Ambos nasceram mortos."
A cena mudou e Sophie e Agatha estavam de volta onde começaram: na
casinha de Sophie, acesa por um sol poente vermelho, com Vanessa olhando pela
janela da cozinha. Seus olhos estavam em Stefan, que descia a rua apressado,
com um casaco de capuz, antes que Honora o colocasse rapidamente para dentro
de sua casa.
"Nos anos que se seguiram, Vanessa tentou tudo que pôde para ter um filho
com Stefan, mas seus esforços fracassaram, repetidamente. Logo Honora
desconfiou que Stefan sempre estivera dizendo a verdade: Vanessa o enganara
para que ele se casasse com ela. Com Honora tão infeliz com o marido, quanto
Stefan estava com Vanessa, Honora e Stefan começaram a se ver novamente,
em segredo."
Agora, as meninas estavam na casa de Agatha, em Graves Hill, vendo
Vanessa encarando Callis, com raiva.
"Vanessa visitou todos os médicos em Gavaldon, e todos concordaram que
ela jamais teria um filho. Enfurecida, ela voltou a Callis e exigiu uma nova poção
que pudesse ajudá-la a ter um filho de Stefan. A menos que ela tivesse um filho
— um filho que provasse que o amor dos dois era verdadeiro — Stefan jamais
acreditaria no casamento deles. Callis recusou-se, insistindo que havia encerrado
com a magia para sempre e só queria ficar na dela, conforme as ordens dos
Anciões. Mas Vanessa lhe ameaçou: disse que procuraria os Anciões e lhes diria
que Callis lhe jogara uma praga para que nunca tivesse filhos; que ela também
estava praguejando outras mulheres da cidade; que ela era a responsável pelas
crianças sequestradas... Callis sabia que não havia como impedir Vanessa. Sua
única opção era ajudá-la."
A cena avançou e as meninas ficaram vendo Vanessa beber um tônico preto
fumegante de uma tigela de madeira.
"Callis alertou Vanessa de que a magia não poderia forçar a união de almas
para ter um filho, como o amor faz, já que a magia não é capaz de forçar o
verdadeiro amor. Ao tentar unir duas almas com um filho, usando magia, você só
separa ainda mais essas almas", Sader continuava. "Mas, assim como antes,
Vanessa simplesmente não deu ouvidos, e estava determinada a ter um filho de
Stefan. E não tardou para que uma criança saudável começasse a crescer dentro
dela."
A noite recaiu mais escura sobre a casa. Vanessa agora estava num doloroso
trabalho de parto, enquanto Callis a confortava.
"A Criança Milagrosa, conforme os médicos a chamavam. Vanessa
prometera a Stefan que seria um menino, e tão bonito quanto ele. Ao ver Vanessa
novamente esperando um filho seu, e o quanto isso significava para ela, Stefan
tentou dar à esposa uma nova chance. Em seu coração, ele sabia que era errado
ir escondido à casa de Honora, pois ambos tinham feito juras matrimoniais a
outras pessoas. Além disso, não importava o que Vanessa havia feito no passado;
eles estavam prestes a formar uma família. Ela era sua esposa agora e para
sempre, e isso significava que se Vanessa tivesse seu filho, ele o amaria, assim
como a mãe do bebê, o máximo que pudesse. Stefan até se permitiu dar o nome
à criança, antes mesmo que nascesse: Filip, segundo o nome de seu pai", disse
Sader. "E chegou a hora, a noite em que Vanessa finalmente teve o filho de
Stefan, graças ao poder secreto da magia de Callis. Só que não era um menino.
Era uma menina branca e radiosa, que era a cara de Stefan."
Fraca e suando, Vanessa afagou a linda menina nos braços, antes de voltar a
sentir fortes dores...
"Mas, exatamente como a bruxa havia previsto, as almas de Stefan e Vanessa
nunca haviam se fundido, pois não havia amor entre eles. Cada alma produzia
seu próprio filho, o que significava que Vanessa não teve um bebê, mas dois.
Então, essa segunda menina não se parecia em nada com Stefan. Em vez disso,
ela era igual à mãe."
Vanessa resfolegou quando Callis segurou o bebê para lhe mostrar: uma
menina com cabelos negros como as penas de um corvo, olhos grandes
arregalados e um rosto medonho. Vanessa se retraiu de repulsa, empurrando o
bebê de volta para a bruxa.
"Ela ordenou que Callis jogasse a menina na Floresta e a deixasse lá para
morrer. Ela jamais poderia levar uma criança tão horrenda de volta para casa,
para Stefan, debochou ela, antes de pegar sua linda filha loura e sair apressada,
certa de que tudo entre ela e o marido estava prestes a mudar", pontuou Sader.
"Mas Callis, que só via beleza na criança que Vanessa jogou fora, ficou com a
menina para si. Ela lhe deu o nome de Agatha, o que significava 'Alma do Bem'.
Finalmente, depois de tantos anos de solidão, Callis da Floresta de Baixo havia
encontrado seu verdadeiro amor."
Callis deu uma olhada no espelho, enquanto estudava os olhos grandes da
criança, tão grandes que pareciam olhos de um inseto. Com mágica, Callis tornou
seus próprios olhos maiores.
"Para garantir que ninguém fizesse perguntas quanto a ela ser mãe da
criança, Callis foi aos poucos se transformando, ao longo dos anos, usando suas
habilidades de Enfeiamento para ficar cada vez mais parecida com Agatha.
Logo, os aldeões começaram a notar a filha de Callis à espreita, nas colinas,
praticamente uma duplicata dela. Os Anciões fizeram perguntas à Callis, é claro,
mas ela não deu respostas, e, com o tempo, a cidade simplesmente evitava a
menina, como fazia com a mãe."
A manhã irrompia pela janela da cozinha ordinária da casa, enquanto Callis,
com os cabelos negros, pele branca e magricela, lia livros de história para a filha
de cabelos negros, pele clara e magricela.
"Quando surgiam novos contos de fadas em Gavaldon, ano após ano, com o
Bem sempre ganhando em cada história, Callis começou a questionar se ela tinha
interpretado tudo errado. Talvez o Diretor da Escola nem fosse do Mal. Ela até se
perguntava: será que ela havia cometido um equívoco ao não aceitar a aliança?
À medida que os anos foram passando, ela começou a desejar que a filha fosse
levada para a Escola do Bem e do Mal, para que Agatha pudesse ter um futuro
repleto de magia, aventura e amor, em vez de ficar presa naquela vida solitária e
comum, por causa da mãe."
A cena mudou para Stefan, em sua casinha, sentado à mesa com Vanessa e a
jovem Sophie. Ele olhava a filha de três anos com cautela, sem nenhum carinho
no rosto.
"Enquanto isso, enquanto a pequena Sophie crescia, Stefan tinha uma certa
aversão em relação a ela. Ele se esforçava muito para amá-la: levava a menina
até Battersby para comprar biscoitos, lia livros de histórias na hora de dormir,
sorria para os transeuntes que comentavam que a pequena Sophie era tão
parecida com ele... Mas, no fundo, tudo que Stefan via na filha era a alma de
Vanessa."
Agora, Stefan estava levando madeira para o moinho. Ele parou no caminho,
reparando em Agatha, com 5 anos, brincando sozinha no meio do capim, numa
colina próxima. Ela ergueu os olhos para Stefan e deu um sorriso dentuço. Stefan
retribuiu o sorriso.
"E, no entanto, quando ele via a menina estranha e marota, que se evadia ao
redor de Graves Hill, ele sentia tanta afeição por ela, mesmo quando os outros
trabalhadores do moinho notavam sua incrível semelhança com Vanessa", disse
o Professor Sader. "Ao dar à luz duas meninas, uma feia e uma bonita, Vanessa
ficou com aquela que achou que o marido amaria. Aquela que poderia
aproximá-la dele. Mas a que ela havia jogado fora, era a que havia ficado
impressa no coração de Stefan."
A cena de Stefan desapareceu e as meninas estavam sozinhas com Vanessa,
no banheiro, repleto de poções de beleza, cremes e elixires, enquanto ela
engrossava os lábios com uma pasta especial, tornava seus olhos verdes com
gotas de ervas e pintava os cabelos de louro-dourado com uma mistura caseira.
Sophie, com seus 7 anos, imitava a mãe, passando creme de mel no rosto.
"Vanessa não conseguia entender por que Stefan ainda era frio com ela,
mesmo após o nascimento de Sophie. Sophie não era bonita o suficiente? Pensava
ela. Eu também não sou boa o bastante? Em pânico, Vanessa tentava,
obsessivamente, tornar-se mais bonita. Sua filha também. No entanto, por mais
que ela o fizesse, Stefan parecia fugir das duas."
A cena mudou bruscamente para Vanessa em pé, com a pequena Sophie,
então com 10 anos, na janela da cozinha, ambas louras e deslumbrantes, vendo
Stefan brincando com dois meninos no quintal da frente de Honora. Vanessa já
não parecia mais zangada. Ela parecia derrotada e magoada.
"Vanessa acabou morrendo sozinha, enquanto seu verdadeiro amor a
abandonou por uma garota que ela um dia achou ser uma bruxa horrenda. Ela
viveu para ver Honora ter dois filhos. Dois meninos que, até o dia de sua morte,
Vanessa sabia que eram de Stefan, por mais que Honora fingisse o contrário. Ela
sabia porque via como Stefan amava os meninos. Pelo jeito que Stefan abraçou
os meninos no enterro do marido de Honora, depois que ele sofreu um acidente
no moinho. E pelo jeito como Stefan olhava de forma tão distante para Sophie, a
filha que ele tinha em casa."
Enquanto Stefan brincava com os filhos de Honora, ele viu Agatha, curvada e
magra, sorrateiramente subindo Graves Hill. Ele sorriu afetuosamente.
"No entanto, Stefan nunca se esqueceu da menina no cemitério, para quem
ele olhava sempre que passava por ali... porque, no fundo, ela parecia mais sua
filha do que qualquer um dos outros."
A história foi sumindo com uma pintura na chuva, e Sophie e Agatha estavam
na escuridão total, em profundo silêncio, ouvindo o som idêntico de suas
respirações.
"Duas irmãs", Sader concluiu. "Porém, irmãs apenas no nome, visto que não
houve amor quando foram concebidas. Duas almas eternamente inconciliáveis,
já que uma é um espelho da outra: uma do Bem, outra do Mal. De fato, se o
destino algum dia unisse essas meninas, elas seriam inimigas mortais, mesmo
que seus corações ansiassem por um elo. Não haveria caminho para a felicidade,
como não houvera caminho rumo à felicidade para seus pais. Elas eram almas
velhas que se tornaram novas, fadadas a ferir e trair uma à outra, repetidamente,
como Stefan e Vanessa, até que elas também fossem separadas para sempre. E,
para qualquer um que achasse que essas duas meninas pudessem desafiar esse
final e encontrar um final feliz... bem, isso seria um conto de fadas, não é?"
A Brigada lentamente se materializou ao redor delas, e as duas meninas se
viram no calabouço gélido, com os corpos fracos e os rostos pálidos. O Professor
Sader flutuava diante da tumba de Vanessa, olhando para elas.
"Mas eu tinha esperança, mesmo que não pudesse ver o final de vocês.
Olhem o quanto vocês já caminharam, contra todas as probabilidades. Foi por
isso que transferi a mãe de vocês para cá, para que vocês pudessem saber a
verdade sobre sua história. Foi por isso que sacrifiquei minha vida por vocês duas.
Porque ao quebrar todas as regras do nosso mundo, vocês têm chance de salvá-lo
quando nós mais precisarmos. Para encontrar uma ponte entre o Bem e o Mal.
Para colocar o amor em primeiro lugar, seja o de um Menino, ou de uma
Menina. Para romper a corrente entre a Velha história de seus pais e a Nova
história de vocês. Ninguém sabe se vocês terão êxito, crianças. Nem eu. Mas o
Storian escolheu vocês por um motivo, e chegou a hora de enfrentá-lo. Chega de
fugir. Chega de se esconder. A única saída é através de seu conto de fadas."
Os olhos dele cintilavam com as lágrimas.
"Agora vão e abram a porta."
O Professor Sader sorriu para as duas meninas pela última vez. Então, seu
fantasma se dissolveu na escuridão, como as últimas lágrimas de um sol.

A escola do bem e do mal 3 Infelizes para sempre - Soman ChainaniOnde histórias criam vida. Descubra agora