24 - Seu Lugar é ao Lado de Quem?

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Fazia quase vinte minutos que Tedros encarava a xícara fumegante de chá de
cidra de maçã, mas ainda não encostara nela. Agatha estivera tão aflita ao
observá-lo, que também não tocara em seu chá. Nem Sophie, ao seu lado,
ocupada demais lançando olhares nervosos a Lancelot, enquanto o cavaleiro
moreno de pele marcada servia pratos e talheres para cada um deles.
"Vocês devem estar famintos", ele falou, num tom barítono retumbante. "Seu
amigo de cabelos escuros perguntou se podia tomar um banho. Rapaz
engraçado... disse que não queria deixar a mesa fedorenta. Qual é mesmo o
nome dele? Homer? Hodor?"
Ninguém respondeu.
"Hobbin, eu acho", disse Lancelot.
Agatha viu que a camisa de Tedros estava molhada de suor, ele engolia em
seco, as veias de seus braços pareciam prestes a estourar.
"Hort. O nome dele é Hort", respondeu Guinevere, chegando apressada da
cozinha, trazendo uma travessa com peru assado na brasa e outra de salada de
rabanete. Sob a luz da tocha da sala de jantar, Agatha reparou que ela tinha o
narizinho arrebitado de Tedros, as sobrancelhas certinhas acima dos olhos azuis
eletrizantes, assim como a tendência de suar em excesso. Seus cabelos eram
outra questão: eram tão embaraçados, cheios e castanhos, que seu rosto miúdo e
pálido parecia um ovo escondido num ninho de passarinho.
"É terça-feira, e o Lance e eu cozinhamos para a semana inteira nas
segundas, portanto tem de sobra", ela disse. "Quer dizer, até a próxima segundafeira.
Isso não significa que vocês não possam ficar depois disso, é claro. Nós só
não estamos habituados a hóspedes... nem gente, de nenhuma espécie. Às vezes,
o Lance e eu passamos dias sem sequer nos falarmos", ela se sentou e esperou,
em vão, que alguém preenchesse o silêncio. "Espero que esteja boa. O Tedros
sempre adorou meu peru, mesmo quando era um menininho. Ele vinha correndo
para a cozinha no instante em que sentia o cheiro, mesmo quando estava no meio
das lições com o Merlin."

Tedros não olhava para ela

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Tedros não olhava para ela.
"Vamos começar?", disse Guinevere, com uma voz fraca, empurrando as
travessas. "Vocês fizeram uma longa jornada, então encham seus pratos. Eu
posso fazer mais."
Ninguém comia. Ninguém falava.
"Bem, parece que vocês estão instalados, por isso vou seguir meu caminho!",
disse Merlin, entrando com uma vareta na mão. Todos ergueram os olhos aflitos,
como se ele fosse o último bote salva-vidas deixando um navio.
"P-para onde você está indo?", Tedros perguntou.
"Da mesma forma que vocês estão seguros aqui, eu tenho de assegurar que
nossos outros amigos também estejam a salvo, incluindo os seus outros colegas,
alunos da escola", disse Merlin. "Sem dúvida, o Diretor da Escola acelerou seu
plano, já que o Storian revelou a ele que você está sob a proteção da Dama do
Lago." O mago olhou furtivamente para Guinevere. "Peço-lhe desculpas por não
ficar para o jantar, minha cara. Achei que deveria ir até o bosque prestar meus
sentimentos..."
Guinevere assentiu, com se entendesse o que ele queria dizer.
"Eu verei vocês em breve, crianças", disse Merlin, antes de dar uma olhada
para Sophie e pousar os olhos na aliança em seu dedo. "Sem mais sangue em
nossas mãos, eu espero."
Agatha viu a surpresa de Sophie quando Merlin magicamente arrebanhou um
naco do peru sobre a mesa, fazendo-o voar até sua mão, e depois saiu da
choupana, deixando a porta balançando atrás de si. O silêncio insuportável
retornou.
Agatha tentou não pensar na ausência de Merlin e na aliança de Sophie, nem
no tormento de Tedros, e, em vez disso, focou sua atenção nas paredes de toras
de madeira da casa, nos cômodos ovais com lareiras crepitando, nos sofás de
couro feitos à mão, assim como nos tapetes de lã de carneiro, tudo tão
aconchegante e lindamente feito, como se duas pessoas sem amigos, família,
comunidade, tivessem feito um lar no fim do mundo...
"Carne branca ou escura, Tedros?", perguntou a voz de Guinevere.
Agatha teve um estalo e ficou atenta, vendo Guinevere pegando o prato do
filho e sorrindo para ele. A pergunta dela ficou pairando no ar, o primeiro desafio
ao silêncio. Tedros finalmente olhou para a mãe.
"Não consigo fazer isso", ele disse, ofegante.
Guinevere não disse nada enquanto Tedros se retirava da mesa, afastando
ruidosamente a cadeira de ferro para trás. Lancelot franziu o cenho.
"Tedros, você não precisa falar com ela, mas, pelo menos, coma sua..."
"Se você sequer olhar em minha direção, seu canalha imundo, eu vou parti-lo
ao meio", Tedros rosnou.
Lancelot colocou-se de pé como um raio, mas Guinevere o segurou pelo
punho, fazendo-o sentar-se novamente. Lancelot não disse nada enquanto Tedros
saía da sala batendo as botas e a porta atrás de si. Agatha instintivamente levantou
de um pulo para seguir seu príncipe...
"Eu vou, Aggie", disse a voz de Sophie.
Agatha virou-se e viu Sophie em pé. Sophie assentiu sutilmente e deixou a
mesa, mas não antes de lançar um olhar ansioso a Lancelot. Agatha ouviu a porta
da frente se fechando mais uma vez, e sentou-se novamente à mesa, com um nó
na barriga. A sala estava tão quieta que eles podiam ouvir o som do banho de
Hort, do outro lado da casa.
"Muito bem, então", disse Agatha, forçando um sorriso para seus anfitriões
"Vamos comer?"
Guinevere e Lancelot respiraram fundo, como se manter alguém na mesa já
fosse uma vitória. Agatha começou a comer o peru, tão defumado e macio que
ela fechou os olhos de prazer, tentando afastar o pensamento do que poderia ou
não estar acontecendo lá fora...
"Ele escolheu uma princesa adorável, não é?", comentou Guinevere.
Os olhos de Agatha se abriram.
"Sophie, não é?", perguntou Guinevere, afastando os cabelos desgrenhados de
sua salada. "Ela foi atrás dele com tanta determinação, como o pai de Tedros
costumava fazer indo atrás de mim. Ela deve amá-lo muito", a voz dela falhou.
"Não creio que Arthur ou eu poderíamos ter escolhido melhor para ele."
"Bom, eles são bem parecidos, não são?", resmungou Lancelot.
"Eu só acho que ela se porta como uma rainha. Para ser honesta, mais do que
eu jamais me portei", pontuou Guinevere, contendo o riso.
"Ela é perfeita para o moço. O povo do reino vai paparicá-la, e ela o encherá
de mimos", disse Lancelot.
"Camelot finalmente terá uma rainha de verdade", Guinevere suspirou,
dando um sorriso. Ela se virou para Agatha. "E quanto a você, querida? Você e
Hort se conheceram na escola? Ou foi no Baile da Neve..."
"Desculpem. Vocês me dão licença?", Agatha pediu, resfolegante. "Eu... eu
preciso de um pouco de ar..."
Ela se afastou da mesa e saiu da cabana, deixando Lancelot e Guinevere, que
nunca precisaram de mais nada além da companhia um do outro, sentindo-se
subitamente solitários.
Agatha não sabia para onde estava indo; ela só precisava se afastar daquela
casa. Correndo pelo brejo, sob o crepúsculo azulado, ela respirou fundo e notou,
pela primeira vez, que o ar estava quente. O frio do inverno forte tinha passado,
substituído por uma brisa úmida, assim como o vento que soprava no Celestium
de Merlin.
Talvez esse seja o local de meditação da Dama do Lago, pensou ela,
agarrando-se a qualquer pensamento que não envolvesse Sophie nem Tedros.
Não havia nada adiante, exceto a noite lúcida e o mapa de constelações, e
Agatha soube que poderia continuar caminhando por ali eternamente, sem
jamais encontrar um fim. Ela foi desacelerando, parou e olhou para trás, na
direção da casa. Além dela, os animais se misturavam, alguns porcos em meio
às ovelhas e vacas, enquanto os cavalos perseguiam uns aos outros sob a luz do
luar. A lua também iluminava outra coisa: Gavaldon, em contraste no horizonte,
já mais clara que no dia anterior. E, agora, havia buracos no escudo vitrificado
que envolvia a cidade.
Mais histórias haviam sido reescritas. Mais heróis tinham morrido. O Diretor
da Escola estava se aproximando de seu final.
Mas, qual seria? Ela pensou. Do que ele precisava em Gavaldon?
Algo que ele precisa para destruir o Bem para sempre... como Merlin dissera.
Agatha mordeu o lábio, relutando com essa charada, que era a mais
importante de todas... Foi quando ela os viu. Duas silhuetas de cachos dourados,
perto de um bosque de carvalhos, quase indistinguíveis no escuro.
Agatha lembrou-se de um momento, dois anos antes, durante uma aula com
o Grupo Florestal, quando pegou Tedros e Sophie flertando junto a uma árvore.
Foi a primeira vez que Agatha vira sua melhor amiga parecer mais feliz do que
ficava quando estava com ela. Agora, a visão de Sophie com o mesmo príncipe,
os dois sem a menor pressa de encontrá-la ou de incluí-la, fez os sentimentos
voltarem à tona. Uma solidão odiosa que vinha surgindo... Só que, dessa vez,
Agatha não correu da dor. Ela deixou que a solidão entrasse lentamente,
estudando-a, enquanto cravava suas garras em seu coração, como um monstro
que bate à porta.
Do que eu tenho tanto medo?
Ela tinha passado toda sua vida sozinha antes daquela manhã de junho, quatro
anos antes, quando Sophie apareceu, pela primeira vez, com um cesto de cremes
faciais e biscoitos dietéticos, oferecendo-se para fazer uma transformação nela.
Ela era bem feliz sozinha, como um pássaro que nunca viu o céu preso numa
gaiola. No entanto, à medida que elas foram ficando cada vez mais próximas,
Sophie tinha aberto as asas de Agatha para um amor tão forte que ela achou que
duraria para sempre. Era ela e Sophie contra o mundo. Mas, naquele primeiro
dia de aula, quando viu Sophie com um príncipe, Agatha percebeu o quanto ela
fora cega. O laço entre as duas meninas, por mais intenso e leal que fosse,
mudou assim que um menino entrou no meio das duas. Ela e Sophie tinham
tentado ir para casa depois disso. Elas tentaram voltar a ser como eram antes.
Mas foi tão impossível quanto voltar a ser uma criança depois que você já
cresceu.
Todo esse tempo, Agatha não conseguia entender por que Sophie tinha
escolhido ficar com Rafal. Por que Sophie escolheria um menino tão do Mal.
Mas, ali, em pé, sozinha no escuro, Agatha se pôs no lugar da melhor amiga. Pois
quando beijou Tedros e fez com que ele desaparecesse e voltasse para casa com
ela, Sophie já não tinha mais alguém que a colocasse em primeiro lugar. Seus
dois melhores amigos a abandonaram para ficar um com o outro.
Tedros também já tinha sentido essa dor, vendo ela e Sophie se beijarem
antes de desaparecerem e voltarem para casa. Agora, era Agatha que estava
sobrando... Pois se Sophie e seu príncipe terminassem juntos, eles seriam leais
um ao outro, e a seu novo reino. Ela ainda seria amiga deles, mas seria diferente.
Pela primeira vez, haveria uma parte de Sophie e Tedros que Agatha já não
poderia mais compartilhar. Os dois teriam um ao outro, e ela só teria a si mesma.
A dor que ela sentia por dentro foi aumentando, como se estivesse queimando
por dentro. Não era somente a perda de sua melhor amiga e de seu príncipe que
ela temia. Era a velha Agatha. A Agatha que sabia ser sozinha.
Por isso que ela se agarrava tanto à Sophie como amiga... depois a Tedros
como seu príncipe... duvidando deles, testando os dois, desconfiando deles... mas,
ainda assim, agarrando-se a eles. Porque em algum lugar, ao longo do caminho,
ela também tinha deixado de confiar em si mesma. A dor irrompeu a barreira e
inundou seu coração. Agatha fechou os olhos, sem conseguir respirar, como se
estivesse se afogando...
"Ouvi dizer que te levei ao Baile da Neve e nem sequer soube disso", disse
uma voz.
Ela viu Hort, de peito nu, com ceroulas compridas e os cabelos molhados
pingando. Talvez tenha sido sua expressão, ou o rubor nas bochechas dela, mas
Hort ficou sem jeito e cobriu o peito.
"É... ela está lavando a minha roupa. Não vai se apaixonar por mim, hein...",
ele murmurou.
Agatha deu uma olhada para seu rosto preocupado e caiu na gargalhada,
chegando às lágrimas.
"Ora, não amola!", Hort esbravejou. "Você sabe muito bem que está
impressionada com o que está vendo!"
"Ah, Hort...", Agatha enxugou os olhos. "Um dia, as pessoas vão ler nossa
história e você vai ser aquele de quem vão mais gostar", ela saiu andando.
"Pelo menos dessa vez eu não perdi minhas roupas! Eu que dei pra ela!", ele
gritou. "E um dia, eu terei o meu próprio conto de fadas. Com um final feliz e
tudo mais. Eu posso provar isso..."
"É mesmo? E como?"
"Porque eu encontrei uma coisa que você não vai acreditar."
Agatha parou de andar e se virou. O doninha deu um sorriso malicioso.
"Quer ver?"
Sophie estava em pé ao lado de Tedros no bosque de carvalhos havia quase
dez minutos, mas o príncipe não dissera uma palavra. Ele estava olhando a bela
cruz de vidro, cravada no chão no meio de duas arvores. Guirlandas de rosas
brancas frescas envolviam a cruz, junto com uma estrelinha de cinco pontas
acesa, pousada junto à base. Havia mais dessas estrelas em volta, já queimadas,
em cinzas, como se Merlin voltasse para colocar uma nova estrela sempre que a
antiga tivesse esfriado. Sophie se aconchegou ao lado de Tedros.
"É aqui que o seu pai está enterrado? É bonito."
Tedros virou-se pra ela.
"Desculpe, mas você se importa se eu fizer isso sozinho?"
"É claro, eu o v-vejo na casa...", Sophie ficou vermelha como um pimentão,
deu meia-volta, tropeçando numa estrela apagada e saiu do bosque.
"Sophie?" Ela olhou de volta para o príncipe.
"Obrigado por vir ver como eu estava."
Sophie assentiu rapidamente e saiu apressada. Sem a luz da estrela de Merlin,
agora ela não conseguia enxergar nada lá fora, exceto o contorno da casa, a um
quarto de milha de distância. Ela foi tropeçando pelo brejo afora, com o rosto
ainda em fogo.
Todos a deixaram tão frenética quanto à aliança, tão culpada e nervosa, que
ela só vinha focando em ganhar um beijo de Tedros o mais rápido que pudesse.
Ela tinha se esquecido de que seu príncipe não era um prêmio a ser conquistado,
ou uma linha de chegada por onde ela pudesse passar atabalhoada. Será que ela
sequer tinha pensado em como ele estava se sentindo? Tedros estava encurralado
indefinidamente com a mãe que o abandonara e o amante com quem ela
escolhera passar a vida. Como ele poderia sequer olhar para Guinevere, que dirá
falar com ela, que dirá ficar em sua casa, sem querer matá-la? Principalmente
por estar em seu total direito matá-la, segundo o decreto de seu pai?
Sophie sacudiu a cabeça, mortificada. Tedros provavelmente estava
morrendo por dentro, com o coração despedaçado pelos sentimentos, e ela
entrou flutuando como uma bolha de ar, para dizer que o túmulo de seu pai era
bonito. Agatha jamais teria sido tão egoísta e imbecil.
Sophie suspirou, desanimada, ao se aproximar da casa do sítio. Ela tinha saído
nessa jornada decidida a reescrever seu conto de fadas, mas só estava repetindo
os erros que tinha cometido da primeira vez. Tedros não podia ser forçado ou
apressado a lhe dar um beijo. Mesmo lá atrás, na trilha, fora ela quem tentara
beijá-lo. Sem dúvida, um dos motivos para que não tenha dado certo. Seu
príncipe tinha que vir até ela. Até então, ela esperaria pacientemente, mesmo
que heróis fossem massacrados, mesmo que o sol estivesse pingando, pingando,
até que todos eles caíssem mortos.
Sophie cerrou os dentes. Se heróis estavam morrendo, isso não era culpa dela.
Afinal, não era função de um herói ganhar sua história, mesmo que isso estivesse
acontecendo pela segunda vez? Por que ela deveria levar a culpa se eles ficaram
velhos e inúteis? Eles que cuidassem de suas histórias, ela cuidaria da sua.
Porque esse era o seu conto de fadas. Esse era o seu final feliz. E dessa vez
ela faria direito.
Ao subir os degraus da varanda, Sophie tirou os sapatos sujos. No fim, todos
acabariam gostando dela, é claro — uma vez que ela selasse seu Felizes Para
Sempre com o príncipe e reacendesse o sol. Todos ganhariam por conta de seu
trabalho duro. Enquanto isso, Tedros teria todo o espaço que precisasse. Ela seria
um ouvido paciente para ele, uma convidada perfeita para os seus anfitriões,
uma boa amiga para Agatha: útil, social, educada, como a menina que um dia
mantinha contagem de suas Boas Ações. Sophie respirou fundo, colocou um
sorriso no rosto e entrou na casa, seguindo em direção à sala de jantar... E parou
subitamente.
Lancelot estava sozinho à mesa, comendo uma maçã.
"O-onde estão todos?", ela perguntou.
"Gwen está arrumando a cozinha e Horbst foi atrás da Agatha", ele deu uma
mordida na maçã e empurrou, na direção dela, uma xícara fumegante com um
líquido marrom. "Gwen fez seu famoso chá de alcaçuz."
"É melhor eu ir ver se eles estão bem...", Sophie foi em direção à porta.
"Você tem medo de mim, não tem? Passou a noite toda me lançando olhares
cautelosos."
Sophie gelou. Lancelot estava olhando a aliança em seu dedo, como se só
agora ele a tivesse percebido.
"Eu tenho certeza de que eles vão encontrar o caminho de volta pra casa",
disse o cavaleiro. "Sente-se e tome seu chá."
Seu tom deixava pouca dúvida quanto às opções que ela tinha. Sophie sentou
de frente para ele, com um nó no estômago.
"Guinevere estava dizendo que rainha perfeita você será para o jovem
príncipe. Do tipo que deixaria Arthur orgulhoso", Lancelot mordeu a maçã,
observando Sophie.
"Mas tem uma coisa engraçada. Sabe, todo Natal o Merlin vem até aqui em
casa para dar à Gwen notícias sobre seu filho. Ano passado, eu me lembro que
ele nos disse que Tedros havia encontrado a princesa de seus sonhos. Perspicaz,
impetuosa, uma menina compassiva... uma alma totalmente do Bem, que o
amava tanto quanto ele a ela. Só que eu poderia jurar que o nome daquela
princesa não era nada parecido com Sophie. Sou ruim com nomes, então eu
sabia que deveria ter pensado errado. A Gwen nunca deixa passar nada, então eu
mencionei isso a ela, agora mesmo, lá na cozinha, imaginando que ela fosse me
corrigir. Mas, que coisa estranha. A Gwen disse que eu estava certo: Merlin tinha
dito que o nome da princesa era Agatha, mas até a Gwen concordou que o velho
excêntrico está perdendo o fio da meada naquele cérebro famoso, porque Sophie
era claramente a princesa do menino. Não apenas pela maneira como você foi
atrás dele, no jantar, mas a Gwen notou que você tinha o nome de Tedros tatuado
no dedo, que também exibe a aliança de Tedros", as pupilas de Lancelot
cintilavam. "Só que agora que eu estou vendo, fico me perguntando como Tedros
poderia ter lhe dado uma aliança feita do ouro do Mal."
O coração de Sophie disparou, como se um alarme tivesse soado.
"Ouro de cisne negro, para ser mais exato", continuou Lancelot. "Todo cisne
negro tem um único dente de ouro no fundo da boca — ouro que tem
propriedades abomináveis quando toca a pele humana. Desde a primeira história,
o ouro do cisne negro vem sendo caçado pelos Nunca como uma arma poderosa,
da mesma forma que o Bem há muito busca o aço da Dama do Lago. Durante
séculos, o Mal perseguiu aqueles cisnes e roubou seu ouro, matando até o último
deles. E assim, o Mal tinha todo o ouro de cisnes negros que poderia querer... Até
que o Rei Arthur liderou seus cavaleiros a uma cruzada para destruí-lo. Busca na
qual segui ao lado de Arthur, encontrando e destruindo um tesouro após o outro,
até que não havia nem mais um cisco de ouro de cisne negro na Floresta Sem
Fim", Lancelot sorriu. "Pelo que parece, exceto esse que está em seu dedo."
"Está escuro... É melhor que eu vá procurar o Tedros." Sophie se levantou.
"Os efeitos do ouro de cisne negro são inequívocos", Lancelot prosseguiu.
"Uma vez que você o usa sobre a pele, ele compromete seu coração com o Mal
por mais que você tente ser do Bem. É como uma bússola perversa que o
direciona em direção ao pecado, sem que você sequer perceba. Se o utilizar por
tempo suficiente, ele o convencerá de que você sabe o segredo de seu Final
Feliz... de que ele sabe o que seu coração realmente quer... de que ele pode até
provar quem é o seu verdadeiro amor. Pergunte um nome e a aliança mágica irá
entalhar a resposta desejada em sua pele, como uma luz guia... mas essa resposta
será apenas para levá-lo de volta ao Mal, onde você começou."
Agora Sophie estava anestesiada, presa em sua cadeira.
"As histórias dão errado quando as pessoas acham que sua felicidade é mais
importante do que a de todos os outros", disse Lancelot. "Arthur sabia que
Guinevere me amava e, ainda assim, colocou uma aliança no dedo dela, mesmo
sabendo que ela não seria feliz como sua rainha. No fim, ele deixou uma família
em ruínas e dois amores verdadeiros exilados para sempre. Mas, pelo menos, a
Gwen e eu agora vivemos a verdade. Temos um ao outro, como deveria ter sido
desde o começo. O que o Arthur tem a ver com isso? Ele está morto e a aliança
de sua rainha há muito foi destruída, pois Guinevere não podia usar uma aliança
que nem era dela. Não, se o seu lugar era com outra pessoa."
Sophie viu que Lancelot olhava mais intensamente.
"O que implora uma pergunta à nossa futura rainha", ele disse, levantando-se
da cadeira. Ele pousou as mãos carnudas na mesa e se debruçou à frente, na
direção dela. "Você está usando uma aliança que não pertence ao seu príncipe,
jovem Sophie..."
O cavaleiro sinistro foi chegando cada vez mais perto, até que Sophie viu seus
olhos frios e demoníacos refletidos na aliança em seu dedo.
"Então, com quem você deveria estar?"
A porta foi escancarada e Guinevere entrou com um pequeno cesto.
"Ah! Sophie, ainda bem. Eu coloquei um pouco de peru e legumes aqui para
o Tedros. Ele certamente irá comer se você der para ele. Não quero que ele
fique com fome essa noite, por minha causa..."
Sophie não ouviu as palavras, só sentia o sangue pulsando em seus ouvidos.
"Eu sei que o que você deve pensar de mim, Sophie, que tudo isso é
merecido", disse Guinevere, baixinho, olhando para o rosto dela. "Apenas saiba
que se ele jamais me perdoar, se ele nunca mais me dirigir uma palavra... eu já
sou grata por ele ter encontrado seu verdadeiro amor. Merlin nos disse o quanto
Tedros lutou por sua princesa... quanto vocês dois lutaram para ficar juntos.
Portanto, eu posso ficar em paz, sabendo que meu filho não repetirá os meus
erros", Guinevere sorriu para a aliança no dedo de Sophie. "Porque os corações
de vocês dois só desejam um ao outro."
Ela afagou o rosto de Sophie e deixou o cesto em suas mãos trêmulas.
Enquanto Sophie olhava a mãe de Tedros voltar para a cozinha, ela deu uma
olhada de volta para Lancelot. Mas o cavaleiro tinha desaparecido, como se tudo
tivesse sido um sonho.
"O que é?", perguntou Agatha, tentando seguir a silhueta musculosa de Hort,
no escuro. "O que você encontrou?"
"Você vai ver. Todos vocês me acham um bobão. Grande erro", disse Hort,
coçando a calçola comprida enquanto eles adentravam mais o bosque de
carvalhos. "Erro imenso."
Agatha virou para trás, estreitando os olhos para as janelas acesas da casa e
viu Sophie e Lancelot conversando, à mesa de jantar. Ela se virou para Hort.
"Espere aí, isso não tem a ver com você se transformar em lobisomem, tem?
Você nunca dura mais que dez segundos..."
"Homem-lobo. E é algo muito melhor que isso. Pode confiar em mim. Além
disso, eu não tenho praticado meu talento há tempos, portanto agora só duro cinco
segundos. Não entendo. Por que outros homens-lobo duram tanto tempo? Será
que tem alguma dieta, ou poção especial para resistência? Eu perguntei à
Professora Sheeks, mas ela me mandou para a Sala de Condenação por ser
insolente."
Agatha seguia Hort em direção ao brilho de um lago, à margem do bosque,
refletindo a miragem de Gavaldon, iluminada pelo luar.
"Agora que a Sophie não está mais com o Diretor da Escola, como ele ainda
pode ganhar seu conto de fadas?", perguntou Hort, observando os contornos da
cidade. "Ele não precisa ter o amor do seu lado?"
"Isso que é estranho. Ele não veio correndo atrás dela, mesmo não podendo
ganhar sem ela", respondeu Agatha, enquanto eles paravam na margem do lago.
"Ele mesmo admitiu isso para mim. Por isso que ele precisa tanto dela como sua
rainha. Ela é a única esperança que o Mal tem de vencer."
"É tarde demais para ele."
Agatha sentiu um aperto na barriga.
"Ah... então, o Tedros pode... é... beijá-la? N-não que eu me importe. Mas
você estava na trilha com eles, então eu só estou curiosa para saber como eles
estão indo..."
"Eu não estava falando do Tedros", disse Hort.
Agatha o viu sorrindo para seu reflexo no lago, e revirou os olhos.
"Ai, se você me trouxe até aqui para olhá-lo num espelho..."
Mas agora ela via o que ele estava olhando, revolvendo abaixo da superfície...
pequenas luzes velozes, disparando de um lado para o outro, como um rabo de
cometa, chegando mais perto, mais perto, até que mil peixinhos brancos vieram
nadando, espirrando água.
"Peixes do Desejo? Você encontrou Peixes do Desejo?", Agatha exclamou,
limpando o rosto e se ajoelhando junto à margem. "A Princesa Uma lecionou
sobre eles no primeiro ano!"
"Eu disse que era melhor que homem-lobo. Toque a água e eles irão
mergulhar no fundo de sua alma e encontrar seu maior desejo", disse Hort. "Os
Nunca deveriam fazer a lição logo depois dos Sempre, mas você libertou os
peixes, deu início a um estampido animal e quase incendiou o castelo. Depois
daquilo, a Escola não comprou novos Peixes do Desejo."
Agatha afagava as boquinhas dos peixinhos, sentindo cócegas com seus
beijinhos.
"Imagino que esses também queiram ser libertados, não?", quando ela olhou
em seus imensos olhos negros, porém, ela não viu nada daquele mesmo anseio.
"Eu costumava ser capaz de ouvir desejos", ela disse para Hort. "Talvez eu
também tenha perdido meu talento, assim como você."
"Ou talvez eles já sejam peixes há tanto tempo que nem se lembram que um
dia foram humanos", disse o doninha. "De qualquer maneira, eu vou primeiro."
Ele enfiou o dedo na água. Instantaneamente, os peixinhos zarparam em
direções diferentes, mudando de cor, ficando pretos, prateados e dourados,
enquanto se organizavam montando um desenho. Por um instante, Agatha não
fazia ideia do que estava vendo, até que subitamente o mosaico de peixes ficou
mais claro, como se ganhasse nitidez, e ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.
Os peixes haviam desenhado o casamento ensolarado de Hort e Sophie na
beira de um lago, com uma multidão dando vivas. Os noivos vestiam preto, único
reconhecimento de que se tratava de uma ocasião do Mal, não do Bem.
"Que bonito, Hort", disse Agatha, sentindo a tristeza calar fundo, "mas é
apenas a expressão do seu desejo..."
"Isso que eu pensei", atalhou Hort, "até que vi aquilo."
Ele apontou para o canto da pintura dos peixes, onde havia dois convidados de
mãos dadas — um casal adolescente — que pareciam os mais felizes de todos
pelo novo casal. O menino tinha uma coroa de prata e diamantes em cima de
seus cabelos louros. A menina estava com uma coroa combinando sobre seus
cabelos negros. Agatha perdeu o ar.
"Sou eu e... o Tedros", ela sussurrou.
"E eu jamais desejaria que você se casasse com aquele imbecil", Hort
fungou. "Eu o detesto demais para desejar a ele a mais vaga felicidade, muito
menos uma rainha com tanta classe e integridade quanto você. Portanto, se isso
está dentro do meu desejo, significa que vai acontecer. Significa que todo esse
quadro é mais profundo que um desejo, Agatha. É a verdade. Eu vou acabar
com a Sophie e você vai acabar com o Tedros. Esse será nosso final feliz. Nós
quatro juntos. Ninguém de fora."
Os olhos de Agatha se arregalaram e suas bochechas foram ficando rosadas.
Ai, meu Deus... é isso! Ela poderia ter agarrado e beijado Hort. Essa era a
resposta que eles vinham aguardando... a saída desse conto de fadas tão
emaranhado... o último Felizes Para Sempre revelado, de uma vez por todas.
Sophie com Hort e ela com... A cor foi lentamente sumindo das bochechas de
Agatha.
"Não... não pode ser a verdade, Hort", ela disse, com a voz rouca. "Porque
eu jamais me casarei com o Tedros. E a Sophie jamais amará você."
A euforia do rosto de Hort foi murchando.
"A Sophie ama o Tedros. E, ao contrário de mim, ela nunca duvidou desse
amor", disse Agatha, curvada no gramado ao lado dele. "Tudo que eu fiz foi
duvidar de Tedros. Quanto mais tempo ele e eu passamos juntos, mais eu deixava
de entender por que ele me queria quando poderia ter uma princesa de verdade.
Por isso que eu queria mantê-lo em Gavaldon. Na casa da minha mãe, ele não
era um príncipe. Ele era um adolescente amedrontado, tão perdido e confuso
quanto eu. Mas aqui na Floresta, o Tedros é diferente: ele é leal a si mesmo e vive
com propósito. Em seu coração, ele já é um rei — um rei que precisa de uma
rainha tão confiante e determinada quanto ele, que possa voltar a liderar seu povo
com esperança. Essa não sou eu! Eu ainda estou aprendendo a gostar do que vejo
no espelho e a aceitar que alguém pode, de fato, me amar pelo que eu realmente
sou. Não sou uma líder. Não sou... especial."
Ela ficou olhando o desenho dela mesma, coroada.
"Quando nós estávamos na escola, em corpos errados, o Tedros disse que
temia que eu o visse quando ele não fosse um príncipe. Disse que eu veria que
ele não tem nada de especial... que é apenas um menino comum. Mas esse é o
Tedros que eu amo. Porque o verdadeiro Tedros — o príncipe que será um rei
forte e poderoso — um dia verá que eu não tenho nada de diferente de sua mãe.
Eu jamais quis um príncipe num conto de fadas. Jamais quis uma vida grandiosa.
Sou apenas uma garota lutando para ser comum", ela ergueu os olhos cheios de
lágrimas para Hort.
"Mas a Sophie? Sophie acredita que merece um príncipe. Sophie quer ser
rainha. Tanto que ela está disposta a arriscar o futuro do Bem por isso..."
"Exatamente por isso que ela não pode ser a rainha do Bem!", Hort lutou,
assentindo para seus Peixes do Desejo. "Você não entende? O seu lugar é com
Tedros e o meu com..."
"Então, por que eu não consigo ver meu futuro junto com ele? Se meu lugar
fosse com ele, por que eu não consigo me ver como essa garota do seu desejo?
Estou destinada a ficar sozinha, Hort. Por isso que vou perdê-lo. Porque preciso
aprender a ser feliz sozinha. Como a minha mãe era. Isso pode ser um final feliz,
não pode?"
"Você não o perdeu", pressionou Hort, ainda olhando seus peixes. "Num
conto de fadas, nunca é tarde demais!"
Agatha suspirou desejosa e tocou o rosto dele.
"Até os contos de fadas têm limites, Hort. Nós dois temos que abrir mão.
Temos que deixar que Sophie e Tedros vivam seu Final Feliz. Para nossa própria
felicidade."
"Para minha própria felicidade?", Hort ficou rosa-choque. "Essa é boa, vindo
de você", ele disse, debochando, tirando o dedo da água e dissolvendo o desenho.
"É você que está forçando Tedros a amar Sophie, só para que ela destrua aquele
anel. Eu ouvi o que ela disse atrás daquela cortina na caverna. Eu, pelo menos,
estou disposto a lutar pelo meu final feliz. Você está abrindo mão do seu
verdadeiro amor para alguém com quem ele não deve ficar, esperando que ele
viva com essa pessoa para sempre! Pode ficar dizendo a si mesma, o quanto
quiser, que você não é suficientemente boa pra ele, Agatha. Diga a si mesma que
você está fazendo isso para salvar o Bem. Pode inventar qualquer desculpa para
si mesma, se isso permitir que você durma à noite. Mas nós dois sabemos que
você está simplesmente amedrontada demais para lutar pela pessoa com quem
você deve ficar. E, sabe de uma coisa, princesa? Mesmo que eu deteste aquele
cara até os ossos, isso não me parece algo do Bem."
Hort saiu pisando duro, deixando Agatha sozinha perto do lago. Ela ficou
olhando enquanto ele ia embora, com o coração apertadinho no peito. As bolhas
suaves ecoaram atrás dela, que se virou e viu os Peixes do Desejo novamente
esbranquiçados, pulando na beira da água para que ela voltasse.
"Por favor, me ajudem, peixinhos", disse ela, baixinho.
Os olhos dos peixes cintilaram sob o luar como mil estrelinhas cadentes.
Respirando fundo, Agatha mergulhou o dedo na água e esperou que seu coração
lhe desse uma resposta... do jeito que o coração de Sophie a conduzira tão
claramente a Tedros...
Digam-me o que eu realmente quero, ela pediu.
Os peixes instantaneamente começaram a ficar de cores diferentes. Rosados,
azuis, verdes, vermelhos... vibrando e pulando loucamente, como brasas numa
fogueira. Agatha fechou os olhos, sabendo que os peixes estavam prestes a pintar
a resposta... seu caminho em direção à bondade e felicidade, de uma vez por
todas...
Ela abriu os olhos. Os Peixes do Desejo não haviam se mexido.
Como flores murchas, eles tinham ficado brancos, olhando pra ela, cansados
e vencidos. Agatha sorriu triste, lembrando de algo que sua professora uma vez
havia decretado, diante de tal resultado.
"Mente nebulosa", sussurrou ela.
Agatha afagou os peixinhos para se despedir e seguiu a sombra de Hort, de
volta para a casa. Nem Hort nem Agatha haviam notado que havia uma terceira
pessoa perto do lago o tempo todo, sentado atrás de um grande carvalho.
O príncipe louro não se moveu um centímetro em seu lugar, nem mesmo
quando o sol nasceu na manhã seguinte, com um halo dourado, lançando sua luz
precária. Em vez disso, ele ficou deitado junto à árvore, ouvindo repetidamente o
eco de tudo que ele acabara de escutar, com uma única lágrima brilhando em
seu rosto.

A escola do bem e do mal 3 Infelizes para sempre - Soman ChainaniOnde histórias criam vida. Descubra agora