Capítulo 58

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Caminho pelo campo de batalha. O cheiro é insuportável. Fétido de milhares de corpos sob o sol em putrefação.

Reunir os corpos e as informações é a pior parte, de acordo com Celestium. Pior que a hora da batalha.

E eu estou prestes a concordar. Vomitei as tripas depois do fim da batalha. E agora, não o faço por não ter nada no estômago.

O zumbido das moscas é o único som. A carnificína já acabou faz tempo. Os corpos das sacerdotisas e dos soldados não se diferenciam. Todos são iguais para os vermes.

A bandeira da Fênix está semiafundada em lama depois da chuva. Eu a encaro por um tempo, lembrando de como Kadash tentara me matar, como usava um emblema com aquilo... Piso na bandeira, afundando o restante.

Depois dessa luta eu percebi o motivo de tantos ataques, não era tomar Arnlev, sequer para nos enfraquecer, e sim para mostrar para mim que tinha meu povo nas mãos. Que estava brincando com eles, e que poderia descartar qualquer um, quando quisesse.

Isso faz o poder queimar em minhas veias.

Observo o rosto dos mortos, ajudando a montar as pilhas. Teríamos que abrir uma vala grande demais para enterrar, e deixar aos corvos não é uma opção, ainda mais quando o cheiro piorar. Então vamos acender uma pira.

Eu poderia ter matado Kadash hoje. Acendido uma pira para ele, e para mais uma dezena de fantoches.

Passo por cima de um cavalo morto, os olhos arregalados de medo e o lindo flanco coberto de sangue, a garganta aberta por um golpe de espada. O cavaleiro devia ter caído primeiro.

Por mais que queimemos os corpos. Eu sinto como se estivesse numa batalha contra um único homem. Um homem que planejou uma brincadeira mortal por décadas e décadas apenas para pôr fogo no mundo.

Por dois dias contivemos aquele exército, lutamos e morremos, dois dias antes que eu queimasse os espíritos dos últimos mil nos corpos.

Afasto a mosca que zumbe no meu ouvido.

Mil dos meus irmãos, cujo coração era também o meu.

Olho para o céu com um suspiro, uma mancha de cor roxa acinzentada suja a imensidão azul. Não parece uma nuvem, é mais como alguma coisa antinatural se dobrando no céu.

Dobro os dedos, nunca fui uma fiel, mas peço baixinho para que os deuses me perdoem.

As piras queimam até o alvorecer do outro dia. Um reino de cadáveres em fogo. O cheiro de fumaça pútrida subia e se agarrava em nossos corpos.

A cantiga da morte tocava sobre as pilhas.

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Estalo os dedos ao lado de seus ouvidos.

Ele olha pra mim, é assustador que eu só consiga a atenção dele com um estímulo, e o resto do tempo ele passa olhando para um ponto fixo, como se fora do próprio corpo.

Kadash está amarrado a uma cadeira, preso por amarras mágicas, mas não parece dar a mínima para lutar para se libertar.

- Você sabe quem eu sou? - minha voz sai esganiçada. Ele me encara e pisca.

- Sei.

A voz desprovida de emoções. O rosto, Os olhos vazios. Segurei seus braços na cadeira e me aproximei, até nossos rostos ficarem a centímetros. Lutei contra a vontade de abraçá-lo, de gritar e de socá-lo, simplesmente pelo fato de que ele poderia resolver quebrar meu pescoço se Maori comandasse.

- Vou libertar você. - digo a ele com firmeza. Não acrescento o resto da frase: de um jeito ou de outro.

- Solte me, então.

- O que faria se eu fizesse isso?

Ele repuxa os lábios, como faz quando está pensando. Mas eu sei que as únicas ideias naquela mente não são as dele.

- Se eu pudesse queimar essa cidade, eu não hesitaria em te ver sufocar.

Minha garganta oscila, mas torço meu rosto a permanecer neutro. Ele vira a cabeça, de lado como se analisasse. Depois um momento, ele exclama:

- Você devia ter chorado!

- O que?

- Você não chorou. - ele me encara, como se isso fosse um grande absurdo. - Eu deveria ter feito você chorar.

Abro e fecho a boca. O olhar, a fala, ele parece uma cópia de Maori. Arrepios sobem pela minha coluna e eu afasto a bile na garganta. Maori o mandou aqui, para me machucar e me fragilizar. Logo agora que estamos dando o último passo. Que estou prestes a entrar no jogo dele com minhas próprias peças.

- Queria me fazer chorar? - olho nos olhos dele, procurando. Me mantendo firme, se Maori estiver vendo isso.

- Sim.

- Você ou ele?

Kadash pisca. Como se aquela pergunta não fizesse sentido nenhum.

A profecia reverbera na minha cabeça, de novo e de novo.

Quando o último suspiro do Rei acontecer, perderá um amor para algo pior que morrer.

A porta atrás de mim se abre. Lince lança um olhar frio pra ele. E indica com a cabeça para irmos. Com esforço, me afasto, o deixando na cela.

- Deveria matá-lo. - Lince fala assim que fecha a porta.

- Não vou fazer nada até ter certeza que ele não pode voltar. - Rebato.

- Mas tem que se lembrar que está trazendo um inimigo para dentro de casa. - ela segura meus ombros, evito seu olhar inquisidor. - Não se iluda achando que resgatou um amigo, Scarlett. O que fez foi trazer um prisioneiro, e possivelmente um espião.

- Vou trazê-lo de volta. - murmuro.

- A que custo? - Lince rosna. - Estou te falando isso para seu bem, sua garota burra e inconsequente. Não se agarre a uma esperança tola. Pode tentar, mas se lembre que você tem uma responsabilidade, e um propósito maior. Se eu pensar que está protegendo uma casca sem salvação, eu mesma vou matá-lo.

As garras e os dentes de Lince sempre me protegeram, mesmo que também me rasgassem um pouco. E apesar de ser doloroso admitir, ela estava certa.

Então fui forçada a deixar meu príncipe fantasma em sua gaiola. E parti em direção ao coração de Arnlev, para nos aprontar para nossa última batalha.

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O plano está em movimento. Mas, como esperado de Maori, uma peça está fora do lugar. Meu olhar desliza para a sala lacrada, posso ouvir sua respiração daqui, seus batimentos, ambos controlados.

As Sacerdotisas estão em posição, assim como os rebeldes e os exércitos do Arquipélago dos Mortos.

Alguns meses atrás pensei em procurar as Amazonas. Mas desde o nosso encontro há alguns anos, acredito elas não gostariam de me ver. Não depois que levei uma delas e ela se tornou uma traidora premiada.

Quando penso na manipuladora mental, Josie Brushietta, meu sangue ferve. Meus olhos ardem com a lembrança do pequeno Prometheus se lançando na frente de uma adaga, controlado por aquela mulher.

Quando vê-la, a farei pagar, e a prisão não será o suficiente para ela. Não será como da outra vez.

A porta do salão é aberta com violência. Uma sacerdotisa entra desesperada, o capuz branco caído, revelando o rosto transtornado.

Ela olha ao redor da sala do Medalhão apenas por um segundo antes de me dizer:

- Os deuses estão furiosos. O Medalhão e A Pedra. Não deveríamos tê-los juntado. - ela aponta para a janela e eu estico o pescoço para ver.

A enorme nuvem roxa se dobrando sobre a cidade, com um caminho descendo até o chão.

Parece que os deuses vieram cobrar sua promessa mais cedo do que eu esperava.

- Desgraçados. - murmuro antes de pular pela janela direto para a comoção na praça abaixo.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde histórias criam vida. Descubra agora