capítulo 52

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Sinto sua presença antes mesmo de abrir os olhos. Desgraçado maldito.

A lâmina fica rente ao seu pescoço antes mesmo que eu me levante da cama. William não se afeta, nem sequer pisca quando o sangue escorre do corte fino.

- Como entrou e por que está aqui? - amaldiçoo a dor na minha voz que não consigo controlar. - Se veio para me matar enquanto durmo, deveria ter sido mais cuidadoso.

Quando ele me olha nos olhos fraquejo. Algo naquele olhar azul celeste parece errado dessa vez. Há algo antigo, muito antigo ali dentro.

- Em você também. - ele responde com um sorriso leve e familiar, como se lesse meus pensamentos. William parece calmo. Nada como aquele garoto desesperado que tentou se desculpar comigo no calabouço, quando eu jurei que acabaria com sua vida.

- Me dê um motivo para não cortar sua garganta aqui e agora.

- Eu não vou morrer se fizer isso. - seu primeiro motivo. Tão ridículo que me fez querer ver se se provaria realidade. - Tenho uma mensagem pra você.

- Mensagem de Maori? Estava com ele todo esse tempo, seu rato? Ou você também o traiu? - aperto a lâmina um pouco mais.

- Estive com Lince quando atacaram Arnlev. Eu queria ter visto você.

- Ela me contou. Você fugiu novamente, como o traidor que é. Mas não importa se viesse mais cedo ou agora, eu ainda vou fazer você pagar pelo que fez. - quando começo a deslizar a lâmina ele segura minha mão.

Um poder antigo circula. Como uma corrente invisível me impedindo de derramar seu sangue. Continuo forçando, mas o poder misterioso me impede.

- O que você fez dessa vez? - sibilo. - Que droga você roubou agora? De quem é esse poder?

Ele não responde. Uma sombra passa por seu rosto.

Uso meu poder para arrancar o ar de seus pulmões, parar seu coração. Mas nada acontece. Como se... já estivesse morto.

- Mesmo que eu não possa fazer isso agora. - sibilo. - Um dia você vai ter o que merece.

- Vou. - ele concordou como se enxergasse isso, como se já tivesse visto acontecer. - Mas ainda vai demorar.

William me olha nos olhos, e por mais que sua voz esteja cheia de troça como era quando éramos amigos, há mais dor ali do que eu poderia inflingir a ele.

- Eu vinha porque precisava te contar algo. Mas fui covarde, e fugi. Não consegui contar a você. - ele parece tão triste que é difícil continuar segurando a adaga. - Agora isso não importa mais. Não pra mim.

- Então diga logo. - afasto a lâmina do seu pescoço. Não adiantaria, tentar esfaqueá-lo, ou matá-lo de dentro pra fora, queimá-lo ou congelá-lo, nada funcionaria. Algo estava errado com Will, mas também parecia estar certo.

- Sabe por que eu traí você?

- Veio até aqui com esse poder estranho e bizarro pra me dar desculpas esfarrapadas?

- Você ainda é a mesma cabeça dura que não escuta ninguém? - ele me encara e por um segundo parece aquele William. Fico calada, sem coragem para responder, com medo de que minha voz me denunciasse. Ele continua. - Fiz aquilo porque achava que aquela pedra mística poderia trazer meu pai de volta. O que eu precisava te contar, é que meu pai se chama Racin, ele está aprisionado em uma estátua de pedra há vinte anos por causa do antigo Rei de Mondian.

O mundo para por alguns instantes.

Essa história e esse nome.

- Você não é meu irmão.

Ele deu sorriso triste. Como se visse uma outra vida, caso as coisas tivessem sido diferentes. Ele parece partido; William está partido, sempre esteve, mas agora parece que perdeu qualquer esperança de reconstrução.

- Você não pode ser... o filho que ele pensou que tinha morrido antes de... ir para o Palácio. - as coisas parecem se encaixar e fico desnorteada.

- Sim. - ele murmura. - Era eu.

Ele parece tão pequeno quando diz isso. Tão frágil, tão vulnerável. Continuo engasgada com os fatos. Meu pai biológico vivo. Um irmão. Não consigo formular uma frase, onde isso nos leva?

Ele me entrega uma folha de papel dobrada.

- Isso fala onde você pode encontrá-lo. Foi meu último desejo humano, libertá-lo. - o rosto dele é uma máscara sem emoções, mas eu sinto a dor em sua voz. A dor de alguém condenado. - Eu sei que não mereço esse desejo realizado. Mas você merecia saber.

- Você quer vê-lo?

Ele não responde. O ar no quarto se torna pesado, velho e abafado. Algo antigo irradia de William. Aperto o cabo da minha arma com força.

A coisa azul espectral espirala para fora da boca dele. O que... o que é isso?

Rainha esperada,
Três vezes amada,
De Évbad ,Coração,
De Mondian, o Corpo,
De Arnlev, a Alma.

As duas vozes reverberam no quarto. William havia se tornado o Oráculo. Um calafrio me percorre. O Oráculo fora passado adiante.

Ouça-me, Rainha,
Cuide de seu coração mortal,
Para derrotar o mal,
Quando o último suspiro do rei acontecer,
Perderá um amor para algo pior que morrer,
Rainha imprevisível,
Teu trono indestrutível,
Vale o sangue derramado,
Do teu amado?

Golpeio o Espírito do Oráculo com a adaga e um urro de ódio, ela passa direto, cortando o ar.

- Basta!

A gargalhada infernal me faz golpear novamente atingindo o nada. Eu me recuso a perder Kadash, ele ainda está vivo, eu não o perderei como perdi os outros. Eu o trarei de volta, assim como trarei Jennifer. Dash merece felicidade, real e completa felicidade. Depois de tudo, ele só queria proteger o irmão de sua mãe terrível.

Ele é a única luz que não se apagou.

- Não me faça escolher. - sussurro para o espectro diante de mim. O Reino ou o príncipe. Se eu tiver que escolher será o Reino, meu Coração, meu povo. Sempre serão eles. Por mais que eu ainda ame Kadash, eu não poderia trocar o destino de todos por uma única vida. - Por favor, não me faça escolher.

Liberdade ou Morte,
Se tiver sorte,
Espadas podem cortar e matar,
Mas apenas a esperança pode salvar.
A vida dele pode custar,
Mais do que poderia imaginar.

Então havia uma maneira de salvá-lo. Encaro a adaga nas minhas mãos. Posso trazer Dash de volta.

- Como posso fazer isso? - quando levanto o rosto, ele não está mais aqui. Tanto o Oráculo quanto William sumiram, deixando para trás apenas perguntas e respostas.

"Quando o último suspiro do rei acontecer,
Perderá um amor para algo pior que morrer."

A frase parece gravada na minha mente como ferro em brasa na minha pele, ardendo tanto quanto quando o símbolo da Elite foi marcado nas minhas costas.

Essa profecia jamais se realizará.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde histórias criam vida. Descubra agora