Capítulo 4

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Estou encharcada. Parece que estamos nessa tempestade há dias, lutando para sobreviver.

Estou começando a ficar rouca de tanto gritar ordens. "Rápido! Aumente a força das turbinas!" Ou "Os flutuadores estão nos deixando mais leves! Vamos ficar à deriva se não ajustar isso direito!"

O vento faz as gotas voarem na horizontal, nos atingindo como inumeras balas. Tanto o frio quanto o que acabou de acontecer me faz tremer.

O navio se inclina tanto que tenho quase certeza de que vamos virar. Um cara corre para aumentar a força das turbinas mas vejo onde isso vai dar. O mastro não vai aguentar.

- Saia daí! - grito e corro na direção dele. - O mastro vai se partir!

É tarde demais. No instante em que ele aumenta a força, o mastro quebra bem no meio, caindo bem cima da perna do homem. O grito dele atravessa a tempestade.

Perdemos uma turbina e um mastro. Por um segundo tenho a certeza que vamos todos nos afogar.

Lince corre até o homem e observa o estrago. A turbina caiu em cima da perna dele. Posso ver o osso fraturado para fora da canela enquanto sua outra metade está esmagada. O sangue se espalha por todo o convés se misturando à chuva, fazendo a água em baixo dos nossos pés ficar vermelha.

Lince observa-o sem reação. Analisando o que terá de fazer enquanto ele grita de dor.

- Qual seu nome? - ela se faz ouvir na tempestade. Ele não é capaz de responder, mal é capaz de respirar. Uma mulher loira de cabelos curtos que o conhece responde em seu lugar:

- Ravelo, capitã. O nome dele é Ravelo. - ela faz uma careta ao olhar para a perna esmagada.

Lince se abaixa, ficando bem perto da perna esmagada pela turbina. Os olhos dela estão com as pupilas assustadoramente dilatadas.

- Me tragam um machado. - ela grita alto. Um tripulante jovem, quase uma criança traz um para ela. Lince testa seu peso e olha diretamente para a perna de Ravelo. Sei o que vai fazer.

Não podemos tirar a turbina de cima e os danos seriam irreparáveis, todos os tecidos, vasos sanguíneos e ossos foram esmagados. Não temos equipamento médico o suficiente e estamos em meio à uma tempestade. Lince me passa o machado.

- Lince... - recuso dando um passo atrás. Ela lança um olhar afetado para a própria perna esquerda e prótese e vejo o porquê de ela querer que eu faça isso. Balanço a cabeça concordando.

Tomo o lugar dela e alterno o olhar entre Ravelo e o machado e respiro fundo. Levanto a arma, preparando o golpe.

Nem pisco quando o machado desce pesado e cortante contra a carne.  Corta pele, músculos e osso como se fosse manteiga. O sangue esguicha no meu rosto e nas roupas de Lince, que evitou olhar. O grito de Ravelo é pior e mais agonizante que os outros, me fazendo olhar para o chão. A perna foi decepada num golpe só, menos sofrimento para nós dois.

E esse é apenas o nosso segundo dia no mar.

Levam-no para baixo, para esterilizar e enfaixar o que sobrou. Sento no chão pensando no que acabei de fazer.

- Se não tivesse feito aquilo ele estaria morto. A perna não ia ter mais utilidade, ia ter uma infecção ou hemorragia e ele ia sofrer até a morte. - Lince põe a mão meu ombro, em sinal de conforto. Não ajuda muito. - Vamos. Temos que fazer esse navio chegar ao Arquipélago dos Mortos.

Ela lança um último olhar para às escadas por onde levaram Ravelo e continua a andar.

A chuva parece infinita, ameaçando nos afundar. De repente um raio cai na água logo ao lado do Vingança. Gritos assustados são silenciados por trovões. Ao longe vejo uma das velas de auxílio ameaçando se abrir. Se a corda romper, a força do vento e das turbinas nos fará sucumbir à tempestade.

Corro no convés molhado para chegar  a tempo. Mas o navio se inclina, todos gritam, olho para trás por um segundo. Tropeço, o convés molhado me faz deslizar e bater  a cabeça com força no chão. Manchas pretas tomam conta da minha visão. Ouço o grito abafado de uma garotinha assustada. Tento levantar a cabeça, mas minha força se esvaiu. Ponho os dedos na parte de trás e os tiro molhados de sangue.

O navio dá um solavanco quando a vela auxiliar se abre com tudo e o vento nos puxa para trás. Isso me faz rolar e bater a cabeça contra a escadinha que leva à cabine do capitão. Após isso a última coisa que vejo é o céu chuvoso escurecendo até eu não poder ver mais nada.

***

Pisco algumas vezes. Não ouço o barulho da chuva. Minha cabeça lateja. O que eu...?

- A vela auxiliar! - grito me levantando num salto. Olho ao redor, não estou no convés em meio à uma tempestade, e sim numa cabine com cheiro de antisséptico com alguns equipamentos médicos à vista. Toco a parte de trás da cabeça lembrando do ocorrido. Tive que levar alguns pontos posso sentir.

Sinto uma enxaqueca repentina e volto a me deitar.

- Acordou. - uma voz insatisfeita mais afirma do que pergunta. É a garota da limpeza do convés me olhando com cara de poucos amigos.

Ela me entrega uma aspirina e um copo d'água.

- Não sou sua inimiga. - digo sem expressão.

- Não foi isso que pareceu antes de entrarmos na tempestade. - ela resmunga, posso ver o cuidado dela de manter o copo d'água perto de si, para usar como arma caso precise se defender. De mim.

Desisto de discutir. Minha cabeça dói e eu tenho coisas demais a pensar para entrar em conflito com ela. Digo uma última coisa antes que ela passe pela porta:

- Eu não mataria nenhum de vocês. Conheço o peso de uma morte na consciência.

Ela me lança um olhar rancoroso, mas ainda assim responde:

- Eu também. Mas você cortou uma perna com um machado na frente de todos. Se quer que acreditemos no que diz, vai ter que se esforçar muito mais.



As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde histórias criam vida. Descubra agora