Capítulo 62

475 109 12
                                    

Esta manhã, o sol reflete na minha armadura. Os primeiros raios da primavera se deitando sobre o meu peito, tornando metal, ouro.

Arton voltou pra mim, de qualquer lugar selvagem que tivesse ido, como se sentisse que eu precisaria dele agora. Meu enorme gato-lobo roça a cabeça na minha, me passando as forças que preciso pra continuar.

Um exército de setenta mil soldados alados está voando acima de cinquenta mil soldados humanos: sacerdotisas, guardiãs, os aliados do Arquipélago da Morte, ex-soldados de Mondian e Évbad, pessoas comuns que se revoltam contra o mal e qualquer um que lute por sua honra. Todos sob meu comando.

Seguro Red-Fox nas mãos e observo a adaga tomar a forma de uma espada vermelha e preta, a lâmina perfeita para a retomada de um reino, sedenta por carne e sangue, brilhante por justiça.

Hoje, mais do que nunca sinto a ligação do Coração de Évbad enfraquecida. Não passa de um fio de aranha, tão fino que qualquer movimento brusco o poderia partir.

Eles são meus. Digo a mim mesma pensando em todos que vivem em Mondian e em Évbad. E eu sou deles. Por herança, amor e honra.

Eu fui uma pessoa comum, que na verdade, odiava este lugar e estas pessoas. Odiava a pobreza, a desigualdade. Quando eu soube quem era, eu quis desistir, poupar-me da dor. Mas eu cresci, e percebi que é minha responsabilidade mudar as coisas que me doem.

Antes, guerreávamos, estúpida e insistentemente. Hoje, temos um inimigo comum. E nos unimos pelo bem de todos. Évbad e Mondian. Alyah e Hill. Na morte, estão juntas.

Esse é o final de uma história de orgulho e ódio. E o início de algo que jamais voltará a isso.

Arton sacode as orelhas quando se abaixa para que eu o monte. Ele caminha lentamente até o topo do monte, para que eu possa ver todo o exército abaixo, e todos possam me escutar.

- Guerreiros! - o exército faz um grande estrondo ao bater os escudos. - Hoje, nós marchamos para a vitória! Hoje, as Três Grandes se unem para a luta! Hoje, nós tomamos de volta o que nos foi negado!

Os gritos de aprovação se fazem ouvir.

- Fomos roubados, insultados, humilhados e controlados. Mas isso não será por mais tempo! - mais gritos dos guerreiros. Ergo minha espada acima da cabeça, e o sol nascente faz minha silhueta brilhar, os cabelos brancos refletindo o sol como uma coroa. - Hoje, recuperamos o que é nosso, para que o tornemos melhor do que antes.

Eles estão longe demais para notar as lágrimas em meus olhos. Mas eu posso sentir os que choram.

°
°
°

Nosso exército avança rapidamente para o sul. Lince cavalga à minha direita, Linda à minha esquerda, Ohnin na minha retaguarda e Josh voando acima. E mesmo indo em direção à matança, me sinto guardada pela primeira vez em muito tempo.

Ocasionalmente, lanço um olhar para os cabelos loiros na minha visão periférica. O meu peito aperta tanto quanto mãos dele amarradas ao corsel. Digo a mim mesma que precisamos dele aqui, que isso é necessário, e que se for preciso trair meu coração pela justiça, o farei.

Após um dia e meio de viagem, montamos acampamento. Não há lugar seguro sobre o Mar Congelado, há apenas o menos perigoso. Tomamos o cuidado de nos afastar das bordas cheias de predadores, e dos lugares com risco de rachaduras. Subimos as tendas e nos preparamos para uma noite fria.

Os soldados de Ohnin se juntam numa única grande tenda, e as sacerdotisas montam as suas pequenas e graciosas rapidamente. Eu e minhas comandantes nos acomodamos na tenda de reunião, Lince não se importa, descobriu que Corbie desapareceu na véspera da marcha, sorrateiro como um ladrão, já Nona reclama por não estar na mesma tenda que a namorada, Linda precisa de um bom tempo para convencê-la. Enquanto isso, Josh arrasta Charslie para a dela.

Na borda do acampamento há uma tenda cercada, há duas pessoas lá dentro, mas ninguém mais sabe disso. Imagino quanto tempo vai levar até que ouçamos os gritos de cólera do meu príncipe fantasma.

Jantamos a comida pré-preparada para as noites que vamos passar no frio do gelo, até cruzarmos o Mar. São grãos, brotos e castanhas, além de uma porção de codorna conservada. O bastante para nos manter saudáveis e fortes, mas não para saciar o apetite.

A primeira noite é pior do que as outras. A excitação me impedindo de fechar os olhos, o frio me fazendo tremer até os ossos. A última vez que dormi aqui, muito tempo atrás, quase não acordei no dia seguinte, tinha os lábios roxos e os dedos duros. Dessa vez, tenho uma tenda para as rajadas de vento, e calor humano para o sono. Mesmo assim não durmo a noite inteira. Me sobressalto com um pesadelo sobre a Lua, o Sol e um pássaro de fogo, e uma raposa que se enterrava na neve, e ainda assim queimava.

Fico acordada até amanhecer, observando as fileiras e mais fileiras de tendas, com guerreiros mortíferos dentro delas, imortais, alados, soldados humanos e pessoas comuns. Desta noite em diante, somos deuses na criação do mundo, somos salvadores e heróis, farsas e cadáveres.

No dia seguinte, marchamos até o alvorecer, quando nossos pés duros não podem mais andar e precisamos parar antes que nos tornemos estátuas de gelo. Montamos acampamento e repetimos o processo dia após dia. O tempo passa e ninguém suspeita do meu plano secreto, e assim me convenço que Maori também não suspeitará.

Depois de uma semana, volto a me permitir sorrir, e até relaxar um pouco. Lince me provoca de vez em quando, mas menos do que quando eu era menina. Ela sabe das minhas responsabilidades, inseguranças e sabe que sou uma mulher que não precisa das reprimendas de quando era nova e impulsiva. Ainda que eu ainda seja esbanada. Ôhnin sabe manter a postura por mais tempo que eu, ou seja, o tempo todo. Nem mesmo quando eu e Lince a perturbamos sobre seu romance com o clérigo da Ilha ela não perde a pose. Linda me censura quando eu digo que gostaria de ser mais dura, como ela.

Estamos felizes e até nos divertindo, mas a sombra da guerra assola sobre nós. Tornando cada conversa memorável, já que essa pode ser a última. Mas apesar disso, é bom, amizade, companhia. Eu estive tão mergulhada na minha própria melancolia, que por muitos anos me neguei isso.

Sorrio ao ver Josh dar um cascudo em Nona quando ela rouba a codorna de Charslie, Lince rosna para ela antes que tente alguma coisa, e Linda reclama da selvageria, Ôhnin tenta esconder a risada com uma tosse. Fico feliz, mesmo que essa possa ser a primeira e última vez que estamos juntos. E não me culpo, nenhuma vez, por sentir bem mesmo com as faltas no grupo.

Depois de um tempo maior do que tive paciência para contar, terminamos a travessia do Mar Congelado. Uma brisa com cheiro de pinheiros e lar esvoaça meus cabelos assim que piso na terra. Faz tempo. Penso quando entro em Évbad.

Agora, a distância entre nós e a fortaleza do rei diminui cada vez mais. Os batalhões se dividem, Ôhnin liderará o cerco, enquanto Josh e o exército alado farão a primeira investida. Invictus vai cair pelas minhas mãos.

A esperança em Arnlev foi reavida e a glória da coroa será renascida.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde histórias criam vida. Descubra agora