Capítulo 37 P.O.V Jay

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A coisa mais terrível que já vi.

Milhares pensamentos passaram pela minha cabeça. Revivendo cada dia doloroso da minha transição. Imagino há quanto tempo esses soldados estão aqui. Há quanto tempo Maori tramava isto? Quando ele pretendia me contar? Pode ter sido necessário semanas, meses, para a Repersonalização deles.

Há centenas. Como estátuas empoeiradas. Todos fardados, o brasão da fênix no lado direito do peito. Os olhos abertos, vidrados. As suas respirações em conjunto e seus peitos subindo e descendo são a única coisa que os diferencia de peças de decoração esquecidas num ponto invisível da sala.

Mas há algo ainda mais sombrio. Minha Repersonalização não foi como isto. Minhas memórias se foram, mas um pedaço do meu eu-anterior ficou, minha personalidade continua comigo, meus sentimentos, ainda que muito adormecidos. Meu processo foi cruel, mas o deles parece errado.

Como se as suas almas tivessem sido postas para fora de seus corpos.

- Essas pessoas...? - a voz de Marco morre antes que termine a pergunta.

- Não, elas não estão mortas. - antes que possa ouvir suspiros de alívio, completo: - É bem pior do que isso. É o que devem ter feito com a sua amiga, e eu não consigo entender como.

- Você acha que ela está lá embaixo? - Nona sussurra agarrada ao braço de Linda.

- É melhor rezar pedindo que não. - digo antes de pular da plataforma para o meio do exército, caio agachada, mesmo depois de eu ter entrado no meio deles, os soldados nem se movem.

Meu grupo de resgate desce em seguida, desajeitados, quase derrubando um ou dois soldados.

Passamos pelas fileiras, analisando, um a um. A garota loira de quem me falaram não parece estar em lugar algum. Passamos por cada soldado, eles estão cada vez mais desesperados com a possibilidade de não achá-la, estão quase correndo entre as fileiras.

- Ela não está aqui! - grita a garota canina de repente. - Já olhamos tudo isso! A Josh não está aqui!

Algo se move atrás de nós.

Me viro, procurando a origem do som, esperando um dos soldados-sem-alma quebrar a formação.

Mas nada acontece.

- Vocês ouviram isso? - Linda pergunta, suas orelhas afinaladas viradas para o lado.

Som de passos.

Não há ninguém aqui. Apenas nós e os soldados-fantasma. Coloco o dedo sobre os lábios, pedindo para que façam silêncio.

Meu coração palpita com o medo de que me encontrem. Se Maori souber que estive aqui, vou virar um soldado como estes. Vou ser uma traidora.

Todo o meu corpo congela, as possibilidades, todas terríveis, passando pela minha mente.

Depois o som para. Como se, tivesse chegado ao seu destino, mas não há ninguém aqui.

- Eu acho que ele foi para o galpão! - grita a voz de um soldado. - Venham!

Agora muitos passos rápidos vêm em nossa direção. Droga. Droga!

- Se misturem. - sussurro para o trio.

Cada um vai para o fim de uma das filas de soldados. Eles conseguem se passar por um deles, mas eu, a face conhecida e, ainda por cima usando um vestido de noiva, não vou conseguir passar despercebida.

Mesmo assim vou para a última e mais escondida fila de soldados. Prendo a respiração, esperando que não me encontrem.

Os homens de Maori entram no galpão que estamos por uma porta enorme. Eles tem lanternas e cacetetes, estão procurando alguém.

Eles passam pelas fileiras, procurando.

E um deles vem na minha direção.

Prendo a respiração e espero que ele me veja, mas, de uma forma estranha, sinto algo tocar minhas costas, como uma mão, me assusto esperando um dos soldados. Mas não há ninguém aqui.

O soldado com a lanterna vem verificando um por um do exército de repersonalizados. Por instinto, fico imóvel quando ele se aproxima.

Seus olhos passam rápidos, ele anda devagar, abaixa a lanterna, sua atenção não é direcionada a mim nem por um segundo. Ele vem caminhando na minha direção, rápido, como se não houvesse nada em seu caminho. Se eu não me mover, ele vai trombar comigo.

Ele não está me vendo?

Arrisco. Dou um passo para o lado e ele passa por mim como se nada tivesse mudado e eu jamais tivesse estado ali.

Continuo em silêncio, sem entender e ainda sentindo algo tocar em minhas costas. Espero até que todos os soldados tenham saído, visto que não encontraram o que procuram.

Sinto um leve empurrão para frente e, quando me viro, quase não acredito nos meus olhos. Um garoto se materializa a frente como se fosse uma miragem. Os cabelos ruivos aparecendo gradativamente.

- Vocês estão aqui para ajudar a Josh. Eu ouvi. - ele diz como se fosse normal aparecer do nada. Quase salto de susto.

- Foi você! O soldado não me viu. Foi você? - me atrapalho sem ter certeza de nada do que estou vendo ou falando.

- Sim. - ele diz apressado. - Eu... eu preciso de ajuda. Ela... ela não saiu daquela sala. - ele se atrapalha desta vez. - O príncipe virou um destes, a Josh, eu não sei, ela sumiu, por que ela não me deixou ir no lugar dela? - ele anda por entre as fileiras e eu o sigo, sem a menor idéia do que está acontecendo.

- Também estou aqui para ajudá-la. - digo a ele. Acalme-se.

- Quem é esse?

O trio aparece e pergunta ofegante. Os últimos minutos foram tensos, os soldados quase nos encontraram. E agora, este garoto estranho surgiu com uma conversa sem sentido.

- Meu nome é Charslie.

- Oi. - diz Marco.

- Oi - diz Linda.

- Certo, hora das apresentações. - debocha Nona. - Não temos tempo!

- Ele... - começo a falar mas o garoto ruivo me lança um olhar que me diz para não perdermos tempo. - Vamos.

Passamos pela porta a qual os soldados saíram e Charslie nos guia até a garota.

Ele nos explica como vieram parar aqui. Desde que salvaram o príncipe até ele ser raptado e o péssimo plano os trouxe até aqui e, eu não consigo acreditar em como Maori foi estúpido por trazê-los. Eles poderiam ter conseguido mesmo salvar o príncipe. E ainda podem se eu ajudar.

De repente, um peso atinge o meu peito e eu penso no que estou fazendo. Estou ajudando a libertar outra prisioneira. E eles vieram por causa do príncipe loiro e repersonalizado. Que eu ajudei a prender.

Que eu quase matei.

Meu passo diminui por um instante. Eu não deveria fazer isso. Estou sendo uma traidora.

- Jay, - Marco diz, quando me vê parando lentamente. - O que foi?

É estranho o nome sair da boca de qualquer outra pessoa.

- Nada.

Ouvimos o som de passos no final do corredor.

- Dêem as mãos. - o garoto novo diz. Marco segura a minha mão e a do ruivo, que segura a mão de Nona e ela a de Linda.

Não fazemos perguntas. E encostamos na parede quase sem respirar.

Os soldados aparecem mas, como da última vez, não nos vêem e passam direto.

Um grito quase estoura nossos tímpanos a medida que nos aproximamos.

É melhor encontramos a menina logo.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde histórias criam vida. Descubra agora