20 de Dezembro de 1346, pouco mais de um ano para o início da Peste.
Inicio do inverno e a neve cai sobre a cidade de Paris. É sempre um show de beleza sobre a cidade quando isso acontece e Caleb aproveita cada momento para admirar isso da porta da padaria. O movimento sempre cai em dias frios, e nessa quarta-feira não é diferente. Os flocos de neve se amontoam no batente e Caleb se inclina sobre eles, sentado no chão ao lado da porta. Por alguns segundos pensa como algo tão frágil que se desmancha ao primeiro toque pode ser tão perfeito e bonito.— Caleb? Vem aqui. — Chama Audry — Viu se eu trouxe as notas? Hoje tenho que aproveitar o pouco movimento pra ir fazer as buscas e entregas do Finn.— Não, pai. Acho... — Caleb pensa um pouco, passa o olho por cima das sacas a procura das folhas — Acho que o senhor não as trouxe de casa.— Que memoria essa minha. Eu estou terminando de posicionar as sacas, vai lá. Fala pra tua mãe que estão em cima dos pertences importantes, ela pega pra você. Estava realmente uma bagunça aquele depósito. Apesar de organizado, Audry estava anos-luz de distância de Mariah em arrumação. Caleb, um pouco mais velho e responsável, já não preocupa o pai quando vai da padaria para casa sozinho. Desde novo mostrou ser um garoto sábio. Perto de casa encontra Juliet, filha de uma família vizinha. Ela era dois anos mais velha que ele. Cabelos negros e curtos, olhos levemente verdes que tinham um toque de contraste com a pele clara. E um sorriso muito bonito, que se mostrou ao vê-lo. Era uma garota muito respeitosa e amistosa e tinha muita estima por ele. Talvez por ser ainda novo ele não a observava tanto.
Dizem que homens amadurecem mais tarde. É raro as vezes que isso se contradiz.
Ao contrário da garota, sua mãe não era amigável. Havia ódio inexplicável em seus olhos, mas que felizmente não se derramava sobre o Caleb, não em sua forma total. Caleb chega em casa e vai em direção a sua mãe. Ele a vê guardar algo e havia uma lagrima em seu rosto, uma única e solitária lagrima, mas que ele percebera. Caleb sabia que sua mãe não diria o que a tinha feito derramar aquela lagrima. Mariah nunca derramaria um problema em cima dos seus filhos, ela só queria protege-los deles. Quando Mariah sai do quarto ela o vê, até pelas risadas da pequena Anna com as graças do seu irmão.— O que faz aqui tão cedo? Esqueceu algo? — Mariah diz enquanto vai à cozinha.— É, o pai pediu que eu pegasse umas folhas dele... — Caleb já está no quarto mas não a procura das notas do pai, e sim do que sua mãe tinha guardado. Mariah está na cozinha enquanto ele começa a ler. Sua mãe o tinha ensinado a leitura e a escrita e naquela época ele não tinha dificuldade nenhuma com isso. Todos os dias ela tirava um tempo para ensinar as crianças um pouco, dizia que era importante que eles aprendessem tudo o que pudessem.
Era um bilhete. Havia palavras fortes nele e Caleb não entendia os motivos. E ficara ainda mais surpreso ao ver que era da mãe da Juliet, Eva Miller. Expressava um ódio aos judeus característico de alguns grupos que já existiam na França. Caleb ainda não tinha lido completamente quando sua mãe entrou no quarto. tomando o bilhete a mão dele, ela diz — Caleb! Não foi isso que você veio fazer, foi? Não lhe ensinei a não ler coisas que não são suas? E isso aqui — aponta a folha — não! Não deveria! Caleb não se importou muito com as palavras da mãe. Ele pensava nas palavras do bilhete. Pensava que coisas tão ruins não deveriam ser ditas. Porque sua mãe só tinha derramado uma lagrima sobre aquilo dito a ela? Era algo tão ruim. Ficou em silêncio poucos segundos enquanto pensava, olhando o resto emburrecido da sua mãe. — Porque mãe? Porque ela não gosta da senhora? Mariah estava de pé, ficou distante por uns segundos pensando no que dizer, então se sentou na cama. — Não deveria ter lido essas coisas, Caleb. — Sua voz estava novamente calma, como a Mariah que ela sempre foi — Por eu ser judia, meu filho. Ela me odeia por isso. Existem pessoas no mundo que não entendem aquilo que é diferente deles, e acham que por ser assim há algo que é maior ou melhor dentre essas diferenças. E quando esse algo que eles acreditam não acontece no mundo real... esse ódio nasce. Caleb via que a realidade humana era algo doloroso e indiferente. Algo que aquele Caleb nunca aceitaria.— A senhora... a senhora não vai fazer nada? — Caleb se sentia perturbado vendo o rosto sereno da mãe naquela situação.— E o que eu faria que fosse influenciar em algo? Não podemos devolver as coisas ruins que recebemos de outros. Nos lembrar que o tempo passa e nós temos que aproveitar ele com coisas boas em mente. Quando fazemos coisas boas e deixamos de lado as ruins, nós nos alegramos e ensinamos outros da melhor maneira possível. Nos manter querendo devolver coisas ruins pra provar algo a alguém seria como nos amarrar em correntes. Então temos que viver. Caleb abaixa a cabeça, cabisbaixo sem entender o sentimento que o possui naquele momento, algo que não era doloroso, mas também não era leve. A realidade lhe ensinara o peso de ter paciência. Mariah o abraça. O caloroso abraço da mãe sempre o confortava e era como uma fortaleza para ele. Ela se levanta, pega as notas acima dos pertences e o entrega. — Acho que são essas as folhas do seu pai. Vai, leva elas. Mas espera, — Caleb já se levantava quando ela o interrompe — não guarde nada contra a Eva no seu coração, ok? Não a diga nada sobre, nem contra a Juliet que é uma menina tão amável. Se lembre que tem que viver. Viva, por favor, viva! — ela o segura pelos ombros e o olha nos olhos — Sem rancor, sem ódio. Não deixe que essas correntes impeçam que você viva. E sorri. Um sorriso que dizia a ele o quanto o amava e que aquele pedido dela era uma prova disso. Então ele concordou com a cabeça e sorriu de volta. Fez um carinho na irmã e saiu, voltou a padaria para levar de volta as notas ao seu pai.
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A Morte escreve Vida
Historical FictionEnquanto vivemos, passamos despercebidos por muitas coisas. Momentos, aprendizados. Nos tornarmos ou deixarmos de nos tornar coisas em determinados momentos podem ditar toda uma vida - ou várias delas. Toda vida tem um emaranhado de detalhes. E esse...