Steiner, II

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" Quando tudo começou a mudar e o mundo começou a ruir por ai a fora, ainda trabalhávamos juntos. "Steiner Ltda", nunca fomos criativos, não era nosso papel nos brilhantes, era o Berk. E ele não estava por perto quando criamos. Acho que voltou de viagem na pior noite do inverno de 32. Foi um longo dia. Simbólico também. Tomamos lados e ideologias, e mesmo não sendo muito visíveis, nos criamos. A caneta que hoje escrevo. Foi em si própria a assinatura."

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1932.

  Neve. Neve e frio. Era somente o que se via naquela quarta-feira em Viena. Um mar de branco nas ruas e pessoas agasalhadas. Não era o mais frio do ano mas com certeza o dia que mais tinha nevado. Consequentemente parte dos caminhões tinham ficado presos nas pistas. Alguns deles ainda conseguiam transitar no lado sul de Hetzendorf e um deles chegou ao armazém. Um Volks preto com problemas no motor, que exalava fumaça negra entre as quarta e quinta marchas. E nele um velho conhecido de Aloys dirigia. Aloys estava dentro do armazém quando ele chegou, mudando a cor do dia de um branco vivo pra um negro acinzentado da fumaça. Aloys vestia um velho casaco de pano, o primeiro que fez com o nome da empresa, com uma camisa preta cerrilhada por dentro. Com os braços pra trás e um sorriso de quem amava aquele tempo frio, que se sentia confortável dentro dele.
 O conhecido na direção era Abbe Eisen. Um velho colega de classe dos dois últimos anos da escola. Abbe era alto, tinha olhos e cabelos negros mas pele clara ( ou que já tinha sido, já que vivia seus dias com caminhões e sol nos dias de verão). Era uma mistura que muito se via na Áustria aqueles anos. Abbe era um judeu austríaco, do tipo que se orgulhava mais das suas origens judaicas que das outras.

 Mas tudo começou com orgulho, não é mesmo? E quando eu digo "tudo", eu posso ir muito lá no início, desde a minha primeira pessoa apanhada.

 Com dificuldade desceu do caminhão e veio mancando levemente a perna esquerda, lesionada anos atrás num acidente a cavalo, puxando a calça e pigarreando como um caminhoneiro velho, mesmo sendo tão novo quanto Aloys.
— Como está o mundo lá fora, Abbe?
Surpreso de Aloys lembrar seu nome, Abbe dá um sorriso contido.
— Se fala do frio, se eu soubesse tinha estudado um pouco mais anos atrás. — os dois sorriem e se cumprimentam — Mas o mundo é muito mais difícil do que isso, então não tenho muito que fazer a não ser continuar no volante.
— Claro que tem! É só um inverno, não é?
Abbe dá um sorrisinho, mas em seus olhos há algo, uma descrença de que Aloys tenha entendido do que falava, afinal não vivia seu mundo.
— Então, — diz Abbe olhando o depósito 70% cheio enquanto quatro homens descarregavam seu caminhão — há entregas pra fazer? Estou sem contratos pros próximos 16 dias.
— Espera, — diz Aloys indo buscar algo na mesa, uma folha de papel que estava debaixo de uma pilha de coisas — chegou pela manhã. Tenho 47 caixas de talheres e pratos pra serem entregues. E são duas paradas. Uma em Linz pra buscar mais 30 caixas de panos e roupas. E outra a parada final, Passau.
— Na Alemanha?
— Sim, cerca de 5 horas de viagem regular, porém tem os processos todos de carga, assinaturas, descarga, creio que dois dias. E como você é conhecido meu, sei que posso pagar os 20% a mais.
 Não há muita alegria em Abbe sobre esse contrato.
— Só esse contrato que tem no momento?
— Não... mas — diz Aloys meio desajeitado porque não era a resposta que esperava, e olha os papeis da mesa — esse é o melhor que tenho..m...mas sim, claro que tenho outros. Mais dois, um pra Linz que era nossa primeira parada.
— Ótimo! — um sinal de luz nos olhos dele — Não me leve a mal Aloys, mas a Alemanha não é pra mim.
— Deve alguma coisa por lá?
— Não, mas os olhos de lá me acusam como se fosse. E são novos tempos, por lá. Eu sou judeu, você sabe disso, e por lá não é boa coisa ser um judeu. É o que dizem, e eu não quero testar isso.
— Bom...Isso nunca vai chegar por aqui. Não tem porque levar a mal judeus por serem judeus. Uma puta loucura.
— Espero que não Aloys, felizmente aqui votamos em homens que parecem não pensar assim, como o Adolf da Alemanha. O primeiro turno dessa semana mostrou isso, espero que o segundo também. — diz ele assinando o contrato.
— Provavelmente, provavelmente. Você tem pressa?
— Não, vou ao Hanz e volto em duas horas, já carregaram?
— Claro, claro!
E se despediram. Aloys selou o contrato e o expediu aos contratantes em Linz. E Abbe mancou ao Hanz, um velho barbeiro judeu de Viena.
 Aloys se sentou por uns minutos, pensando no que acontece num mundo dividido, quando homens se impõem sobre outros. No quanto não saberia o que fazer numa situação assim.
 Até que algo o tirou do devaneio. Um feixe de luz do sol brilhou por um furo no teto do armazém, direto em algo em cima da mesa que reluziu em seu olho. Era uma caneta dourada, com detalhes prateados, um pouco gastos do tempo. E tinha em inscrição uma sigla, "A.E."
— Abbe. Eisen. Abbe deixou a caneta dele aqui, felizmente ele ainda volta. E ainda falta uma assinatura mesmo.





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