Por três anos Caleb e Anna moraram com seus tios, Gabrielle e Hills Garden, que era o irmão mais velho do seu pai Audry. Gabrielle era uma jovem senhora apesar de bem mais nova que o seu marido, tinha olhos negros e cabelos longos levemente grisalhos. Se vestia muito e apesar de simpática não era de muitas palavras. Vinha de uma família de pescadores a noroeste de Paris. O Hills tinha média altura e era um homem gordo. Tinha uma personalidade forte e era um vendedor nato. Um sotaque francês muito acima da média e uma voz rouca que talvez fosse devido ao álcool. Apesar de viverem bem não eram uma família feliz desde antes da Peste. A guerra tinha levado deles o que tinha sido a sua alegria por muito tempo. Perderam o seu único filho muito novo no cerco a cidade de Calais, ao norte da França. A disputa por terras com os ingleses era grande em 1346 quando a Peste começou a tomar seu lugar. Mas aquele acontecimento foi um marco na vida deles e Hills nunca foi o mesmo depois disso. A bebida se tornou uma fuga para um homem carregado de dores. Ele defendia que a guerra era a unica maneira de proteger os seus e instigaria isso no coração enlutado do Caleb. A padaria já não existia e Caleb agora trabalhava com seu tio em vendas. Anna saíra da infância e já não era mais a garota alegre de sempre apesar de que a luz do seu sorriso ainda brilhava eventualmente e para o Caleb aquele sorriso era tudo.
Sentia no rosto de Anna o mesmo que sentia no rosto de sua mãe. Tinham personalidades angelicais parecidas. A mãe tinha conseguido passar tudo de bom que tinha para eles.
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Era fim de tarde, um dos lindos fins de tarde característicos do outono. O céu tinha coloração das folhes secas riscado por um tom de rosa que deixava tudo ainda mais bonito. Era a tarde de outono de 26 de Setembro de 1353. Seu tio estava sentado em uma cadeira estranha feita somente pra ele, era macia com espumas, diferente das outras. Era um dos seus dias tristes em que se lembrava do passado mais vezes que o normal e ele estava bêbado, dizia palavras sem sentido até que olhou o Caleb.— Garoto, me olhando assim você me lembra muito seu pai. Ah aquele idiota do Audry... — ria e tossia enquanto olhava fundo o passado — Pensava tão diferente de nós. Mas era melhor que todos nós poderíamos ser algum dia. Caleb já sabia do grande homem que seu pai havia sido, e viu isso com seus próprios olhos.— Quando a guerra começou enquanto todos nós pensávamos em matar ingleses ele pensava em quando aquilo tudo ia acabar e proteger aqueles que ele amava. Infelizmente não entendeu que a guerra era exatamente para proteger os seus....— Respirou fundo como se naquele momento tivesse ido a outro lugar — Mas quando Calais aconteceu — Olhou aos olhos de Caleb — seu pai foi aquele que mais esteve ao nosso lado.— Como foi em Calais? — Caleb não sabia e seus tios não falavam muito disso.— Quando os ingleses chegaram, alguns dos homens do rei foram requisitados e meu filho foi um deles. Quando fizeram o cerco meu filho já estava lá dentro. Nada entrava e nada saia de lá. Ainda assim eles duraram pouco menos de um ano pra conseguir entrar, e quando entraram não havia escapatória para os nossos. Os ingleses eram muitos e não tinham pena de franceses... na verdade ninguém tem pena de ninguém hoje não é mesmo? — Era como se uma nuvem escura tivesse caído sobre o HIlls ao dizer essas palavras — Mas... meu garoto era tão novo, era um pouco mais velho que você e tinha meu espirito forte. Mataram todo e qualquer homem ou ser que levasse o escudo francês. Eles não tiveram piedade e não vão ter piedade se chegarem aqui.
Aquelas palavras colocaram Caleb em contradição na sua mente. Se lembrava de tudo que seus pais tinham lhe ensinado e principalmente das últimas palavras da sua mãe. Ele não queria que as correntes o prendessem nisso e ainda queria alegrar a memória da sua mãe. Mas ele não aceitaria perder sua irmã e se tornar um homem como o Hills. Ele faria de tudo para defende-la porque ela era agora tudo que ele tinha. Aquele cabo de guerra entre seus conceitos na sua mente o estava consumindo desde então.
Gabrielle entra na sala enquanto Hills ainda falava. — Pare com isso, HIlls. Não encha o garoto com memórias falhas sobre você e principalmente sobre o pai dele. Seu pai tinha soluções melhores pra tudo isso, Caleb. Uma vez nos disse que se fosse obrigado a ir à guerra seria um médico em campo e só mataria outros se esses o atacassem. Hills riu mais uma vez — Não o disse que seu pai era um idiota? Com certeza alguém o atacaria. Mas é verdade que os médicos dificilmente estavam em frente de batalha.— A guerra nunca é boa e nos tira tudo que temos. Mas hoje... é inevitável. Espero que acabe e você não precise ir a ela.Já era noite quando aquele dialogo acabou, Hills tinha muitas historias, algumas engraçadas mas em sua maioria tristes.— Vamos Hills, você não anda bem esses tempos. Me dê esse copo. Vamos dormir. — dizia Gabrielle que conhecia muito bem a situação do seu marido.
Eu também conhecia.
Estava lá ao seu lado, sentado à janela observando o cair da noite preparado especialmente aos terrenos, mas que ele não aproveitava. Durante três dias daquele Setembro Hills bebeu todos os fins de tarde. As tristezas pareciam finalmente o terem vencido. No dia 29 de Setembro ele adormeceu em sua cadeira e Gabrielle não o quis acordar, parecia melhor ali. E foi o último lugar em que ele esteve. Na manhã do dia 30 ele não acordou. Eu já o tinha levado comigo. Uma alma humana normal, pesada, com dores e arrependimentos acumulados que não tinham como ser resolvidos e sim aceitados. Eu sentia pena dele e sinto que o melhor que ele tinha era ir comigo, mas que ele também precisava de mais tempo para aprender a aproveitar sua esposa, a fazer rir como às vezes ele conseguia. E só ele conseguia. Pra naqueles fins de tarde em vez de olhar seu copo com álcool... olhar o céu, o quanto era lindo e que ele ainda podia vê-lo. Mas não havia escolha. Só a entrega e eu o levei.
Quando perceberam o que tinha acontecido houve silencio. Eu não entendia. Havia dor, então porque não lagrimas? Só silencio. Gabrielle se ajoelhou ao lado dele e pegou sua mão, fechou os olhos e ficou ali um tempo. Anna se ajoelhou ao seu lado, a abraçou e deu-lhe um beijo como se dissesse "estamos com você", se levantou e foi ao Caleb. Sabiam que Gabrielle precisava daquele tempo pra se despedir do homem que amava e com o qual passou boa parte da sua vida. O enterro foi um tempo depois. Durante aquele momento Caleb pensava na quantidade de coisas que tinham acontecido e em quantas vezes tinha visto aquela mesma cena triste. Ele não queria mais aquilo. A doença. A guerra. A chance de perder sua irmã, o fazia estremecer só de imaginar. Aquilo não poderia acontecer.
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A Morte escreve Vida
Ficção HistóricaEnquanto vivemos, passamos despercebidos por muitas coisas. Momentos, aprendizados. Nos tornarmos ou deixarmos de nos tornar coisas em determinados momentos podem ditar toda uma vida - ou várias delas. Toda vida tem um emaranhado de detalhes. E esse...