Deschamps, I

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 Quando, naquele 19 de Setembro de 1356 cheguei a Poitiers, encontrei o soldado Deschamps perto de entrar no meu domínio, com três furos de espada no tórax de um jeito que nenhum dos melhores médicos franceses poderiam consertar. Encostado num monte de feno o Deschamps, Caleb Deschamps, revezava o olhar semi morto entre o céu ensolarado daquela tarde e uma pequena roda de carroça que tinha na mão esquerda. Em meio a um sorriso ensanguentado ele recita palavras da sua mãe, "A maldade sempre nos leva junto meu filho..." e enquanto se entregava aos meus braços frios, tentava se lembrar como terminava o ditado.



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Me lembro muito bem do Século XIV. De todos os séculos, foi um dos que mais trouxe humanos a mim. Enquanto naquele 1343 a Ásia já se assolava com a Peste Negra deixando-a cada vez mais próxima da Europa, a família Deschamps estava reunida como a maioria das humildes famílias da maior cidade do século, Paris. Caleb com 7 anos de idade estava sentado à mesa que tinham na sala de estar, na cadeira mais próxima da janela de onde podia ver as lindas luzes da rua Saint-Honoré em plena lua cheia. O desconectando do seu devaneio com o céu, sua mãe Mariah Deschamps, o chama. Apesar dos vários anos do qual saíra da sua família na Alemanha não havia perdido o costume judeu de orar em agradecimento ao alimento. Enquanto tentava manter a menor de 2 anos, Anna, sentada na cadeira ao seu lado, ela dizia: "Acorda do seu pequeno mundinho para que eu possa orar, Caleb." Eles sempre sorriam após isso. Diferente dos judeus, nessa casa era ela quem orava. O pai Audry Deschamps era francês, dono de uma ascendente padaria no centro de Paris, e mesmo depois de tanto tempo não aprendeu completamente a oração que sua esposa fazia. Mas algo me dizia ao ver ele ouvir as orações dela que ele não aprendia exatamente porque gostava que fossem feitas por ela e não queria tirar isso dela. O Caleb também o via. O pai e ele tinham o costume de entre as orações numa das frases que falavam sobre alegria, abrir um dos olhos e se olharem. Ele sorria e o pai fazia um sinal de silêncio enquanto dava um sorriso de canto. Após a oração todos se alimentavam e conversavam sobre assuntos do seu dia.


Eram uma humilde família feliz de Paris.


Caleb via nos olhos verdes de seu pai enquanto sua mãe falava e nos castanhos claros da sua mãe quando o pai respondia o amor de ambos.


Olhos dizem tanto pra todos.


Naquela noite seu pai lhe contou como conhecera sua mãe na Alemanha. Audry ainda estava iniciando a ideia de ter uma padaria e viajava muito pra comprar itens, encontrar fornecedores e estudar. Devido ao conhecimento judeu na produção de alimentícios ele foi a uma pequena comunidade judaica, chamados de ashkenazi, para aprender. Lá ele a conheceu. — A Mariah estava como um raio de sol naquele dia, eu nunca tinha visto algo tão perfeito na minha vida. — dizia ele olhando pra ela, que corava pouco mas que só era percebido por ele. Voltou sua atenção ao Caleb, — Até você teria se apaixonado meu filho, se você a visse. — Após Caleb se estremecer inteiro na sua cadeira todos riram, até a pequena Anna. Audry estudou metade do outono com os judeus e as vezes encontrava a Mariah às escondidas nos fundos do seu templo judaico. O relacionamento com estrangeiros era abominado pelos judeus e logo eles veriam isso. Dias antes do fim dos seus estudos eles foram pegos pelo pai de Mariah. Um tumulto imenso se formou na comunidade e as pessoas que sempre olharam com amor pra Mariah, passaram a tratá-la com indiferença. Nos dias que se seguiram olhares de nojo e ódio recaíram sobre eles e aquele amor tomou proporções tristes.— Na minha penúltima noite lá eu decidi levá-la embora comigo. Depois de derramar seu triste ódio em palavras por cima de nós, o pai dela ficou em silêncio e por dois imensos minutos esse silêncio reinou. Quando ele levantou o rosto e olhou pra Mariah... ela sorria mesmo com lágrimas nos olhos. Ela havia sido perfurada com tantas palavras duras de quem amava, mas ainda assim sorria com amor a ele. "Eu te amo, pai" — disseram essa parte juntos. — Então disse que naquele momento havia passado a me amar também e que não podia me deixar, assim como nunca deixaria ele. — Tinha um toque triste apesar da felicidade nas palavras de Audry. Naquela mesma noite eles foram embora, uma despedida triste com a família e o pai apesar das palavras abraçou Mariah antes de sua saída. Um abraço com um vazio profundo, mas ela via bem lá no fundo o receio que escondia o cuidado que ele a tinha. Audry deixou pra trás suas últimas documentações sobre seus estudos, já não lhe importava mais pega-los. E foram. Sabendo que não estariam mais lá, o que deixava pra Mariah aquela despedida ainda mais sentida. Anos mais tarde ela soube da morte da sua mãe e ela não pôde estar lá. Não teve a chance de lhe apresentar seu neto, o pequeno Caleb que ainda era um bebê. Ao seu velho pai só tinha visto uma vez as escondidas quando esse viajou a capital alemã. Nesse dia apresentou-lhe aos netos, o que poderia ser a única vez que os veria. Em meio a tudo ainda os amava. Falava regularmente do que tinha aprendido na infância da senhora que ensinava os costumes judaicos a ela. Mariah não deixou essas tristezas lhe consumir, e aproveitou os detalhes dos momentos de amor e alegria, boa parte deles gerados por Audry, e os maiores sentados com ela na mesa antiga de madeira. Então naquela noite em meio a história da vida deles, aquele ditado se fez presente na vida de Caleb.— A vida é um fornecedor de tudo, filho. — disse Mariah segurando uma pequena carroça de madeira. — A minha teve tristezas e também alegrias, assim como todos. Sendo e convivendo com pessoas falhas sempre há coisas ruins, coisas tristes e más. E a maldade... A maldade sempre nos leva junto com ela no final. Sejam atos ou acontecimentos. Resta pra você escolher se nessa grande carroça você vai alimenta-lo com mais maldade ou se vai ser um amenizador da dor da partida. — E deu um afago no cabelo do garoto. Sua irmã Anna já dormia no colo do seu pai, e sabia que seria o próximo a ir pra cama quando viu sua mãe se levantar.— Já está na hora, Caleb. — ela disse.— Um outro dia te conto sobre a primeira viagem que fizemos. — disse o Audry sorrindo. Mariah o repreende com os olhos. — É uma bela história meu amor, admita. — diz ele, contendo o riso. Caleb vai em direção ao seu quarto pensando o quanto teve sorte por ser um Deschamps, ser esses os pais dele. E enquanto pega no sono pensa no quanto quer que a vida lhe forneça somente as alegrias pra que nada atrapalhe aquilo que tinham.

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