1943.
Já a algum tempo não faço referências históricas em meus escritos, mas nessa época caminhei em estradas pisadas de sangue e sofrimento. Quando os maus tempos chegaram ao século XX, toda a Europa e posteriormente, o mundo, se encharcou em maldade e horror. O que fiz no surto de Peste trouxe a tona o que humanos se tornam diante da necessidade de sobrevivência e excesso de burrice. Mas quando a primeira guerra chegou, vi o que eles fazem quando expostos ao orgulho e a sede aleatória de sangue. A morte de milhões de pessoas por tão pouco comparado ao valor da vida me fez questionar-me se vocês precisam realmente de mim. Afinal fazem seus próprios mortos regularmente. Deveriam por conta própria recolhê-los. Quando o fim da guerra chegou, pensamos, tanto eu quanto vocês, que não passariam mais disso. Mas a chuva ainda pingava e ainda existia corações encharcados de maldade. Maldade agora direcionada as diferenças. Então eu seguia. Recolhendo aqueles que sofriam com a chuva. E alguns daqueles que se enfraqueceram com as goteiras.
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Viena, Áustria.
Era uma fria manhã de sexta-feira quando entrei pela porta de madeira antiga do quarto dos fundos e o vi. O sol ainda se levantava no horizonte do que mais parecia ser o fim de um dia que já durava a mais de cem horas. O cansaço e o peso pairavam por todo local e já era sentido antes mesmo que eu entrasse lá. Era um local bem arrumado, digno de uma família que vivera em boas condições pra uma época de grandes baixas. Ele estava sentado numa velha cadeira de madeira, olhando uma folha amarelada de papel, em branco, que repousava sobre uma escrivaninha. Duas velas iluminavam os traços ainda não traçados dela. E segurava uma bonita caneta bordada. Era um homem pálido, com a barba por fazer. Tinha um cabelo castanho claro desgrenhado, compactuando com a bagunça daqueles dias. E tinha cansaço nos olhos mas não os deixava sair. Aloys Friedrich Steiner era o seu nome. E estava prestes a derramar a si mesmo numa carta.
"Sexta feira, 15 de Outubro de 1943
A Wael Steiner,
aos brilhantes de Hetzendorf.
Olá Wally. Deve se perguntar por que escrevo. Na enxurrada que me perdi ainda não sei o porquê das palavras. Não tenho nem mesmo ideia se um dia serão vistas.
Mas ultimamente tenho pensado em tudo desde que nós criamos o apelido que levamos até hoje. Brilhantes de Hetzendorf. Vocês se lembram de quando todos nos conhecemos? Nunca admiti o quando tinha sido notável aquele fim de tarde...."
Setembro, 1926
Era meados de um verão não tão quente na Áustria. As aulas já tinham se iniciado e as crianças fluíam em direção aos colégios. Os Steiner, Aloys e Wally, iam juntos. Estudavam na mesma escola, e na mesma sala por sinal. Aloys era um pouco mais introvertido que o irmão, que também não era muito falante. Eram gêmeos, porém não eram muito parecidos além de traços na aparência. Já tinham se passado três dias de aulas e só tinha dito palavras a cinco pessoas, o que incluía três professores e pedir licença a duas alunas, o que fez a muito custo. Já dentro de sala de aula, conhecem mais um professor. Julian Frans Becker. Certamente seria o mais novo dos seus professores, devia ter uns 35 anos, mas com cabelos levemente grisalhos.— Olá alunos. Pela quantidade de livros já devem ter percebido que sou um tanto...empolgado. — dá um sorriso — e que eu darei aulas de historia a vocês. Sou o Julian, Julian Becker. Antes de mais nada, como já tenho a lista dos nomes de vocês, vou explicar como será nosso ano. Irei separar vocês em grupos de cinco pessoas. Durante todo o ano vocês irão estudar, fazer atividades e apresentações juntos sobre etapas diferentes da história da Áustria e da Europa. Aconselho a vocês que estejam sempre juntos porque creio que os outros professores usarão esse grupo para suas atividades também. — um burburinho se levanta na sala, — Eu sei, vocês não viram isso até hoje, mas isso vai treinar vocês pro trabalho em equipe e poderia ser pior, acreditem. Então, vamos a escolha dos grupos. Durante boa parte daquela manhã houve uma votação. Era uma turma imensa, cerca de 65 alunos. Aloys e Wael ficaram juntos, por sorte no mesmo grupo. Seu grupo seriam eles dois, Berk Huber, Susanne Mayer e Beatrice Kaiser. Berk Huber estava nas primeiras fileiras da sala. Era um austro-germânico alto pra sua pouca idade, tinha cabelos muito negros, uma pele pálida e olhos castanhos claros. Se vestia muito formalmente, como um bom alemão, mas sorria como um austríaco. Susanne também era austro-germânica, de uma família amiga da de Berk. Tinha curtos cabelos castanhos, e olhos da mesma cor e sempre atentos a tudo. Não era alta e estava sempre com a pele corada o que a deixava com aparência fofa, mas tinha uma expressão forte, o que não deixava que muitos se aproximassem. E Beatrice Kaiser era germânica. Como os alemães que orgulhariam um certo ditador futuramente, era branca de cabelos loiros e olhos azuis. Mas diferente do que acontecia com arianos na época, olhava a todos como iguais e era a mais amável das pessoas. Um jeito meigo que impressionava todos.— Bom — disse o professor olhando o relógio — parece que meu tempo aqui correu demais. Aconselho que aproveitem a tarde pra se conhecerem melhor, conversar, se enturmar, as aulas voltam a sua normalidade amanhã. Desde já, boa sorte a todos. Estão liberados. E a turma que estava calada volta ao falatório, como se estivessem entalados esperando o momento de liberação pra falar tudo que podiam. Assim que finalizado a aula, eles se olharam e se juntaram no fundo da sala.— Então, eu sou o Berk — o mais animado com certeza seria quem quebraria o silêncio. — acho que vai ser ótimo estudar com vocês. Quer dizer, imagina se eu caio no grupo dos Tommen? Todos riem porque estão olhando os Tommen se socarem enquanto saem da sala.— Não seria muito saudável. — diz Wally — Então, como vamos fazer pra sair e agradecer por estarmos no grupo certo e deixarmos de ser desconhecidos?— Consigo sair a tarde de casa, depois que arrumar as coisas com minha mãe. — diz Susanne— A gente também ta liberado a partir das duas — diz Wally — e você... "Bia"?— Bea, Trice. Mas pode ser Bea sim — e sorri — Eu...quando quiserem.— Pronto. O parque temático está na praça de Hetzendorf. Podemos ir lá as três e vê o fim de tarde. — diz Berk— Mas... desculpa perguntar, qual de vocês é Wally e Aloys? — diz Susanne, e todos riem.— Eu sou o Aloys — diz ele, que estava mais quieto e ainda não tinha dito nada além de risos.— Ok ok, "Ally", Wally, ok ok — diz Berk, que gosta de trocadilhos bobos — as três, todos em frente ao cavalo de aço.— Cavalo de que? — diz Beatrice— Você vai entender quando chegar lá.
Era realmente um imenso cavalo prateado, com as patas dianteiras pra cima, lindo e forte. Era a marca do parque, parte do brasão da família Ruschel, donos do parque temático.— Ok. Com certeza não dá pra passar despercebida pelo cavalo. — diz Beatrice.— Eu disse. — diz Berk, rindo, encostado na perna do cavalo. — Vamos entrar, ainda podemos ver uns minutos do show antes do pôr do sol. A apresentação consistia em uma sátira aos partidos políticos e naquele momento falava de um líder com bigode engraçado e jeito irritado. Ainda era tempo de rir do seu jeito de liderar.
Eles logo se achegaram como grupo. Tinham uma sinergia boa e como bons jovens sabiam esquecer as diferenças. O pôr do sol logo chegou e eles foram ao outro lado do parque, perto das matas de Hietzing. A luz laranja do sol fazia brilhar o verde escuros das folhas na mata uns 200 metros dali. Deixava o campo aberto da cidade bem mais contrastado. Eles se encostaram no muro do parque, e comendo salgados viam o sol descer lentamente.— Então seremos nós o ano inteiro. Vamos nos dar bem, não vamos? Quer dizer, não só na amizade, em tudo. — Susanne sempre a mais preocupada, os pais exigiam isso dela.— Claro que vamos, seremos brilhantes como as árvores de Hietzing. — diz Berk— Temos árvores em Hetzendorf também, e elas também brilham, tá? — diz Aloys.Todos riem.— Os brilhantes de Hetzendorf. Hmmm, somos nós então. — diz Wael.— "Brilhantes de Hetzendorf." Ok, somos um grupo agora, já podemos criar um partido, que tal. "Pra que todas as arvores do mundo brilhem como nós." — diz Bea.— Você seria a líder do partido. Tem o rosto bonito de um líder que teria a empatia do povo. — diz Aloys. Os outros em coro dizem "Hmmmmmmmmmmmmmm" e se entreolham.— Nã..Não foi com esse objetivo que eu quis dizer poxa!— E nem todo líder é bonito como a Bea, sejamos francos. — diz Berk, fazendo um bigodinho com uma folha. E nem todo líder é bom. E é esses que seguem aqueles encharcados do passado.
Brilhantes de Hetzendorf. Ali se criou o nome que seguiria com eles até o final. Brilharam na escola, apresentaram bons trabalhos e conseguiram boas notas. Todos os chamavam pelo nome até o fim do colegial, e alguns ainda lembravam até depois dele. Seguiram amigos mediante as nuvens de chuva. Entre as gotas que caiam do céu. Do líder não tão bonito que se popularizava entre eles.
" Vivemos bons anos, Wally. Crescemos e fizemos jus ao apelido que carregávamos até outros tempos. Mesmo após o colegial, quando decidimos nosso futuro. Quando cada um de nós se tornou adulto e criamos nossas vidas, ainda andávamos juntos. Mesmo quando ainda riamos da situação do país, até quando começamos a levar a sério como os adultos. Fomos brilhantes por bons tempos."
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A Morte escreve Vida
Historical FictionEnquanto vivemos, passamos despercebidos por muitas coisas. Momentos, aprendizados. Nos tornarmos ou deixarmos de nos tornar coisas em determinados momentos podem ditar toda uma vida - ou várias delas. Toda vida tem um emaranhado de detalhes. E esse...