O elefante e a corda pt 1

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  “Como eu desejo fugir dos dias normais!   Eu quero correr solta com minha  imaginação”- Alice no País das Maravilhas.

— Lene? Tá tudo bem?- Stephan me olhou preocupado.

  Levantei a cabeça e vi que meus pais já haviam saído e eu tinha escrito "Princesa do Luar" e "Biblioteca" com meu cereal de letrinhas. Princesa do Luar, foi isso que aquela voz me chamou no sonho.

— Eu estou bem, eu só... Não dormi muito bem hoje. Fiquei pensando nos preparativos para a minha festa e acordava de hora em hora.- bem, era uma mentira descarada, mas ele não precisava saber disso.

— Você quer descansar um pouco? Sua festa só começa as 15:00, dá tempo de tirar um cochilo até lá.- neguei. Não queria mais dormir e acabar sonhando com aquele lugar fantástico para depois acordar e ainda me ver aqui.

  Olha, eu moro em uma pequena cidadezinha no interior chamada: Ellon. Não é lá um lugar muito moderno como no centro com toda sua tecnologia, mas ainda podemos nos dar o luxo de termos nossa própria internet em casa. Não tenho com o que me queixar dessa cidade, mas sabe... Depois de um tempo, tudo se torna extremamente rotineiro. Como se essa vidinha no campo não tivesse mais sentido. Mas esses sonhos que eu venho tendo esses anos parecem sempre me lembrar que eu sou diferente, de alguma forma, mas eu sinto isso. Sinto que por mais que eu tente me adequar, nada parece certo, como se eu não pertencesse aqui.

   Dei uma última golada em meu chá de hibisco e sorri para meu irmão, largando a xícara no balcão.

— Vamos treinar um pouco, que tal?

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  Me joguei no banco de madeira do parque enquanto sentia meus músculos reclamarem pelo esforço que foi os movimentos com a espada. Treino esgrima com meu irmão desde que eu contei para minha mãe que ouvia sussurros, ela sempre achou que ter um esporte que exija minha completa atenção fosse bom para me distrair do que os sussurros falam. Ah, e o chá também, com certeza.

— Lene, você está bem?- Jacques se aproximou de mim juntamente com Aidan e Yohanna.

— Sim, só estou meio cansada. Está fazendo um calor de lascar e o Stephan não pegou leve no treino de hoje.

— Você quer tomar um sorvete com a gente? Isso sempre te anima.- Yohanna se prontificou. Assenti mesmo sem estar muito no clima.

   É errado pensar que seus próprios amigos são rotineiros e entediantes? Eu não sei, me parece errado pensar esse tipo de coisa sobre pessoas, é como imagina-las como objetos que você pode jogar fora quando não gosta mais ou substituir se alguma parte quebrou.

— Boa tarde, senhora Groove. Um sorvete de menta com cocholate, um de morango, outro de nozes e um milk shake de chocolate, por favor.- Aidan pediu a sorveteira. Ela sorriu amigavelmente e foi preparar nossos pedidos. Céus... Até a mulher rechonchuda com lindos cachos adoráveis parecia estupidamente simples e rotineira.

  Minutos depois, lá estava eu, me sentindo a pior pessoa do mundo por ver meus amigos e familiares como seres substituíveis, enquanto meus amigos davam graças pelas aulas terem finalmente acabado. Será que um dia essa sensação incômoda vai acabar?

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  Aperto com força o pingente em formato de lua que eu carrego no pescoço. Minha mãe diz que foi um presente antigo de uma tia minha que morreu faz anos. Nós quase nunca falamos dela, porque quando eu fui perguntar qual era o nome da mulher para minha mãe, ela começou a se abanar e chorar. Não sei vocês, mas eu não sou o tipo de filha que gosta de ver a própria mãe hiperventilando por minha causa, então nunca mais toquei no assunto.

  Suspirei pesadamente, olhando para a luz colorida que já invadia minhas janelas. A música era uma mixagem que meu irmão criou, e ele estava na mesa como DJ nessa noite do meu aniversário de 19 anos. Sorri por ele finalmente fazer algo que realmente goste, sei que esgrima é só mais um hobbie do que um sonho e meu aniversário era a oportunidade perfeita para mostrar ao meu pai o quão importante a música é pra ele.

  Soltei mais um suspiro, agora para meu reflexo no espelho. Meus cabelos negros estavam trançados em uma belíssima trança lateral que minha mãe fez. Eu usava um vestido rosa godê sem mangas que ia até os joelhos, dando destaque a minha pele cor canela, uma maquiagem leve que valorizava meus olhos cor jabuticaba, e um salto agulha branco. Eu parecia uma princesinha. Mas não a princesa que meu sonho me chamava, aquela parecia uma princesa forte, determinada e que sabia muito bem quem era, onde estava e que parecia feliz com tudo a sua volta. Feliz, não satisfeita ou acostumada. Mas feliz de verdade.

  Desci as escadas para finalmente poder encarar a multidão de pessoas lá fora, mas quando passei pela porta do escritório do meu pai, eu ouvi novamente. Aquele sussurro, quase inaudível, que me chama desde criança. Olhei para dentro do escritório escuro e a luz da lua era sua única iluminação. Olhei para os dois lados, verificando se ninguém apareceria alí para me pegar no pulo. Entrei no escritório e deixei a porta entreaberta, para que eu ouvisse se alguém se aproximasse de mais de onde eu estou.

  Tsc, isso é ridículo! O que raios eu estou procurando aqui? Olhei para a enorme mesa de mogno e me sentei nela, olhando entediada para aqueles livros nas estantes. Eu simplesmente invadi o escritório do meu pai pra não achar nada interessante, até porque, o que eu achava que ia encontrar? Um mapa do tesouro? Qual guarda-roupa dessa casa leva pra Nárnia? A localização exata do acampamento-meio-sangue?

  Já começava a levantar para ir embora, quando eu vi. Entre vários livros com aspecto sem graça, a luz da lua parecia reluzir ao contato do livro de capa prateada. Me levantei e peguei ele cuidadosamente da estante. Como eu não o vi antes? O livro parecia que foi trançado do melhor tecido já inventado, e as entreliças pareciam até de verdade. Li a capa devagar, passando meu dedo pela superfície empoeirada: O mundo secreto de Maribian.

"Querido leitor, se você está lendo este livro, então você também foi acometido pela esmagadora sensação de que tudo neste mundo é volátil, fútil e desprezível. Não se culpe, você não foi o único a ter esses sentimentos, mas pode ser o único que teve a coragem de admitir isso para si mesmo.

  Engoli em seco, mas prossegui com a leitura.

... você, como um exímio curioso, deve estar se perguntando: onde fica Maribian, e por que eu nunca ouvi falar deste lugar? Maribian é um continente que há muito tempo desapareceu aos olhos humanos, poucos sabem da existência e os que sabem dizem ser uma lenda antiga. Mas essas pessoas perderam algo que você certamente tem aos montes: fé. Por isso eles nunca mais puderam voltar para lá, eles não acreditavam mais em Maribian. Mas se você acreditar o suficiente, a passagem com certeza te reconhecerá como digna de conhecer essa terra misteriosa."

  Muito legal tudo isso, mas como eu chego nesse bendito lugar? Não que eu pretenda ir agora, mas estou um pouco curiosa até onde esse livro vai.

"Se você é curioso o bastante para ainda estar aqui, provavelmente deve se perguntar: como eu chego até lá? Bem, em uma noite em que a mais brilhante estrela seja capaz de iluminar a pedra mais brilhante, o mapa se revelará. É um evento raro que só ocorre de 20 a 20 anos, mas se você tiver pressa, sugiro procurar uma coruja branca em cada ponto dos pólos. Você precisará de uma pena de cada uma delas, depois de conseguir precisará mergulhar a pena em um xarope caseiro feito de...

  Larguei o livro na hora assim que um pedaço de papel começou a surgir na mesa. Abafei o grito para não chamar atenção de ninguém. Desdobrei o pedaço de papel antigo com as mãos trêmulas, logo me deparando com um mapa velho da floresta de Ellon.

  Okay, isso só pode ser pegadinha! Deve ter alguma câmera em algum lugar, certeza que o Stephan que pendurou, ele ama tirar uma com a minha cara! Mas... O mapa surgiu do nada, literalmente brotou! Stephan não teria tanta paciência assim para bolar um plano como esses.

  Peguei o mapa e fui traçando as rotas até chegar a possível passagem que é atrás da cachoeira que fica uns 8 km daqui. Uma passagem para um mundo secreto quase ao lado da minha casa! Mas... Esse livro parece estar aqui há algum tempo, por que eu nunca ouvi ninguém comentar sobre ele?

  Ouvi passos no corredor, então enfiei o livro de baixo da cadeira e guardei o mapa dobrado de qualquer jeito no meu sutiã. Depois eu investigaria isso mais a fundo...

O Chamado do LuarOnde histórias criam vida. Descubra agora