Motivo de desonra

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   “Nunca sei ao certo o que vou ser de um minuto para o outro.”- Alice no País das Maravilhas.

— Esse monstro é o tal Dementador.- Eariel me explicou quando foi ao meu quarto na casa de campo da Clareira naquela noite.- Ele se alimenta de pensamentos negativos e dúvidas.

Depois que chegamos a Clareira eu não quis ficar muito perto de outras pessoas. Ainda me lembrava do que havia acontecido naquele corredor de memórias e de como aquele monstro parecia me conhecer. As palavras dele e a sensação de meus sentimentos mais íntimos estarem sendo sondados ainda permanecia na minha cabeça.

- Quer falar sobre isso? - Eariel perguntou. Me joguei na cama e peguei um biscoito da vasilha na mesinha ao lado.

- Não eu só...- suspirei.- Acho que minha mãe me abandonou.

- Você tem certeza?

-Eu vi uma lembrança de quando aconteceu.- mordi o biscoito. - Ela... Praticamente me entregou de bandeja.

- Mas você também não disse que ela não queria falar sobre a sua existência para seu pai, com medo dele mentir para você?- me lembrou.

Fiquei em silêncio.

- Você não pode perder a fé desse jeito, Lene. Tem muito mais coisas que você não sabe sobre sua mãe, apenas insista.- ele segurou minha mão.

- Talvez... não valha a pena.- sussurrei.

Eariel ficou quieto durante alguns segundos, antes de voltar a falar, em um tom mais baixo e reconfortante.

- Quando eu tinha 3 meses de idade eu fui deixado na porta da cabana dos meus pais adotivos. Talvez você já tenha ouvido falar, mas os transmorfos não são conhecidos pela generosidade e acolhimento. Somos parentes distantes dos féericos selvagens, o que nos faz ser um pouco mais brutos do que a maioria dos outros maribianos. E foi uma verdadeira surpresa para as tribos que meus pais acolhessem uma criança abandonada.

- Por que tão surpreendente?

- Os transmorfos são uma espécie bastante religiosa. Acreditam na lenda de uma floresta encantada que foi feita por uma transmorfa de 3.000 anos que abençoava quem ela considerava poderoso ou não. Crianças abandonadas são consideradas amaldiçoadas segundo a lenda, podendo trazer desgraça para a tribo que a acolher. Por isso passei grande parte da infância sofrendo bullying de outras crianças da minha tribo.

- Que ridículo! Isso não era sua culpa.

- Mas eu realmente trouxe desgraça para minha família, Lene. Quando completei 14 anos, eu já tinha idade para o ritual de iniciação para ser um futuro líder da minha tribo e ser formalmente apresentado como transmorfo, banindo assim minha suposta "maldição" de renegado. O ritual era o seguinte: deveríamos assumir uma forma de um mamífero por pelo menos 10 minutos dentro do lago Kirhyk, conhecido pelas águas extremamente frias. Se saíssemos antes de pelo menos 5 minutos, seríamos eliminados e condenados a viver como eremitas na biblioteca de Caelum Fiquei apreensivo, mas minha hajji - que é equivalente a mãe na língua de vocês - me confortou e disse que passando ou não no teste ela me apoiaria. Assumi a forma de uma foca, e permaneci na água por 45 minutos, até que fiquei entediado de esperar por mais tempo e subi até a superfície.

- E o que aconteceu?- cruzei as pernas em posição de índio. A expressão de Eariel se tornou vazia.

- Eu ganhei, claro. Fui condecorado pelo ritual e pela inteligência de ter escolhido um bom mamífero. De noite, os outros concorrentes resolveram se reunir perto do lago para beber e falar sobre nossas ambições por cada tribo. Acontece que eu era muito jovem e inocente, então quando cheguei lá, eles me acorrentaram nos pulsos com cordas besuntadas em hibisco, fazendo minha carne queimar, e me torturaram durante toda a madrugada. Lá pras 5 da manhã... minha hajji veio me procurar.

"Ela viu o que eles estavam fazendo comigo e tentou correr para a tribo, para alertá-los e me salvar. Mas eles pegaram ela e a torturaram bem na minha frente, me obrigando a ver minha própria hajji agonizando, sofrendo, e por fim, morrendo. Me arrastaram até o acampamento da minha tribo, me jogaram aos pés do meu pai adotivo, jogando o corpo dilacerado da minha hajji ao meu lado. E disseram que era aquilo o que acontecia quando se acolhia um amaldiçoado. Minha tribo me rejeitou, meu próprio pai me rejeitou, e me exilaram de lá, me tornaram um eremita. Até que Caelum me acolheu, e eu preferi os livros do que a arte das espadas."

Não sabia o que deveria fazer nesses momentos, então simplesmente segui meus instintos e abracei Eariel fortemente, tentando transmitir através daquele abraço que, independente da situação, eu sempre estaria lá por ele. Que mesmo que eu fosse menos treinada do que ele, eu faria o possível para protege-lo do que eu pudesse. Senti o cheiro de pinheiros e maresia que emanava dele, inebriando meus sentidos, e sua tensão inicial foi se desfazendo aos poucos.

- O-o que eu quero dizer é que eu não vejo minha mãe a centenas de anos, porque ela está morta. E se eu tivesse qualquer oportunidade de vê-la, pelo menos uma vez, eu sacrificaria tudo por esse encontro. Não desejo que você passe pela mesma situação que a minha, Lene.- senti ele expirar no meu pescoço,me fazendo arrepiar toda. Conseguia sentir suas palavras passarem por minha nuca, as lufadas de ar quente... Como seria a sensação de seus lábios no meu pescoço? Percebendo que ele esperava alguma reação, me forcei a dizer alguma coisa.

- Eu também não, Eariel.

Nós afastamos por um pouco, o suficiente para podermos nós encarar. Seus olhos multicoloridos me olhavam com desejo reprimido e expectativa, fazendo meu sangue ferver dentro do meu corpo. Eu não fazia ideia do que diabos estava acontecendo conosco, mas essa sensação... não é nem um pouco incômoda. Eu tinha plena consciência do seu corpo próximo ao meu, e tanto contato com a pele alheia me deixava indecisa entre o desconforto e o desejo. Olhei para os lábios de Eariel, será que eram tão macios como pareciam ser? Como será o gosto deles? Como será a sensação de tê-lo tão intimamente perto de mim? Por que raios eu estou pensando tanto nisso?

- Você... você sabia que eu tenho uma aparência fixa?- ele sussurrou. Lambi meus lábios, os sentindo secos, e seus olhos acompanharam o movimento devagar. O que diabos está acontecendo com ele também?

- Você tem?- ele assentiu.- Mostre-me então.

- Não posso, só as pessoas mais achegadas de um transmorfo podem ver essa a verdadeira forma dele. Somos proibidos de falar sobre ela desde o nosso nascimento.- respondeu. Dei uma risadinha.

- Se você não tinha intenção de me mostrar, então por que me contou?- rebati. Ele abriu um sorriso fofo.

- Você tem razão.

Seus olhos fecharam e sua pele começou a brilhar como se pequenas estrelas pousassem nele. Até que a iluminação diminuiu e sua aparência verdadeira surgiu. Ele tinha belíssimos olhos azuis sinceros e cabelos castanhos claros, quase puxado para o loiro, sua pele era bronzeada, e me perguntei se ele saia de vez em quando como ele mesmo apenas para tomar um pouco de sol e se sentir livre. Seus olhos procuraram os meus em um claro sinal de aceitação, me deixando surpresa já que nunca vi ele agir assim antes.

- Você sempre vai ser o transmorfo rabugento viciado em horários fixos que eu conheço, Eariel. Uma aparência fixa secreta nunca vai mudar isso. Mas eu gosto.- arrisquei por uma mão na sua bochecha. Ele estremeceu ao meu toque.

Meu coração errou uma batida quando seu rosto se aproximou, me levando a creer que seria beijada, então fechei os olhos em expectativa. Ouvi apenas um suspiro cansado vindo dele e depois ele se afastou. Abri os olhos, sentindo a frieza me abater. Ele olhava para todos os cantos do meu quarto, menos para mim.

- Isso foi... Eu já provei o que eu queria provar para você, nunca deveria ter permitido que isso chegasse a esse ponto. Não com você.- ele sussurrou, senti meu peito doer.

- Eariel...

- Boa noite, Selene.- ele se levantou da cama e saiu pela porta do quarto.

Dúvido muito que alguém teria uma boa noite depois de uma rejeição dessas.

O Chamado do LuarOnde histórias criam vida. Descubra agora