O lago dos que crêem

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   “Nós nunca descobriremos o que vem depois da escolha, se não tomarmos uma decisão. Por isso, entenda os seus medos, mas jamais deixe que eles sufoquem os seus sonhos.”- Alice no País das Maravilhas.

Peguei as chaves no balcão da cozinha, do carro do meu irmão. Subi para o escritório vendo o livro de baixo da cadeira, peguei ele e corri até a garagem, não me importando em abandonar minha própria festa. Apertei o botão da garagem e sorri ao ver o Fusca azul celeste.

— Oh hey, Betinha. Preciso que colabore comigo hoje, querida.— desativei o alarme e entrei no carro, sentindo o cheiro de sorvete de morango.

  Dei partida no carro, torcendo pra ninguém ouvir e depois de jogar para a primeira marcha, pisei fundo no acelerador para ir até o Lago de Cristais.

  Acelerei em meu fusquinha azul e sai em disparada aos 40 km por hora, parando perto de dois adolescentes, que quando viram meu carro, começaram a se socar feito dois marmanjos. Dei risada quando lembrei de Stephan e o motivo de ele pintar Betinha de azul celeste, nunca conheci alguém tão sedento de ver uma confusão como meu irmão.

  E agora eu provavelmente nunca mais vou vê-lo novamente. Limpei uma lágrima traiçoeira que caiu, me recompondo em seguida. Não posso deixar essa situação me abalar, tenho que me manter viva por enquanto e se sobrar tempo eu posso sequer pensar em sentir pena de mim mesma. Não agora, agora eu tenho que ir atrás dessa maldita passagem para Maribian.

— Seja lá onde for.— falei olhando por um segundo para a lua na, talvez, esperança de ser respondida. E como sempre, nada.

×|×
×|×|×

    Afastei o desconforto que passou por minha espinha ao ver o espelho d'água, provavelmente frio ao ponto de doer os ossos. Inspirei profundamente e re-li o trecho do mapa.

   Você precisará nadar até a cachoeira do lago, atrás dela você encontrará uma pedra de ônix em uma caverna que só se revela nessa noite. Quando a luz da lua refletir as águas, segure a pedra, atravesse e acredite.

   Prendi meus cabelos em um coque desajeitado, levantei a barra da calça jeans até o joelho e tirei minhas meias. Porque eu poderia até ficar com o tênis molhado, mas as meias já é uma tortura. Entrei devagar na água, arregalando os olhos com o gelo que aquilo estava. Maldição, maldição, maldição, maldição. É por um bom motivo, sua vida depende disso então não reclame.

   Nadei até a bendita cachoeira, me amaldiçoando por ser tão burra e esquecer que prender o cabelo não adiantaria de porcaria nenhuma. Reprimi um gemido de frustração e passei por ela, achando uma caverna iluminada apenas pela lua e a pedra de ônix que parecia uma estrela naquela escuridão. Eu me sentia como um imã, atraída pela aquela pedra como se fosse uma força maior. E se eu tinha alguma dúvida de que aquele lugar realmente existia, elas foram extintas naquele segundo.

  Quando eu segurei aquela pedra, um choque me acometeu, e fui guiada novamente até a cachoeira. "Atravesse e acredite" foi isso que ele disse.

— Bem, eu acredito.

  E quando atravessei, senti meu corpo ser jogado até o ínfimo oceano azul que parecia uma linda canção mortífera, que abraçaria meus ossos quebrados e os cobriria com seu manto azul belo e cruel. Seria uma morte rápida mas dolorosa, espero desmaiar antes de sentir. Mas quando eu estava a quase um palmo da água, era como se eu emergisse, em uma baía, percebi segundos depois.

  E então eu olhei para o céu e vi uma Lua com um pedaço faltando. Como se tivesse sido quebrada aquela parte da Lua. Saí da água, tirei o tênis e me sentei na areia por pelo menos 15 segundos, apenas para enfim me dar a oportunidade de pensar e respirar. Bem, Maribian é real, assim como as coisas que minha vó disse. Eu sou filha de uma mulher chamada Arcane, que pela reação da minha... Alícia, é a mulher que me deu o pingente. Olho para a lua que parecia emanar familiaridade, assim como aquele lugar.

  Tirei uma mecha de cabelo do rosto e olhei para a gigantesca floresta de pinheiros que se abria atrás de mim, as copas das árvores tampando quase totalmente o céu, sobrando apenas raios solares tímidos. Senti gotas quentes caírem em meu colo, olhei para cima achando que eram gotas de chuva quando percebi eu que estava chorando. Tentei prender o choro mas quanto mais eu prendia, mas eu soluçava. Meus pais, meu irmão, meus amigos... Tudo isso foi uma mentira, a minha vida toda foi uma mentira. Mentiram para mim até o último segundo e duvido muito que me contariam a verdade antes de me matar cruelmente, apenas por medo de eu me tornar aquele alguém que eles temem a vida toda.

  Corra.

  Aquela voz. Aquela mesma voz que me chamava nos meus sonhos de
"princesa do luar", parecia mais nítida agora como se o sinal de uma ligação melhorasse. Ergui a cabeça procurando o dono ou a dona da voz, apenas para encontrar a imensidão azul a minha frente e a floresta atrás.

Selene, corra, agora.

  Me levantei, peguei meu tênis e calcei as pressas, quase tropeçando nos cadarços enquanto corria para a floresta. Tropecei várias vezes nas pedras, raízes, e quase bati em uma árvore. Não sabia de quem ou de o que eu estava correndo, mas estranhamente eu confiava naquela voz.

   Tropecei em uma raiz e cai em um arbusto de amoras silvestres, me arranhando nos galhos dele. Reprimi um grito quando coloquei o pé no chão, sentei novamente cheia de dor. De repente, a floresta ficou quieta, as cigarras pararam de... fazer o barulho que as cigarras fazem, os pássaros pararam de cantar e o silêncio parecia ser espectral, como se um predador estivesse sitiando sua presa indefesa. Aí eu senti, o cheiro pungente de sangue e carne podre, os sibilos quase discretos.

— Você perdeu o cheiro?- disse a primeira criatura nojenta, estalando a mandíbula.

— Não, consigo senti-lo em qualquer lugar. Mas ela não pode ter ido muito longe.- congelei, eles não podiam estar falando de mim, podiam? Aquela voz parecia estar no mesmo dilema, já que disse:

Continue abaixada.

   Não precisei pensar muito em quem se tratava, já que eu ouvi uma risada feminina se aproximando junto com passos leves. As criaturas voltaram a sibilar, só que com mais freqüência.

— Então quer dizer que vocês estão me procurando? Que bonitinho sua preocupação, quase me comove.- a mulher disse com ironia visível na voz.

— O rei ordena sua volta ao palácio, disse que jamais permitiria que você causasse ruína ao nome real. Por favor, princesa, coopere conosco.- a segunda criatura disse. A princesa bufou.

— Então mande meu pai ir ao fosso! Jamais me juntaria em matrimônio com aquele rascunho do capeta, nem que o nome da minha família esteja em risco!- a garota pareceu voltar, quando os sibilos ficaram mais constantes.— O que estão fazendo?

— O rei ordenou que voltasse e que se não cooperasse nós deveríamos te levar a força, alteza, nem que precisassemos lutar com a princesa e dar nossa vida.- a primeira criatura disse.

— Que assim seja, então.- e eu jurei que ela falou aquilo sorrindo.

  Em um segundo eu só ouvia as vozes e em outro eu ouvia chiados e barulho de espada cortando, e segundos depois, o barulho de corpos caindo no chão. Logo, os pássaros voltaram a cantar e a floresta parecia ser aquele lugar de conto de fadas novamente, me permiti soltar o ar que estava prendendo.

   Só para instantes depois eu me deparar com uma figura feminina de cabelos brancos e olhos lilases, que apontava uma espada feita de gelo diretamente a minha garganta e sua voz parecia ser uma geleira completa quando me perguntou:

— Quem é você?

O Chamado do LuarOnde histórias criam vida. Descubra agora