ᴀɴʏ ɢᴀʙʀɪᴇʟʟʏFico me perguntando até quando vou ficar só ouvindo. Fico me perguntando se um dia vou
acordar de verdade. Sei, pelo que ouço dos médicos, que praticamente não consigo respirar sozinha.Sei que eles fazem exames regularmente, e sei que aguento apenas poucas horas antes de me declararem incapaz de continuar a respirar sem a assistência de aparelhos.
A mecânica do corpo é mesmo muito especial. Mas também milagrosa. Como é que continuo a respirar, mesmo durante alguns minutos, se não consigo sentir absolutamente nada?Se eu sair desse coma, essa é uma coisa que terei de perguntar. Meu médico, que só aparece de oito em oito dias, vai sofrer na minha mão. Farei um verdadeiro interrogatório.
Hoje é sábado. Faz três dias que minha irmã veio, faltam quatro para ela voltar. Talvez meus pais apareçam hoje. Afinal de contas, quarta-feira foi meu aniversário. E foi muito legal. Consegui ouvir meus amigos que não apareciam fazia algum tempo. Pude
imaginá-los comendo o bolo, soprando minhas velas e abrindo meu presente. E conheci um cara.Noah. Decorei o nome dele. Estranho. Eu estava com medo de me esquecer. Ainda bem
que minha memória não foi afetada em nada por meu estado vegetativo, mas, mesmo assim, tive medo. E, pela primeira vez depois de seis semanas, não revivi meu acidente em sonho. Não tive sonho algum. Eram apenas o escuro e o profundo. O suficiente para dizer "repousante".Hoje de manhã, a auxiliar de enfermagem veio fazer minha higiene pessoal, como todas as manhãs. Ela me banhou quase toda. Arrumou meus cabelos; só espero que não tenha feito de mim um espantalho abominável. O pessoal todo é muito tranquilo, mas cuidar de um corpo inerte não deve ser muito fácil. Eu a ouvi escovando, depois... não sei grande coisa.
Nem sempre é fácil saber o que as pessoas estão fazendo ao meu redor. Seriam necessárias referências para comparar. Como não tenho nenhuma lembrança de minha mãe me penteando, sou incapaz de dizer o que a auxiliar de enfermagem fez.
Por outro lado, sei que ela se esqueceu de passar protetor nos meus lábios porque não ouvi o esfregar viscoso do creme. Vinte e quatro horas não é tão dramático assim, não é como se eu ficasse falando com alguém, mas é verdade que me preocupo com meus lábios.
No trabalho, eu gastava em média um tubo de protetor por mês. Algumas pessoas sacam o
celular na rua como uma rota de fuga, eu saco o protetor de lábios na montanha toda hora. Senão, minha boca vira uma lixa, o que não é nada agradável.Para quem?, você poderia me perguntar. Para mim mesma. Não exatamente para os caras que eu beijava, mas sobretudo para poder beijá-los. O contato dos lábios entre si é um verdadeiro milagre. Amo beijar. Não posso fazer nada contra isso. E nunca de batom, ao contrário, nem mesmo em ocasiões especiais. O batom entorpece os sentidos.
E hoje a auxiliar de enfermagem esqueceu. Acho que alguém a chamou no corredor. Ela se
apressou para acabar e se mandou. Depois disso, tudo o que ouvi foi a movimentação de uma tarde de hospital. Muita gente vem visitar seus doentes aos sábados. Menos a mim.Ah! Sim! Desculpem, já ia dizendo bobagem. Ouço o trinco de minha porta. Reconheço o andar de minha mãe e o passo, mais vagaroso, de meu pai. Eles falam baixinho um com o outro. Não gosto disso. Quem vê diz que eles estariam entrando num necrotério. Tenho vontade de gritar que ainda estou aqui, viva, ao lado deles; mas eles continuam conversando em voz baixa como se não quisessem que eu escutasse.
– ... Temos o direito de questionar. Já se vão cinco meses, Henry.
– Como você tem coragem de dizer isso?
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I'm here
Romancenoany +| ❝ eu nunca vi o seu sorriso, muito menos seus olhos, mas sua voz foi suficiente para me mostrar que eles são lindos ❞ Em um dia tumultuado, Noah entra no quarto errado do hospital e encontra Any dormindo, em coma. E por um sentimento que el...