Reencontros

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Onde ela estaria, o que aconteceu? Em algum momento devemos ter nos separado, voltei pelo caminho de onde viemos. Percebi que haviam outras trilhas, senti alguns pés de arroz quebrados, o cão  com sulcos, do tipo que eram feitos por cavalos, eram muitos cavalos, senti que talvez tivessem encontrado Dororo e a raptado.
Dororo. Eu a deixei sozinha, eu mergulhei tanto em meus pensamentos que não  me dei conta de esperar por ela, não pensei que ela poderia se perder de mim. Aquela chama era tudo que eu tinha. Vi um aldeão, ele me contou que viu muitos homens a cavalo indo em direção  ao litoral, segui o caminho que ele me indicou, andei um dia e uma noite e nem sinal de eu conseguir chegar. Era difícil sem a minha antiga perna que eu tinha, o galho estava me atrapalhando a andar mas era o que eu tinha naquele momento. Continuei andando a passos lentos, eu queria poder correr, mas tudo que eu conseguia era mancar enquanto as mãos  numa bengala improvisada.
Andei mais um dia, no início de uma manhã um homem cruzou o meu caminho, eu quase o ignorei mas ele me chamou a atenção  com o que dizia.

- Deve ser difícil viajar sem uma perna. Conheço  um homem que anda por aí  dando membros para quem os perdeu. O nome dele era Jyukai. 
O homem me explicou onde eu poderia encontrá-lo, ficava a quase um dia de caminhada, mas eu sabia que no ritmo em que eu estava, isso poderia demorar muito mais.
Eu precisava encontrar Dororo mas para isso eu teria que conseguir uma nova perna. Algo me dizia que essa pessoa que eu ia procurar já  era conhecida, uma chama que eu sabia quem era.
Andei muito, até  que cheguei num lugar repleto de chamas vermelhas, eu tinha que acabar com todos aqueles demônios.
Matei alguns deles. O sangue deles tinha o mesmo cheiro de sangue humano. Vi ali perto uma chama sentada no chão sim, eu sabia quem era.
A chama me chamou pelo meu nome,
-Hyakkimaru.
A chama segurou a minha cabeça com firmeza, eu senti aquele aquele carinho, ele esfregando a testa na minha, me senti bem e lembrei que quando era uma criança que apesar de viver dentro de um mundo de silêncio eu sempre senti o carinho  que ele tinha por mim, reencontrei a chama que me protegia, aquele que me criou.
- Veja o quão  terrível  você  está.
- Eu sorri e retribui o carinho fazendo o mesmo movimento com a cabeça, eu me sentia seguro.
Ele me levou para sua nova casa, que ficava dentro de uma caverna, senti o calor de um fogo aceso, senti cheiro de comida, senti cheiros que pareciam ser de madeiras, senti o cheiro dele, o cheiro que eu jamais iria esquecer, o cheiro do homem que foi a minha única  família. Ele lavou minha roupa, ouvi o barulho das águas devia estar bem suja com o sangue daqueles demônios.
Ele me ajudou  a cuidar dos meus ferimentos  e me limpou.
- É  um rosto de verdade? – perguntou ao me tocar. Isso me arrancou um sorriso.
- Você  também  consegue sorrir agora?
acenti com a cabeça.
- Você  também  consegue ouvir a minha voz? – disse ele, senti que estava feliz por mim.
- Consigo – respondi.
- Você  pode falar. – Me disse ele cada vez mais perplexo.- que milagre! Seus olhos, vejo que ainda é cego.
- Mas eu sinto – disse tocando em seu rosto como ele sempre fazia comigo. – eu sempre senti.
- Sim, eu sei – ele disse – eu sou seu... seu... Ele se interrompeu me deixando confuso. – O que eu sou para você? Eu o encontrei, dei um nome e um corpo para você . Mas será  que eu fiz a coisa certa? Quando o vi derrotar aqueles demônios era quase como se... – ele parou de falar.
Tentei explicar o que eu queria.
- Isto – eu disse tocando na minha perna que não mais tinha a prótese.
- Vejo que esta quebrada.
- Eu uso para lutar. Quero outro igual. – eu precisava  me concentrar as vezes eu me esquecia de como me comunicar de me fazer entender. – Quero. - falei.
Ele se levantou e mudou de assunto.
- Você deve estar com fome.
Eu insisti, peguei umas das próteses que estavam sobre a mesa
- Isto, eu quero isto. Novamente ele desconversou.
- Vamos comer primeiro. – disse ele enquanto preparava a comida.
Esperei que ele terminasse de cozinhar, tentei cochilar mas não conseguia. Eu precisava muito que ele me ajudasse e eu não  tinha muito tempo. Dororo estava em algum, lugar e eu não  sabia o que poderia estar acontecendo  com ela.
- Está pronto, espere um pouco vou esfriar a comida para você.
- Não se preocupe, consigo sentir o calor agora. Frio também. Sinto tudo. – lhe disse e percebi que isto o deixava feliz.
- Ah é  verdade. – disse ele- continuando a assoprar a comida – velhos hábitos nunca mudam, tome – sorriu me entregando a pequena tigela de sopa.
O cordão  do emblema que eu sempre carregava comigo quebrou, deixando cair no chão. Ele reparou e o pegou, disse que iria trocar o cordão  por um outro.
- Esta é  a única pista para encontrar a sua família.
- Daigo Kagemitsu – respondi.
- Daigo? Você  encontrou o Homem dono deste brasão? O homem que é  o seu pai?
- Ele me deu de comer para os demônios. E ainda estão  comendo. – eu disse me sentindo mal por lhe dar tal notícia.
- O que você  quer dizer com isso? Hyakkimaru,  conte-me tudo que sabe. O que o dono deste brasão  te contou? – ele disse segurando os meus ombros senti aflição vindo de sua voz.
Contei tudo a ele, tudo que eu sabia, tudo o que aconteceu quando eu finalmente o encontrei, a luta que tive com meu próprio  irmão, a minha mãe  se ferindo, e o meu pai querendo a minha morte, sobre as terras que ele sustentava com o pacto que levou o meu corpo de mim e que eu estava pegando de volta.
- Está me dizendo que toda uma terra  está  sobre os seus ombros? – ele disse enquanto  me abraçava forte – que fardo pesado. Eu o encontrei e criei você  só para fazê-lo viver no inferno.
Sorri, ele não sabia, mas eu sempre gostei de ficar perto dele.
- Preciso daquilo, apontei para a chama verde que eu sabia que era a prótese de perna.
- Não. Eu não  posso te dar uma nova perna.
Isso me causou surpresa,
- Por que ? – perguntei sem saber muito bem o que deveria sentir com aquela resposta.
- Você vai sair para matar demônios de novo.  Você vai derrotá-los e recuperar o seu corpo.  E o país que você  carrega em suas costas... Não  é  uma responsabilidade que seu pai deva carregar. Você  pode até  parecer mais humano do que antes. Mas será  que você se tornou menos humano por dentro? Pelo que eu vi, imagino que demônios não  foram a única coisa que você  matou. Dá  para saber. Uma nova perna protética só  o aproximaria mais do inferno, não  posso fazer isso.
- Mas eu quero - eu disse segurando a minha voz de maneira a não  gritar.
- Desculpe – disse ele se levantando e com um golpe de machado destruindo a perna protética  que estava sobre a mesa.
Por que ele fez aquilo. Eu precisava muito disso.
Por que? – perguntei incrédulo.
- Por que eu não  posso salvar você. – ele disse com firmeza. – Não  posso.
Mais uma vez eu ouvia a frase que eu sempre ouvia em meus sonhos, a frase que foi dita pela pessoa que seria a minha mãe.
Ouvi um som forte, a terra caiu e tampou a entrada da caverna, eu precisava sair de lá  e rápido. Peguei um grande pedaços de madeira  e comecei a escavar.
- Não se preocupe, há  aberturas para o ar e comida para sobreviver um tempo. Hyakkimaru, você me perguntou por quê. Eu vou te perguntar o mesmo. Por que você  luta, Por que? Se você  sair desta caverna, estará voltando a um mundo sangrento, quer ir mesmo assim?
Eu continuava escavando sem parar  e respondi entre dentes- Quero.
- Você  quer um corpo?
- Quero- respondi novamente.
- Você  tem uma coisa que as outras pessoas não  têm. Um corpo humano pode acabar limitando você. Quer mesmo assim?
- Quero.
- Por quê?
- Por quê  eu quero um corpo?
- Sim, nunca pensou no motivo?
- Por que é  meu – respondi o que estava no fundo do meu coração. – Então  eu vou matar todos os demônios! – dei um golpe com madeira e senti que estava perto de conseguir tirar aquela terra para podermos sair, continuei escavando, logo eu iria conseguir.
- Hyakkimaru, você  tem razão. O corpo é  seu. Você  não  precisa de razão para recuperá-lo. Mas os demônios não  serão  a única  coisa que você  vai matar. Seu pai, sua mãe e seu irmão  mais novo. O povo de Daigo também. Todos vão tentar detê-lo. Quando acontecer, o corpo que recuperar estará  manchado de sangue humano. Vai ser pesado para você, mais do que qualquer membro artificial. Então  você  ainda será  humano? Só  restarão  cadáveres ao seu lado, você  ficará  sozinho no mundo.
- Sozinho? – eu quis saber  O que ele queria dizer?
- Sim, sozinho.
Lembrei de Dororo.
- Não. Tem uma pessoa. – eu disse tentando explicar.
-Quem?
- Agora mesmo, mas não  aqui. – continuei cavando consegui, consegui chegar na saída,  empurrei e resto da terra e conseguimos sair, E lá  fora vi inúmeras chamas vermelhas. Eram muitas.
- Aquilo é...
Soltei as próteses de meus braços, eu usaria as duas espadas. Eram muitos, eu precisava eliminar todos, percebi a fonte de onde eles surgiam, estava dentro daquela árvore que emanava chamas de cores diferentes das que árvores normais tinham. 
Fui até esta árvore e acertei bem no centro da chama, todas as criaturas que nascia dali morreram.
Tomei um banho, eu desisti de pedir a prótese, eu sabia que era pedir demais para ele, ele não  queria me dar por estar preocupado comigo e eu respeitei isso. Ele me devolveu meu brasão, dentro dele estava o arroz que a Mio tinha tanto almejado,
- Você disse que existe alguém que vai ficar ao seu lado. Não precisa me contar, mas basta que você entenda. Se existe alguém na sua vida que não  seja seu inimigo, esta pessoa pode ser capaz de mantê-lo humano.
Essas palavras me fizeram mais do que nunca pensar em Dororo. Eu ia buscá-la. Antes de ir eu queria saber o nome da Chama  que sempre me protegia, será  que era o mesmo nome que me disseram quando eu estava vagando pela floresta?
- Hyakkimaru  - eu disse apontando para mim mesmo, depois apontei para ele.
- Quer saber o meu nome? Tem razão, você  nunca o usou quando morava comigo. Meu nome é... – ele se interrompeu – Não, você  não  precisa saber. Eu não sou ninguem
Resolvi responder a pergunta que ele me fez lá  dentro boa caverna, antes que a terra tivesse soterrado  a saída.
- Eu sei o que você  é.  Você  é  mamãe.  – Essa foi a palavra que encontrei, que ouvia sempre Dororo dizer, que eu ouvi de outras crianças, mamãe  era como a chama que me protegia, era a palavra que descrevia que criava, cuidava, protegia, amava.
- Seu bobo – ele disse emocionado, tentando sorrir- não  é  isso que eu sou, mas aceito esse título. É  como você  descreve quem cuidou de você...

Nos abraçamos, era hora de eu partir, foi bom ouví-lo, conhecer o seu cheiro, o tom da sua voz, jamais eu iria esquecê-lo. Um dia iríamos nos ver novamente. Eu queria ter olhos para enxerga-lo, mãos para sentir como era o seu rosto.
Finalmente cheguei até  o mar, um pescador me explicou que avistou um grupo de pessoas em dois barcos indo para uma ilha do outro lado, não ver a longe, eu podia destingui-la, tinha chamas verdes em seu alto. Fui até lá  num barco que encontrei,  remei como eu pude e assim que cheguei vi uma grande chama vermelha. Ela estava prestes a devorar. Dororo! Sim era Dororo! Eu a encontrei ela estava viva. Dei um golpe e afastei aquela chama.
- Hyakkimaru, por que? -me perguntou Dororo.
A chama vermelha voltou a se mexer, Dororo diz ser um tubarão, mas eu sabia o que era.
- É um demônio. – eu respondi já me preparando.
Tinha uma outra chama perto do demônio, falava coisas que eu não  entendia direito, eu o ignorei e parti para cima do demônio, esse era forte, fazia tempo que não  via um assim. Ele se debatia muito tentando me morder, eu comecei  a furá-lo o máximo que eu podia. Ele quebrou a madeira que eu improvisei como perna, mas consegui dar um golpe fatal que extinguiu a chama vermelha.
Dororo veio até mim, me devolveu meus braços  para cobrir as espadas. Não  me contive de felicidade em poder perceber que aquela criança  tão  importante para mim, estava bem.
Segurei se rosto com ambas as mãos  e fiz o mesmo gesto que aprendi com aquele que me protegia, aquele que eu nomeie como mãe.
Dororo me afastou.
- Hei, Hyanikin, o que foi?
- Vim te buscar – respondi, imediatamente  ouvi a voz de Dororo ficar embargada.
- Até  que enfim. Eu tive que enfrentar um monte coisas sozinho. – Dororo me abraçou  chorando, na mesma hora algo me fez cair no chão.  Era uma dor forte que me fez contorcer no chão. Minha perna direita, eu recuperei a minha perna direita.

Hyakkimaru e Dororo.- Narrado por Hyakkimaru. Onde histórias criam vida. Descubra agora