Decisão de uma vida.

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Eu estava exausto, ficamos na aldeia perto do lago, a aldeia das terras de Daigo. Dormi por muito tempo, eu não  fazia idéia  do quanto. Pela primeira vez a minha mente estava clara, senti que estava mais leve, que era mais fácil entender as coisas à  minha volta.
Minhas feridas haviam se curado. Vi a imagem, que recebi do homem que me criou desde pequeno. Fiquei  pensando em tudo que aconteceu, em tudo que eu passei, que eu descobri e em tudo que eu fiz. Matei pessoas. Eu fui tomado pelo ódio, por muito pouco eu não  virei um demônio. Fechei meus olhos. De olhos fechados  eu ainda podia enxergar as coisas como chamas. Olhei para mim mesmo, meus braços, minha chama ainda estava manchada com pequenos pontos avermelhados, eu ainda tinha chamas demoníacas  junto de mim.
Ouvi pequenos passos.
- Hyanikin, você  acordou, que bom!
- Dororo.
Eu estava sentindo angústia, era seguro Dororo continuar comigo? Será  que algum dia essas pequenas chamas vermelhas poderiam me transformar  num demônio?
Balancei a cabeça  tentando parar de pensar nisso.
- Hyanikin, o que foi?
- Não  foi nada, apenas me acostumando a poder ver.  - tentei mentir.
- Tem tanta coisa que eu quero te mostrar, mas não  agora, você  dormiu uma noite e um dia inteiros. Agora é  hora da janta. Vamos comer.
Dororo trouxe um pouco de comida. Comemos juntos, As cores de tudo eram tão  fortes, tão  cintilantes.
Fomos lá  fora, olhei o céu, estava escuro, vi pequenos pontos luminosos bem lá  no alto. Dororo me explicou  que eram estrelas, fomos ao lago e pude ver as águas. Senti-la com as minhas mãos.
Voltamos para dentro  de casa, passamos boa parte da noite conversando. Observei Dororo falar, aquela voz tão  familiar agora tinha um rosto. No outro dia bem cedo fomos pescar, era mais difícil sem as minhas espadas, mas me dei bem usando uma lança, consegui pegar alguns peixes. Os assamos numa fogueira e os comemos no almoço. Fiquei encostado  numa árvore sentindo o calor do sol que passava entre os galhos, comecei a ficar imerso em meus pensamentos. Eu ainda tinha algo que precisava resolver, algo que talvez me ajudasse a me tornar um humano mais puro, sem as chamas que ainda me manchavam.
Dororo veio feliz me contar sobre a idéia  que teve para ajudar a reerguer a aldeia que estávamos. Dororo iria usar o dinheiro que seu pai escondeu na montanha e ajudar a todos da aldeia. Fiquei feliz por ela.
Dororo cada vez mais fazia amizade  com os aldeões, senti que ela ainda ia conseguir tudo que sempre quis.
Ouvi quando um dos aldeões disseram que o exército  de Daigo perdeu a guerra, muitos soldados morreram  e que Daigo Kagemitsu estava desaparecido.
Andei pelas margens do rio e vi o Sacerdote descansando numa sombra de uma árvore. Eu devia muito a aquele homem que me salvou tantas vezes, que salvou Dororo.
O sacerdote percebeu a minha presença.
- Vejo que você  ainda tem resquícios  das chamas deixadas pelos demônios.
- Não  só  por eles. – falei – matei muita gente. Não  sei se algum dia eu poderei ter uma chama comum.
- O que você  chama de chamas, eu chamo de alma. A alma representa aquilo que somos e aquilo que já  fomos, se o que você  foi continua marcado em você, isso aparece na sua alma.
- E  tem algum jeito de curar a alma, livrá-la dessas chamas?
- Você  ainda as consegue ver, mesmo tendo os seus olhos de volta?
- Sim, quando fecho os olhos ainda posso ver.
- Isso pode ser uma coisa boa, afinal de contas, é útil poder enxergar a alma das pessoas. Enxergar a sua própria. Poder saber quando aqueles que nos rodeiam são  perigosos ou não.
- Eu temo pelo que eu posso me transformar se eu não  tirar essas chamas de dentro de mim.
- Respondendo a sua pergunta, só  existe uma maneira que pode te ajudar a eliminar essas chamas vermelhas. O tempo. O tempo pode curar, tudo depende do que você  vai decidir fazer com a sua vida daqui para frente.
Pensei no  que o velho sacerdote  me disse. E tomei a minha decisão  enfim.
Eu estava saindo quando Dororo me chamou.
-Hyanikin, onde você  vai?
- Eu preciso sair, vou conferir uma coisa.
- Que coisa Hyanikin?
- Não  sei muitas palavras, mas é  algo que tem haver comigo mesmo. – tentei explicar
- E  isso vai demorar muito tempo? – Dororo estava cabisbaixa, eu percebi que estava triste sem precisar olhar para sua alma.
– Eu não  sei. Eu vou, mas não  vou te deixar, pode demorar um pouco, mas eu vou voltar- prometi – Eu volto para ficar perto de você.
- Hyanikin! – Dororo me abraçou  forte.
Depois de nos despedimos, fui em direção  a montanha, eu precisava saber de uma coisa.
Caminhei  pelas terras de Daigo, tudo que eu via era destruição. O castelo  se perdeu em cinzas. A única coisa daquele local que ainda permanecia  em pé  era o templo que abrigava as imagens dos demônios que Daigo fez o pacto. Parei em frente das portas, fechei meus olhos e pude ver que uma pessoa estava lá  dentro, suas chamas eram conhecidas . Eu sabia quem era. Abri a porta. Ele estava sentado no chão  de frente para um altar com imagens de demônios.
Assim que eu entrei, ele falou comigo.
- Vejo que você  tomou tudo de volta dos demônios. Como são  as terras que finalmente está  vendo? São  bonitas?
- Não  são  bonitas.
- É claro que não.  Estas terras e sua gente sagraram demais por você. Aliás, vão continuar a sangrar por você. Não  deixarei que termine assim. Neste mundo é  matar ou morrer. Então,  que seja. Vou sobreviver a este inferno. Se os demônios querem um humano, eu darei outro a eles.
Aquelas palavras me causaram mal estar.
- Vai me oferecer a eles de novo? -perguntei já  sabendo a resposta.
- E por que não? Sou um chefe militar, não  desejo nada além  do controle total. Tratarei com os demônios quantas vezes for necessário. Se eu já  errei, foi só  uma vez. Não  deveria tê-lo deixado com a parteira. Deveria tê-lo estrangulado com as minhas próprias mãos.
Respirei fundo, não  era fácil  ouvir aquilo do homem que deveria ter sido o meu pai, mas que me queria morto.
Me aproximei devagar, peguei a espada que estava fincada no chão, ele percebeu. Mas não  se virou para me olhar, ele continuava de costas.
- Você deve me odiar. Se eu morrer, minha alma reinará com meu filho Tahomaru, como um demônio  protegendo estas terras.
Ergui a espada sobre ele e desferi o golpe com toda a raiva que eu tinha. Acertei o capacete de samurai que estava no chão  ao seu lado. Enterrei a minha raiva ali ao fincar a espada naquele capacete. Ele pareceu surpreso.
- Por que?
- O caminho que eu tomei, não  leva a essa direção  - Eu disse colocando no chão,  perto dele, a imagem sagrada que ganhei do meu outro pai.
- Eu sou humano. Não  se torne um demônio  também. Viva como um humano.
Dei as costas a ele e saí  do templo. Comecei na andar, segurei firme a pequena bolsa com as sementes de arroz. Eu havia ali escolhido o meu caminho. Eu iria curar a minha alma e um dia voltar para Dororo.

*** Fim ****

Hyakkimaru e Dororo.- Narrado por Hyakkimaru. Onde histórias criam vida. Descubra agora