Os grilhões de Alice - Parte 1

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Era uma segunda-feira (para os fissurados por detalhes, dia 11 de março) e eu estava cabulando a aula de inglês. Ela nunca fora uma das minhas aulas prediletas, tanto que passei meu segundo ano inteiro usando ela para terminar lição atrasada de outras matérias que julguei banalmente serem mais importantes, mas conseguira a façanha de ficar pior, pois a tediosa professora nova fazia questão de dissipar toda e qualquer motivação que eu poderia vir a ter. Sendo assim, optei por aceitar o pedido de Evelin Carvalho, ou, para todos que lhe dirigiram a palavra pelo menos uma vez na vida, Eve. O avassalador frio que fazia naquela ocasião causava-me a rara sensação de que era afortunado, mas a afastei, pois no fundo curtia muito estar descontente. Minha blusa larga e grossa mantinha-me aquecido, não o bastante, visto que, vez ou outra, tremia quando confrontado por um sopro do outono. Como, milagrosamente, ninguém tinha educação física naquele horário, podíamos vadiar tranquilamente nas mesinhas, na forma de tabuleiros de dama desbotados, atrás da quadra sem ouvir o estrondo que as bolas faziam ao chocar-se com a grade metálica quando alguém errava o gol. Se alguém realmente fazia boas jogadas de dama com tamanho barulho, julgo eu que essa pessoa seria no mínimo um superdotado.

— Na moral, tenho que parar de escutar uma má influência como você. Eu já fui um aluno exemplar, sabia? Na quinta série, notas como 8 ou 9, que hoje em dia são mais que raras, eram frequentes. Estou pouco a pouco afundando numa areia movediça de rebeldia e logo não conseguirei mais subir! Qual é o próximo passo? Vai me fazer fumar maconha, moça?

Ela, em resposta, gargalhou sutilmente, de maneira anasalada, contendo-se para não delatar que não estávamos na aula. As inspetoras não eram animadas o suficiente para fazer uma busca por alunos, mas sermos prevenidos e não fazer barulho garantiria um tempo a mais de tranquilidade.

Eve era uma garota de um metro e sessenta e poucos, de pele cor de creme e cabelos rosados amarrados numa longa trança por algumas fitinhas douradas. Sempre que podia, a mesma pintara o cabelo de alguma cor diferente, sendo verde na primeira vez que nos conhecemos. Diz que manter a cor por muito tempo é "tedioso!" e garotas do ensino médio como ela abominam o tédio como conservadores abominam minorias.

— Oh, coitadinho. — fingindo ser carinhosa, ela afagou-me a cabeça, da maneira que faria com um cachorrinho perdido que fora pego por uma tempestade e ficara tristemente encharcado. Calorosamente, enrolara no dedo indicador um dos poucos cachos que encontrara em minha cabeleira irregular. — Nem vem. Você é bem mais autoconsciente do que quer fazer parecer. Se quisesse, fumaria. Do mesmo jeito que está matando aula porque quer. Mas também não estou recriminando o fumo ou quem partilha dele, só... Hum... Como posso dizer... Não é a minha praia. Acho que é uma boa maneira de colocar.

— Isso sempre me surpreendeu. Achei que você, do jeito que é, fumaria o tempo todo. — falei afastando gentilmente a mão dela do meu cabelo.

— Ah, sabe, isso exaltaria ainda mais meu esteriótipo de revoltada. Gosto de manter uma linha, mesmo que tênue, entre oque vale a pena fazer para irritar os outros e oque só está sendo feito para irritar os outros.

Uma resposta típica, como as que ela sempre me oferecia quando questionada. Eve parece ter uma resposta para todas as questões, por isso seria a última pessoa que você gostaria de entrar num debate contra. Em contrapartida, coisas como "o sentido da vida" são facilmente explicadas por ela.

Ela ajeitou seus óculos de grau, graciosamente e eu nunca acreditei que toda essa graça não era ao menos um pouco intencional. Olhos profundos e desafiadores, negros, tal como ônix e também realçados pelas lentes quadradas de seus óculos. Eve era o tipo de garota que é bonita desde o rosto até suas roupas, mesmo que ela insista na desculpa de que não presta muita atenção nessas coisas. Apesar de nosso colégio exigir uniforme (um conjunto de camisa e calça, ambos pretos, que Eve definira como péssimos), apenas uma pequena parcela realmente o usava. Por sua vez, Eve, como se fosse uma forma de protesto ou sei lá, deliberadamente, não usou o uniforme nenhuma vez esse ano, até mesmo recebendo advertências por conta disso. No lugar, ela usava uma boina de pintor azul bebê para cobrir seus cabelos já rosados (um jogo de cores interessante quando o fundo não é mais que um mar de nuvens cinzentas cobrindo o céu de uma cidade cinzenta) e uma fina blusa preta rendada, de manga longa, com a calça legging da mesma cor. Ela diz que, apesar de ser mais que inapta na maioria das artes que tentara, desde atuação a pintura, curte essa vibe de artista, sofisticada e instigante, mostrando-se misteriosa.

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