A venda de Emily - Parte 3

6 6 0
                                    

Quando dei-me conta, não estava mais na festa. Olhei ao redor, meio tonto e enjoado, até que percebesse um resquício da minha personalidade ao redor do quarto. Várias roupas em tons de cinza e uma quantidade de livros maior do que seria recomendado a alguém com tão pouco espaço. Tirei a manta felpuda que me cobria e a atirei ao chão, podendo notar que ainda vestia a mesma roupa de ontem. Como dormir de calça jeans é simplesmente inadmissível (uma das poucas coisas que eu poderia considerar blasfêmia), penso que alguém me arrastara até o quarto.

O outro indício para isso era a minha dor de cabeça. Ela martelava insanamente, como se um fantasma tivesse sido contratado por Deus para acertar uma bigorna na minha cabeça por oito horas consecutivas em troco de um salário-mínimo. Como se não bastasse, uma maldita tontura deixava-me zonzo e meu estômago carregava um maldito tsunami.

É, provavelmente eu estava de ressaca. Minha primeira, se bem me lembro. Eu nunca dei-me ao trabalho de ir em festas assim.

Não há muito oque se falar dessa famosa ressaca. O único problema é que eu sequer lembro de ter bebido a esse ponto. Sempre encarei a ressaca como um castigo aqueles que usufruíram do néctar divino, mas seria mesmo justo eu pagar por algo que sequer lembro? Se eu não lembro, não aconteceu. Se não aconteceu, a ressaca não serviria de aprendizado (eu fiquei mais nervoso do que animado por ter aprendido algo).

Usei todos os meus conhecimentos sobre investigação criminal (que se resumiam a algumas aventuras de Holmes e tudo que devorei da Agatha Christie) para relembrar meus passos e a cadeia de eventos que me trouxera até aqui.

Lembro de ter ficado com a Emily. Se não estou errado, escutei alguns gritinhos de exaltação vindos de quem assistiu o tal beijo. Tadinha. Emily ficou envergonhada, embora continuasse rindo e explicando o ocorrido para suas amigas. Eu apenas colhi os frutos, aproveitando os elogios que os rapazes ali presentes me faziam. Não conhecia nenhum deles, mas fazia diferença? Eu tinha beijado uma garota considerada linda por muitos deles. Logo em seguida, levei-a para casa, pois estava tarde e eu queria portar-me como um cavalheiro. Um bom cavalheiro que segurava o vômito para dentro como Arthur segurara a excalibur quando foi para a batalha. Me despedi da garota com um singelo beijo em sua bochecha e voltei para a festa. Fiquei lá por sei lá quanto tempo e alguém, acho que uma garota, num ato de benevolência, me levou até em casa. Se ela me colocou na cama ou deixou-me lá para que alguém da minha família o fizesse é um mistério.

Eram 09:30, o sol forte que escapava por uma fresta deixava-me agoniado e eu me sentia fodido por completo. Mesmo assim, me levantei. Troquei aquela roupa festiva por minha habitual roupa de mendigo (um conjunto de calça de moletom com uma camisa qualquer). O cheiro de café quente enchia minhas narinas, principalmente por ser a única coisa que minha barriga zoada suportaria. Fui até a cozinha e encontrei meu pai sentado lá numa cadeira. Usava uma camisa xadrez que seria de um encaixe magnífico se estivéssemos em junho. Ajeitou seus pequeninos óculos redondos (ele trocara a armação recentemente porque uma de suas leitoras, que provavelmente não passava dos 15 anos, disse que lentes quadradas o faziam parecer meio nerd) e tentou me pressionar com um olhar sério em seu rosto. Sentei na cadeira a sua frente (ele parecia querer que o fizesse), e dei-me o luxo de me servir uma caneca de café.

— A mãe não tá? — perguntei, com o objetivo de quebrar o clima estranho.

— Err... Não. Ela foi para o restaurante. Vai ter um evento lá perto, então pensou que seria uma boa abrir mesmo sendo domingo. Lá pelas uma ela está de volta.

— E deixa eu adivinhar, a Laura ficará responsável pelo almoço? Prepare o carro, pai! Precisamos fugir daqui.

Ele não se aguentou, riu de modo copioso, até chegando a lacrimejar os olhos. Imediatamente, fechou a cara, tentando soar sério, mas os lábios tremiam na forma de um riso que queria nascer. Oh, céus, agradeço essa sorte com toda a humildade. Ele é péssimo nessa coisa de dar as broncas. Sinto que ele encarnou por muito tempo no papel do "policial bom" e não consegue por de lado esse esteriótipo. Até hoje eu tremo de medo ao lidar com a minha mãe (tanto que faz muito tempo que eu não a vejo). Ela era franca até o osso e, sem erguer um milímetro de seu tom de voz, conseguia fazer você se sentir o pior ser humano da face da terra sem usar de chantagem emocional. Lembro no fim do ano passado, em que todos os membros da nossa família tirando a Melissa estavam trabalhando no restaurante. Um deputado foi até lá jantar com seu filhinho e sua esposa recatada. Queria se mostrar o poderoso, então fez questão de reclamar de tudo. Como minha irmã mais velha era a gerente, a tarefa de escutar as reclamações e se desculpar pelas supostas falhas foi concedida a ela. Pode não parecer pelas descrições que eu faço, mas Laura é uma ótima profissional, conseguindo manter uma polidez digníssima com os clientes. Surpreendentemente, minha mãe não se conteve tanto. Saiu da cozinha e caminhou até ele.

Nossa coleção de fracassosOnde histórias criam vida. Descubra agora