Capítulo 9 - Transparência

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A porta do apartamento foi aberta da mesma forma com que o livro pesado de Harry foi deixado na bancada, da mesma forma como a garrafa foi retirada do saco plástico trazido do mercado, da mesma forma como o lacre do vinho foi retirado, da mesma forma como Liam jogou seu corpo no sofá: de forma brusca e não pensada, apenas feita como podia ser feita.

Harry suspira do quarto, já sabendo o estado em que o outro se encontrava.

O bombeiro caça algum canal na televisão que não mostrasse a desgraça humana real do dia a dia, mas mostrasse a desumanidade através de uma película de ficção cinematográfica. Essa camada ficcional o mantinha em um ambiente mental saudável, era o que precisava no momento.

Em posição de completo desleixo, tomando longos goles de vinho, Liam espera o tempo passar por uns instantes. Harry aparece na ponta do corredor com o valor referente ao livro nas mãos, se aproxima do outro e oferece o dinheiro. O outro recusa com um olhar de canto parcial, tomado por certo descaso. O cacheado apenas deixa o dinheiro em uma de suas pernas e sai para a cozinha.

O livro estava bem embalado e exalava o cheiro de encadernação nova. Com ansiedade, Harry abre com cuidado e se depara com o que seria seu novo impulso e incentivo a continuar lutando pela vida profissional dos sonhos. Na foto de capa, Cindy Sherman em uma de suas personagens fictícias de filme americano, tinha o olhar compenetrado ao horizonte, enxergando novas possibilidades de percurso. Ali, no olhar brilhante de Cindy, estavam as possibilidades de voo da vida de Harry - ele tinha completa convicção.

Ele passa a mão sobre a capa e sorri de lado, enchendo o peito de esperança. Sua energia próspera é usada para fazer um café - a água fervente levando consigo a essência do café em sua forma mais pura. Era isso que Harry desejava: expressar a sua essência da forma mais pura possível.

— Obrigado por ter ido lá para mim. Esse livro vai me dar um gás produtivo.

Liam acena e sorri de canto levemente com os olhos fixados na cena de ação que passava na tv.

— Você conseguiu achar de boa?

Liam suspira um "Huh", como quem diz "não foi assim tão mal".

— Ou você ficou um bom tempo procurando na sessão errada ou pediu ajuda de algum funcionário. — foi ai que Liam entendeu o que Harry queria com a conversa —  Livros específicos demais para a clientela geral encontrar, Payne.

Mesmo sabendo em que ponto o outro gostaria de chegar, o bombeiro deixa que ele cerceie até não aguentar mais e pergunte de forma explícita. Liam não tinha mais paciência para as conversas de Harry vindas pela beirada, tentando o manipular a responder o que queria ao invés de simplesmente perguntar diretamente. Esse joguinho ridículo era uma verdadeira merda.

Silêncio.

Harry respira fundo, aspirando o aroma de seu calmante de grãos naturais.

— Ele está melhor?

Liam levanta as sobrancelhas em surpresa. A pergunta direta veio mais rápido do que ele esperava.

— Ele quem? — seu olhar ainda estava sobre a TV.

Um gole de café o impediu de ser grosseiro.

— Zayn.

— Você deve saber melhor do que eu. Sabia inclusive aonde ele estava trabalhando.

Com sua caneca na mão, Harry fecha os olhos em um leve suspiro e se propõe a focar sua atenção no café e no seu novo momento de descoberta. Querer salvar alguém que não quer ser salvo é exaustivo e inútil - seu exemplo mais cristalino foi a vivência que Liam tivera com Zayn. Irônico tal cenário ter se modificado tão radicalmente.

Sem se preocupar muito, Harry devaneia em alto e bom tom.

— Ele parecia feliz trabalhando lá.

Silêncio.

— Zayn deve ter uma sensibilidade muito grande, que inclusive deve ser a causa de tanto desequilíbrio entre sua realidade e seu delírio.

Silêncio.

— Muito parecido com você.

Liam bebe de forma mais abrupta, ainda com os olhos na tela.

— Vocês têm mais coisas em comum do que podem enxergar.

Silêncio.

— Os aspectos da personalidade dele que você não suporta, são os mesmos aspectos que compõem a sua personalidade dos quais você não gosta. Só te irrita no outro porque existe em você. É difícil, o outro nos serve de espelho.

Liam respira fundo, tamborilando uma das pernas levemente no chão de tacos.

— E agora que você perdeu seu maior porto seguro e exemplo de vida, olhar para seu espelho é literalmente olhar para suas dores mais profundas sem nenhum tipo de barreira. E você não é forte o suficiente para isso.

Liam olha para Harry com cara de indignação.

— O quê? É difícil ouvir que você é mentalmente fraco? Emocionalmente instável? - seus olhares quase furavam um ao outro - Você teve tempo para reerguer suas estruturas, seus alicerces emocionais. Você preferiu ignorar a dor e sucumbir todos os seus sentimentos em um silêncio profundo e infinito. Eu tentei te ajudar, Liam, mas é imensamente difícil lidar com você.

O bombeiro pisca algumas vezes, ainda suspenso com o bombardeiro de ataques psicológicos que levara. Se havia alguma vontade dentro dele de que Harry fosse direto, essa vontade esvaiu-se tão rapidamente quanto antes se instalara.

— Você não vê que está remoendo sentimentos difíceis de ponderar porque está tapando qualquer expressão deles com álcool, ou com sexo casual ou com filmes de ficção. — Harry encara Liam nos olhos com muita seriedade — Não use a Danielle de novo. Você pode ser mais consciente que isso, menos egoísta. Você sabe.

Liam engole em seco e desvia o olhar, fechando a cara em uma carranca. Por mais violento que aquilo fosse, ele sabia que tudo o que Harry dizia era verdade, por mais difícil que fosse de ouvir.

— O pior foi a forma como vc se abandonou. — O café acaba. Harry deixa sua xícara na pia — Mentalmente e fisicamente, digo. Além do seu ambiente externo, né? Seu quarto fede, cara. Você não tem mais a decência de higienizar nada. — Liam não podia acreditar que aquilo continuava — Esse apartamento tá imundo, irmão.

— Melhor ter um teto imundo do que não ter, acredito eu. Ainda me preocupo em pagar o aluguel, isso já é um bom começo na minha visão.

As palavras de Liam vêm como dardos certeiros a atingir Harry em sua maior ferida para faze-lo parar de falar. O financeiro do aspirante à fotógrafo estava em seu momento mais crítico e obviamente que Liam não ia deixar tal fato passar.

Todo mundo tem seu preço.

O cacheado sente o coração pesar um pouco. Ouvir seu melhor amigo de anos usar um de seus pontos fracos para o machucar era algo difícil de se lidar. Tudo o que Harry conseguiu fazer foi deixar o livro em seu quarto, pegar sua câmera, pegar suas chaves e sair do apartamento sentindo o peso das consequências de ser transparente.

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