duas mesas

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     Quase cento e quarenta dólares foi o que Gabriel pagou pelo táxi que o conduziu pelos setenta quilômetros que separam o Logan International Airport, em Boston, e o seu endereço em Worcester: o segundo andar de uma modesta casa bege na Sherbrook Avenue, próxima à esquina da Lakeview Street e distando uma quadra do Lago Quinsigamond, ou, simplesmente, Long Pond. Um lugar bonito e aparentemente tranquilo, além da conveniente proximidade com a University of Massachusetts Medical School. O valor do aluguel era adequado e todo o espaço, mobiliado, limpo e privativo colaboraram para sua decisão final de fechar o contrato de locação. Para tanto, contou com a preciosa ajuda da dra. Nancy Taylor, a extraordinária cardiologista que seria sua tutora durante o período de especialização e residência na UMass, com quem vinha mantendo contato frequente e que, por cordialidade e generosidade, prontificou-se a ajudá-lo no que fosse necessário.

     Já era início daquela noite quente de verão quando, ao perceber o carro parando em frente à sua casa, uma senhora, cujo visível avanço da idade deixava-se notar pelo caminhar lento amparado por uma delicada bengala, desceu os cinco degraus da entrada e foi ao encontro de seu inquilino na calçada. Era Gertrude Rose, uma viúva alegre e simpática que após a morte do marido decidiu alugar o segundo andar de sua casa, um lugar que, dados o tamanho e sua dificuldade de locomoção, quase nunca era visitado. Além disso, estava agregando uma nova fonte de renda e, por fim, ganhando uma companhia naqueles dias solitários próximos ao fim da vida.

— Você deve ser o dr. Gabriel Campos? — indagou Gertrude, estendendo a mão tão logo o rapaz acomodou a última das três malas entregues pelo taxista. E prosseguiu: — Eu sou Gertrude Rose. Falamo-nos ao telefone. Sou a proprietária da casa. É um prazer conhecê-lo.

— Como vai a senhora? É um prazer conhecê-la! — Gabriel sorriu enquanto apertava a mão de delicada e finíssima pele daquela septuagenária mulher que exalava um tênue perfume de lavanda.

— Seja bem-vindo a Worcester! Como foi sua viagem?

— Foi bem, obrigado. — Eu imagino que você deve estar muito cansado.

— Com certeza. Foi uma longa viagem. E eu quero agradecer-lhe por aceitar me receber como seu inquilino, mesmo eu sendo um estrangeiro desconhecido... — Não conseguiu terminar a frase, pois Gertrude prontamente o interrompeu:

— Não se preocupe com isso. Você tem uma ótima referência! A dra. Nancy veio pessoalmente falar comigo. Ela é uma grande mulher, uma médica maravilhosa! Ela cuidou do meu Irving até o dia de sua morte... — Gabriel percebeu quando os olhos de Gertrude ficarammarejados pela lembrança abrupta do marido. — E ainda cuida de mim. Fui eu quem disse a ela que estava querendo alugar o segundo andar da minha casa. Na semana seguinte ela veio até aqui e me disse que tinha alguém interessado e era a pessoa ideal para ser meu inquilino. E aqui está você!

— A dra. Nancy será minha tutora na universidade. Eu ainda não a conheço pessoalmente, mas parece ser uma mulher incrível.

— Pode apostar que sim! Uma das melhores que eu conheço! Do outro lado da rua, uma belíssima mulher californiana, que acabara de completar cinquenta anos, atravessava a rua enquanto acionava o alarme do carro atrás de si. Os generosos e brilhantes lábios rosados contrastavam com aquela pele branca e os luminosos cabelos ondulados em tons de louro fechado, quase acastanhados, meticulosamente cortados na altura da nuca. Tão logo alcançou aquela mulher estonteante com os olhos, Gabriel, de imediato, associou sua imagem à de Marcia Gay Harden, uma de suas atrizes americanas favoritas. Era a dra. Nancy Taylor, que, ouvindo parte do diálogo, não tardou em advertir:

— Dr. Gabriel, eu não apostaria nisso!

— Você ainda me mantém viva... só isso já é um feito extraordinário! — disse a espirituosa Gertrude, recebendo um beijo afetuoso da médica.

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