Bridge Over Troubled Water

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   Imaginem um garoto trancado dentro de um quarto  escuro, deitado numa cama que  ele não consegue sentir, percebendo a presença de estranhos que ele não consegue ver e ouvindo sons que não consegue distinguir. Não há medidas de tempo ou de espaço. Não há memória recente ou  distante. Inexistem movimentos. Tudo  é medo  e  as  certezas parecem impossíveis. Tudo  é uma assustadora escuridão. 

Meu  pai  disse  que  fiquei  nesse  breu  por  exatos  quatro  meses  e  dezesseis  dias.  Alguns garantiam que eu jamais sairia do coma e os médicos discutiam se mantinham apenas o suporte mínimo e paravam de investir no caso. Mas ele nunca considerou tal hipótese. Esteve ao meu lado durante todo esse período. É muito triste pensar que não o senti em nenhum momento. E a vida, do lado de fora do quarto escuro, seguia seu fluxo. 

A  propósito,  é  importante  dizer  que  o  meu  pai  se  chama  Gabriel,  o  homem  que  salvou  a minha  vida  em  todos  os  sentidos  que  alguém  pode  fazê-lo.  Não  há  qualquer  outro  nesse mundo, ainda que biologicamente, capaz de assumir esse título com tanto carinho e dignidade. Minha vida estaria extinta sem ele. 

Quantas coisas aconteceram nessa minha ausência, entre outubro de 2008 e março de 2009: para  desgosto  dos  meus  avós  republicanos,  os  Estados  Unidos  elegeram  Barack  Obama,  o primeiro  negro  a  presidir  o  país;  um  piloto  da  US Airways  tornou-se  herói  após  conseguir realizar um pouso de emergência no leito do rio Hudson, em Nova York, salvando a vida de cento  e  cinquenta  e  cinco  passageiros;  o  lunático  presidente  do  Irã  lançou  um  satélite exatamente  oito  dias  antes  da  colisão  de  satélites  russos  e  norte-americanos;  um  psicopata invadiu uma creche em Derdemonde, na minha terra natal, com uma faca na mão e matou três pessoas,  deixando  outras  doze  crianças  mutiladas.  Tantas  coisas boas  e  tantas  ruins.  Tantas coisas indefinidas. 

Indefinido também  ficou meu pai. Depois  daquela noite, nunca mais voltou  a Holden.  Sua dedicação exclusiva a mim, à Gertrude — a avó que acabei ganhando! — e aos seus pacientes do UMass ocultava seu desejo profundo de rever Justin e resgatar aquela história imersa, que parecia  não  estar  pronta  para  acontecer,  apesar  de  todos  os  lances  do  destino.  Só  parecia! Porque no íntimo de cada um, nem meu pai, nem Justin conseguiram viver um único dia  sem que  o pensamento  alcançasse  seus  corações, vibrando-os. À  distância  e  em  silêncio...  como eu. 

Jamais  vou  saber  o  que  Edward  e  Ethan  realmente  pensaram  nos  dias  que  sucederam  o acidente. Obviamente souberam que a vítima era minha mãe, mas essa era uma mulher que eles realmente relegaram ao esquecimento. Catherine também nunca revelou a ninguém a conversa que teve com ela por telefone, na tarde daquele  sábado. Não  sei o que foi dito, mas naquele dia  chuvoso,  estávamos  indo  encontrá-la  em um restaurante  em  Jefferson, próximo  ao  Eagle Lake Hotel. Muitas verdades morrem com suas testemunhas. Mas eu estava vivo... 

Nicole  e  Christian  não  se  encontraram  mais  após  aquele  dia  trágico.  Arrasada,  ela  se recusou  a  participar  do  curso  de  História  que  ele  ministrou  na  Wachusett  Regional  High School.  Várias  vezes  ele  ainda  tentou  procurá-la,  totalmente  em  vão.  Disposta  a  fugir  da tristeza e daquele lugar, Nicky embarcou em janeiro para um curso de inverno na Inglaterra. Londres é sempre um excelente lugar para que uma pessoa deprimida fique ainda mais triste! Ela estava no lugar certo! 

Quanto  à  minha  mãe,  creio  que  essa  será  uma  ferida  eternamente  aberta.  Talvez jamais consiga  avaliar  com  precisão  a  dimensão  dessa  perda.  Talvez  nem  exista  uma  dimensão calculável   para   algo   dessa   natureza.   Somos   demasiadamente   frágeis   e   temerariamente impulsivos,  passionais.  Compreendo  cada  uma  das  decisões  de  minha  mãe  que  em  geral visava me proteger. Mas não será o custo alto demais? Ela pagou com a própria vida para que eu tivesse uma. Por pouco, não cheguei a tê-la. Será que valeu a pena? Essa é outra resposta que nunca terei. 

Estar  diante  da  linha  tênue  entre  a  vida  e  a  morte  nos  acrescenta  grandes  lições.  Mas também nos esfria. O limiar parece congelar a alma. Qualquer coisa que você sinta depois de uma experiência desse nível torna-se absolutamente menor. Alguns se enganam buscando viver aquilo  que  sempre  negligenciaram;  outros  se  deixam  tomar  por  equivocada  emotividade;  a maioria  acredita  que  estar  "do  outro  lado"  e  poder  voltar  é  um  sinal,  uma  obra  divina. A grande verdade é que não existe "o outro lado".  Somos o que somos e só. Não há nada além disso.  Não  vemos  as  coisas  como  elas  são.  Vemos  as  coisas  como  somos.  Todo  o  resto  é vazio e silencioso. Todo o resto é escuridão. 

Durante o tempo que eu estive em coma no UMass, meu pai passava longas horas ao lado da minha cama, todos os dias. Dizem que ele pegava minha mão e ficava cantarolando a música "Bridge Over Troubled Water", de Paul Simon e Art Garfunkel. Eu não ouvia. Mas é provável que  sua  energia  tenha  me  carregado  e  recarregado:  "...  I'll  take  your  part/When  darkness comes/ And pain is all around/ Like a bridge over troubled water/ I will lay me down...". 

     

   Não me perguntem como, mas, apesar de tudo, sabia que, de alguma forma, eu ficaria bem. Se era possível ter alguma certeza em meio à escuridão, era que tudo terminaria bem. Talvez fosse o único  facho de luz diante dos meus olhos  fechados. Definitivamente, essa não é uma história  de  super-heróis,  ou  superpoderes.  Só havia uma única ponte  capaz  de me  salvar  do mergulho eterno e me trazer de volta à vida. Eu sabia que era possível. Eu tinha certeza de que tudo ficaria bem. 



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