correspondências

425 20 7
                                    

     

Aquele  6  de  março  de  2009  amanheceu  ensolarado  em  Worcester.  O  fim do  inverno visivelmente  se  aproximava.  Os  termômetros  conseguiam  ir além  de  zero  grau  e  a  neve derretida j á aumentava o volume do Lago Quinsigamond. O noticiário da manhã foi dominado pelos preparativos para o lançamento da sonda Kep ler, um observatório espacial desenvolvido pela Nasa com o obj etivo de encontrar exoplanetas e auxiliar nossa busca frenética por vida extraterrestre. 

    Gabriel  chegou  ao  UMass bem  cedo,  como  vinha  fazendo  nos últimos  meses.  Passava  de duas a três horas no quarto com Matthew e depois das nove da manhã partia para suas funções e  estudos  no  hospital.  Abriu  as  cortinas  para  que  os  raios  de  sol  entrassem  no  ambiente. Conferiu  soro  e  oxigênio.  Puxou  uma  cadeira  e  ficou  por  um  longo  período  olhando  o semblante imóvel daquele adolescente. Não percebeu quando a dra. Nancy entrou no quarto e ficou admirando aquela espera sem prazo de validade. Quando notou a presença dela, falou: 

   — Não fale — pediu Gabriel, quase sorrindo. 

   — Não fale o quê? — questionou Nancy, ciente da resposta. 

   —  Não  fale:  "Eu  sabia  que  você  estava  aqui"!  —  concluiu  Gabriel,  sorrindo.  —  É previsível demais! 

    Nancy  caminhou  até  o  outro  lado  da  cama  e  olhou  para  seu  aluno.  Ela  o  admirava  não apenas  pela  dedicação  e  competência,  mas  também  por  sua  capacidade  de  ser  sensível  em uma profissão tão dura quanto a medicina. 

   — Nem sempre as coisas são tão previsíveis quanto parecem! — disse Nancy, retribuindo o sorriso.  —   Ele   está   com  uma   aparência   melhor   hoj e,   você   não   acha?  —  perguntou, observando as feições mais coradas de Matthew. 

   — Eu sei que ele vai conseguir reagir e sair desse estado. Ele não vai desistir. 

   — Ou será que é você quem não quer desistir, Gabe? 

   — Eu estou fazendo o que sempre faço... não desistindo, sustentando. E ele significa muito pra mim, para eu simplesmente desistir. 

   — Mas você também não pode desistir da sua vida. 

   — Isso aqui é minha vida, Nancy. 

   — Não, não é — a médica sacou do bolso de seu j aleco um envelope amarelo, retangular e pesado, e o entregou a Gabriel. — Não. A sua vida não se resume apenas a esse hospital. Isso é pra você... 

   — O que é isso? 

   — Eu não sei. Alguém deixou na portaria do UMass. O envelope tem a logomarca da ETS. Talvez sej a do rapaz de Holden.

    Nancy entregou o envelope e saiu. Gabriel olhou aquela correspondência por longo tempo. Seu  desej o  era  abrir  imediatamente,  mas  sua  razão  dizia  o  contrário.  Equilibrar senso e emoção não é uma tarefa fácil. 

   —  E  agora,  Vullen,  será  que  eu  devo  abrir?  —  perguntou  ao  inerte  Matthew,  a  quem carinhosamente chamava de Vullen, que no idioma pátrio do garoto significava "preencher", e era exatamente o que ele fazia em sua vida e em seu coração naquele momento: preencher os espaços vazios. — Como você nunca me responde e  sempre espera que eu decida  sozinho... O.k.! Vou abrir! — brincou. 

    Ficou  surpreso  e  emocionado  com  a primeira  coisa  que  encontrou  dentro  do  envelope  da ETS. Segurou com força a pedra lisa e escura que tinha colhido às margens do reservatório de Holden,  na  manhã  daquele  trágico  sábado.  Nem  se  lembrava  mais  de  sua  existência  e  seu significado, mas bastou tê-la novamente em mãos para que cada cenário, cada palavra, cada sensação daquele dia ganhassem novamente todas as cores. 

Águas TurvasOnde histórias criam vida. Descubra agora