o vento do sul

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     Todas as grandes decisões da vida seguem a lógica e a dinâmica das estações do ano. Principalmente quando decidimos mudar de vida. Primeiro experimentamos o calor da atitude, o verão intenso dos desejos e esperanças, a plenitude das variações extremas entre manhãs ensolaradas e tardes tempestuosas. Pouco tempo depois, a desconstrução daquele passado passa pelo processo de amarelar as folhas e deixá-las partir rumo à morte ou ao esquecimento. É nesse momento que as calorosas certezas dão lugar à brisa fria das dúvidas que se agigantam no horizonte. O inverno chega e com ele vêm o recolhimento e a sensação de solidão. O frio intenso é solitário. Sentir frio é sentir-se só. E, por fim, se sobrevivemos às nossas próprias decisões e suas intempéries, a neve vai dando lugar aos campos verdejantes, minúsculas folhas começam a brotar nos troncos desnudos e uma paleta de cores tinge os jardins.

     A firmeza do verão, as dúvidas outonais e a solidão do inverno dão lugar a todas as possibilidades de uma primavera. É por isso que o tempo é tão imperioso e impiedoso com cada um de nós quando tomamos uma decisão importante na vida. O tempo — e só ele — é capaz de nos colocar diante daquilo que mais nos assusta ao longo da existência: a liberdade e a responsabilidade de sermos nós mesmos e tomarmos nossas próprias decisões. Decidir é um processo, um percurso, um ciclo. E nunca terá um fim em si mesmo.

     O avião decolou no Brasil em pleno inverno de julho e, no início da tarde do dia seguinte, quando Gabriel Campos colocou seus pés no Logan International Airport, o verão de Boston parecia aquecê-lo mais que qualquer outro passageiro do voo 7415 da United Airlines. Era uma chancela para a sua decisão de deixar a terra natal e ir estudar, e quem sabe fixar morada, nos Estados Unidos. Depois de encarar uma longa jornada aérea de mais de vinte e duas horas, com cansativas conexões no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, e no Dulles International, em Washington, finalmente tinha desembarcado em Boston, a ogiva financeira, cultural e educacional do estado de Massachusetts e de toda a região da Nova Inglaterra, na Costa Leste do território americano. O gigantesco e frenético movimento do Logan convidava suas emoções à certeza da escolha pelo monumental leque de oportunidades que aquela cidade e aquele país lhe ofereciam. Um convite irrecusável, a princípio. Mas, com certeza, incoerente com tudo que havia sido sua vida até então.

     Aos trinta e dois anos, apesar de uma vida solitária, era a primeira vez que Gabriel estava,de fato, só. Filho único de um pequeno sitiante agricultor e uma mãe devotada, crescera na zona rural de uma cidadela da região serrana do estado do Rio de Janeiro. Suas grandes aventuras pueris aconteciam pelos trilhos que os bois deixam no pasto, subindo serras intermináveis girando nas mãos um galho retorcido como se fosse um volante. Desejava ter um Jeep prateado e conversava com um companheiro imaginário. Às vezes acelerava para fugir de alguma temperamental vaca parida, ou estacionava à sombra de alguma árvore frondosa que lhe servia de abrigo, fosse para um descompromissado sono de dez minutos ou para ocultar, atrás dos troncos, suas primeiras experiências sexuais solitárias. Os melhores beijos sempre foram dados nas pedras lisas que colhia nas margens arenosas do riacho de águas turvas que cortava o sítio de sua família. Essas sinuosas pedras de branco perolado eram tão lisas que pouca saliva era suficiente para fazer seus lábios deslizarem no movimento daquilo que lhe parecia o maior dos erotismos.

     Crescer foi tão difícil quanto convencer seus pais de que queria ser médico e não mais amarrar a peia nas pernas de bezerros e tirar o leite das vacas. Queria cuidar das pessoas, salvar vidas, e não ficar aguando a pequena horta de alface, repolho e temperos verdes. Queria conhecer o mundo e não mais ficar refém dos esteios e arames farpados que cercavam a pequena propriedade, estabelecendo as fronteiras de seus sonhos. Seus desejos o chamavam para além de tudo aquilo.

     Só conseguiu sair de casa às vésperas de completar vinte e cinco anos, quando embarcou na extensa e exaustiva jornada acadêmica que a medicina impõe a seus aprendizes. Após a rejeição inicial, seus pais começaram a sentir orgulho do futuro doutor. Enquanto isso, Gabriel aprendia suas lições sobre a anatomia humana e a anatomia da sociedade. Continuava sem saber se era melhor ter companheiros imaginários que nunca respondiam suas perguntas ou ter amigos reais que, com frequência, lhe apresentavam questões para as quais não tinha respostas.

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