Passava das cinco da tarde quando finalmente Gabriel e Nancy atravessaram a Belmont Street para um lanche rápido no D’Angelo. Apesar de cardiologistas, ambos não tinham uma relação pragmática com horários e alimentação. Ele, com apenas três meses em Worcester, já estava viciado no sanduíche feito de rosbife, queijo cheddar, salada, cebola roxa e um molho especial. Ela ficava sempre entre o sanduíche de presunto, queijo suíço e mel ou uma salada de frango, uvas-passas, nozes e aipo. Havia um acordo velado entre eles: comer vagarosamente e tentar não discutir quaisquer assuntos profissionais à mesa. Com o olhar abatido pelo cansaço, tanto pelo processo de adaptação quanto pela rotina exaustiva, Gabriel desabafou:
— Às vezes eu sinto falta do silêncio do sítio dos meus pais. De poder subir no alto do morro e sentir o vento. De colocar os pés nas águas do riacho... — perdeu-se na vista da movimentada Belmont, através da janela de vidro.
— Por que você não aproveita e tira uns dias de folga? — questionou Nancy, e então prosseguiu: — Desde que chegou aqui, há três meses, não para de estudar e trabalhar. Você precisa sair, conhecer pessoas. Quem sabe até fazer uma viagem, mesmo que pequena, para conhecer um pouco Massachusetts. O mundo não vai acabar se você ficar uns dias fora.
— Mas eu não conheço quase nada por aqui.
— Já que você disse estar com saudades do ambiente bucólico onde vivia, de subir os morros e estar cercado de natureza, eu nem vou indicar ir para Boston. Mas acho que tenho uma ótima sugestão de passeio.
— E qual é?
— Holden — afirmou categoricamente Nancy.
— Holden? — Gabriel franziu o cenho.
— Sim. Holden é uma pequena cidade que fica nas colinas, ao norte. Um lugar lindo, Gabriel. Acho que é exatamente o que você procura. Beleza, conforto, natureza, tranquilidade e silêncio.
— E fica muito longe?
— Não. É muito perto, cerca de vinte quilômetros. Meia hora de carro. E a paisagem é deslumbrante. — Nancy sorriu, mas com um semblante nostálgico. — Vou te ensinar o caminho pelos reservatórios de água. É uma pequena estrada alternativa. Acho que você vai gostar.
— Eu não sei... — tergiversou, ainda resistente.
— Gabriel, às vezes é necessário recarregar as baterias. E só conseguimos fazer isso nos lugares de que gostamos. Como você não conhece quase nada por aqui, chegou a hora decomeçar a lhe apresentar algumas opções.
— Mas eu ainda tenho muitas coisas para estudar. E alguns pacientes que preciso acompanhar. Às vezes eu penso que o dia é curto demais!
— Pois organize seu tempo — Nancy lançou aquele olhar de falsa sanha. — Como sua tutora, tenho o dever de cobrar isso. E inclua nessa organização alguns dias para ficar longe de tudo isso, para não sentir cheiro de hospital, nem ouvir falar em acidentes, cirurgias e morte — delicadamente, ela tocou sua mão. — Gabriel, até quem salva vidas às vezes precisa ser salvo de tudo isso.
— Você tem razão — assentiu.
— Então, faça essa viagem, por você.
— Mas e a Gertrude? Não me sinto seguro em deixá-la sozinha, mesmo que por poucos dias.
— Gabriel, eu cuido da Gertrude há anos e posso lhe assegurar de que poucas vezes ela esteve tão bem. Ficou muito mal depois da morte do Irving, mas desde que você chegou, ela parece ter encontrado um novo momento, outras responsabilidades... — Nancy prosseguiu em sua análise. — No entanto, algumas coisas precisam ficar bem claras entre vocês. É compreensível que vocês estejam desenvolvendo uma espécie de relação de transferência, dadas as circunstâncias. Mas você não pode permitir que isso se torne algo doentio. Você está sendo ótimo pra Gertrude, assim como ela pra você. Mas isso não pode colocar em xeque suas escolhas e necessidades pessoais, muito menos impedi-lo de viver além das paredes do seu apartamento e das macas do UMass.
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Águas Turvas
RomanceL I V R O C O M P L E T O ! Autor: Helder Caldeira Disponível também em versão fixa. À venda nas principais livrarias do Brasil. O jovem médico brasileiro Gabriel Campos decide fazer especialização em Worcester, Massachusetts, depois da morte do...