Névoa e Trovões

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O céu estava tomado por nuvens escuras. A chuva trouxe uma densa camada de névoa, que aos poucos  foi  engolindo  as  ruas  amplamente  arborizadas  de  Holden.  Por  entre  a paisagem quase bucólica da Highland  Street, a torre de Vermont, em granito rosa e telhado acobreado, ganhava  ainda  mais  destaque.  O  centenário  edifício  do  Damon  Memorial,  inaugurado  em 1888,  abriga  a  Gale  Free  Library,  o  grande  orgulho  dos  munícipes.  O  prédio  foi  doado  à cidade, no  final  do  século XIX, pelo professor  Samuel  C.  Gale  e  sua  esposa,  Susan Damon Gale.  Desde  então,  os  grandes  investimentos  realizados  pela  própria  população  fizeram  da Gale  Library,  aquele  magnífico  prédio  de  arquitetura  romântica  no  Centro  Histórico  de Holden,  uma  das  mais  importantes  bibliotecas  públicas  da  Nova  Inglaterra,  com  destaque especial no Registro Nacional de Locais Históricos dos Estados Unidos da América. Catherine Thompson era sócia e uma das fundadoras da Friends of Gale Free Library, uma associação  de  voluntários  responsável  por  todo  o  Memorial  e  pela  captação  e  gestão  dos recursos que são mensalmente doados ou fruto dos eventos, atividades especiais e da venda de livros,  além  da  divisão  entre  os  membros  de  algumas  funções  básicas  para  manutenção  do local.  Na  tarde   daquele   sábado,   a  matriarca   dos   Thompson   estava   envolvida   com   os preparativos  de  seu  novo  jardim  e  pediu  que  sua  filha  Nicole  cumprisse  a  escala  na biblioteca.  Isso  depois  de  passar  um  bom  tempo  convencendo-a,  já  que  Nicky  sempre recusava  a  tarefa  com  veemência. Apesar  do  prazer  pela  leitura,  a jovem  não  era  nem  um pouco afeita ao convívio social imposto pelo atendimento da biblioteca. Foi convencida pelo argumento de que nas tardes de sábado o movimento da Gale era muito pequeno, quase nulo, fato comprovado naquele dia. Desde que chegara ao local, não atendera uma única alma viva. 

Sozinha  e  completamente  ociosa,  Nicole  atravessou  as  extensas  galerias  formadas  pelas prateleiras  em  busca  de  algum  livro  que  lhe  servisse  de  companhia.  Correu  os  olhos  pelas mais  de  seiscentas páginas  de Kate:  The  Woman  Who  Was  Hep burn , biografia  da  atriz  escrita pelo romancista William J. Mann, especialista na história de Hollywood. Perdeu-se admirando as fotos da diva de um tempo, ora altiva como a protagonista de Mary of  Scotland, de John Ford, ora intensa  como  a  mãe  complexada  na  versão  cinematográfica  de  Sidney  Lumet  para  o  texto teatral de Eugene O'Neill, Long Day 's Journey Into Night. Depois  de  devolver  o  livro  à  prateleira,  seguiu  pelo  extenso  módulo  de  estantes.  Teve  a patente  sensação  de  que  estava  sendo  observada.  Parou  e  olhou para  os  dois  lados  daquele corredor de livros e não viu ninguém. Apurou os ouvidos na expectativa de ouvir algum ruído, algum passo ou qualquer movimento. Nada. 

"Foi só uma sensação!", desconsiderou. De repente, ouviu um rápido revirar de páginas do outro  lado  da  estante. Apurou novamente  os  ouvidos. Mas  isso nem  seria necessário, já  que uma  forte  voz  masculina  começou  a  declamar.  Nicole  sentiu  um  frio  correr-lhe  a  espinha. Enquanto  ouvia,  seguiu  lentamente  em  direção  ao  final  do  corredor  de  estantes  para  tentar avistar  o  dono  da voz. Percebeu  que  ele também  caminhava, paralelamente  a  ela, na mesma direção, sem perder o texto ou o tom: 

     

         que o meu coração esteja sempre aberto às pequenas 

         aves que são os segredos da vida 

         o que quer que cantem é melhor do que conhecer 

         e se os homens não as ouvem estão velhos 

Águas TurvasOnde histórias criam vida. Descubra agora