Capítulo IX: A Amizade é uma Dádiva

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Auriel deitou Leonardo no quarto dele e passou algumas pomadas e ataduras, poderia ter usado um poder de cura, mas preferiu fazer isso por desconfiar da resistência incomum de Leonardo diante de Abaddon. Após terminar, sentou-se ao lado na cama e começou a refletir.

— Você me disse que não é uma médica — disse Leonardo —, no entanto, parece que é a mestra dos médicos do Céu.

— Aprendi algumas coisas com Rafael, ele é o chefe dos médicos celestiais, acho que consegui reproduzir algumas delas mesmo sem os instrumentos usados em Angélia — respondeu Auriel, sem mencionar o poder de cura — A medicina mortal avançou muito nos últimos tempos.

— Nada se compara com o que você está fazendo — disse Leonardo — Muito obrigado por estar me ajudando, Auriel, serei eternamente grato a você por isso.

— É uma forma minha de agradecer por ter me ajudado — respondeu Auriel — É o mínimo que posso fazer.

Alguns minutos depois, as primeiras cicatrizes já começavam a aparecer. Auriel sabia que para um humano do porte de Leonardo, deveria levar mais tempo, mas mesmo assim não se surpreendeu.

— Impressionante! — exclamou Leonardo — Já estão sarando.

— Não faça muito esforço daqui para a frente — recomendou Auriel —, as feridas podem abrir se o fizer.

— Fique relaxada, continuarei por aqui — garantiu Leonardo.

Ela se levantou da cama e caminhou um pouco pelo quarto dele, notando alguns pôsteres de bandas, filmes e super-heróis, além de fitar uma estante de livros.

— Ei, posso fazer mais algumas perguntas? — perguntou Leonardo.

— Por que não poderia? — retrucou a ophanim, o fitando — Desde que não abuse de minha bondade, por mim tudo bem.

— Jamais — respondeu Leonardo —, só quero tirar as últimas dúvidas.

— O que tem para me perguntar? — perguntou Auriel, chegando ao lado dele; sentando na cama novamente.

— Você fala bastante do Arcanjo Miguel pelo que eu ouvi — constatou Leonardo — Por favor não leve a mal mas, você e ele são comprometidos ou algo do tipo? Bem, porque segundo Periel e Zaniel...

— Primeiro de tudo — interrompeu Auriel —, nunca dê ouvidos ao que aqueles dois paspalhos falam, principalmente Periel, porque só defeca pela boca.

— Está bem, me desculpe — pediu Leonardo — Mas só quero saber, fica entre nós.

Auriel suspirou fundo, pensou nas palavras, ajeitou o cabelo, e só então voltou a fitar o mortal.

— É uma longa história — diz ela — Eu e Miguel somos muito unidos, o conheço há bastante tempo e lutei ao seu lado por diversas vezes ao longo da história.

— Seria um tipo de amizade? — perguntou Leonardo — Por exemplo: Vocês dois são amigos, gostam um do outro, mas não namoram, é isso? Aqui nós chamamos de amizade colorida.

— Não é isso! — respondeu Auriel — Como eu falei, conheço Miguel há bastante tempo. É um pouco complicado mas sim, eu e Miguel vivemos um relacionamento. Nós nos amamos e...é isso.

— Por isso aqueles dois a importunam tanto? — perguntou o rapaz.

— Periel e Zaniel não entendem isso, são dois babacas que falam apenas para provocar, mas eu gosto deles — respondeu Auriel — Eu e Miguel amamos um ao outro, há uma troca de carinho mas nada meloso, só um pouco — ela ri sem graça.

— Compreendo — disse Leonardo — É um pouco diferente da relação mortal, ouvi dizer que o ato sexual é proibido aos anjos.

— Não exatamente, se quer saber a verdade. Vocês, mortais, especulam muitas coisas erradas sobre nós — disse a ophanim — Os homens buscam um sexo como uma ilusão, algo passageiro, e infelizmente muitos não fazem isso por amor a alguém. Anjos apenas sentem desgosto ao ver o quão fútil ele se tornou para vocês. Afinal, quem não gostaria de um momento de prazer, mas com a pessoa amada?

— Então, você e o Miguel já...como posso dizer, transaram? — quis saber ele, um pouco nervoso.

Surpresa pela pergunta, Auriel corou, tirou fios de cabelo do rosto, cruzou a perna direita e fechou os olhos com um semblante nada amigável.

— Hum, não é da sua conta! — responde ela, corada e voltando a olhá-lo — Sabe, já que estamos falando sobre sexo. Há uns séculos atrás um grupo de anjos foi capaz de descer ao planeta para experimentá-lo com as pessoas mortais.

— Voltando ao assunto — disse Leonardo —, mais uma vez eu peço para que se eu a estiver incomodando pode pedir para parar.

— Não, está tudo bem — respondeu Auriel — É bom conversar com novos amigos.

— Você e Miguel devem gostar muito um do outro — disse Leonardo — Imagino que ele a deixe feliz.

— Miguel é alguém que por fora dá uma de durão, mas tem um coração enorme — respondeu Auriel — É alguém sábio e certeiro, mas que não é bom irritar.

— Você contou que o conhece há muito tempo e que ele não é muito de elogiar os outros — quis saber mais.

— Sim — confirmou a garota-anjo — Desde que cheguei na capital que o conheço. Como eu disse, Miguel dá uma de durão por fora, mas é um excelente líder. Todos os alados tem um apreço por ele. Ele é um símbolo de esperança para nós.

— Interessante — disse Leonardo — Os anjos são bem diferentes dos seres humanos.

— Não muito — retrucou Auriel —, mas há uma coisa que os alados invejam em vocês mortais: A livre decisão de escolhas. Nós somos guiados pela natureza. Quando desafiados, tendemos a aceitar o combate, mesmo que no fim sejamos impedidos. Vocês podem simplesmente recusar sem dificuldade.

— Uau! — exclamou Leonardo — A noite passa e nós aqui conversando. Mas me conte, foi difícil o inicio com Miguel?

— Miguel me contou que desde o dia em que me viu pela primeira vez seu coração bateu forte, enfim, coisa de homem apaixonado — falou Auriel — Mas foi um pouco complicado, eu era uma simples aprendiz e ele era um príncipe. Haviam muitas outras aladas que tinham mais chances.

— Mas ele escolheu você — respondeu Leonardo.

— Sim — disse Auriel — Uma pessoa que atrapalhou um pouco foi Amitiel, uma das legisladoras dos anjos, ela era apaixonada por Miguel, mas ele nem sequer olhava para ela, isso fez com que ela ficasse furiosa. Quase fui expulsa de Angélia uma vez por causa das artimanhas daquela piranha.

— Realmente, você é especial — afirmou Leonardo — Não é todo mundo que tem essa sorte.

— Não me julgo especial — respondeu a alada —, apenas sou eu mesma em qualquer situação, não uma máscara.

— Miguel tem sorte de ter você ao lado dele — falou Leonardo — Ele a valoriza muito, para ele você é como uma joia preciosa.

— Ele sempre me diz isso — respondeu Auriel — Miguel é a melhor pessoa que já conheci em toda a minha vida, apesar de brigarmos e discordarmos às vezes.

— Você faz por merecer — disse Leonardo.

— Tesael, minha antiga mestra, dizia que Yahweh se enche de alegria ao ver um coração puro praticando uma boa ação com o próximo — disse Auriel — Ela me disse que eu estava destinada a grandes feitos.

— O que houve com ela? — quis saber Leonardo — Fala como se ela não estivesse mais vivo.

Auriel abaixou a cabeça, observando o piso um pouco logo adiante de si. Um vento forte cruzou pela janela.

— Tesael está morta! — respondeu ela, com uma voz carregada e abatida — Ela foi morta em uma guerra passada; a guerra contra os vigilantes.

— Sinto muito — disse Leonardo, colocando suas mãos nos ombros dela — Creio que ela deve ter sido especial para você.

— E foi — confirmou Auriel — Tesael me ensinou o básico que sei hoje sobre luta corporal. Foi uma grande Anjo, a lendária guerreira de Ophania. Ela me moldou.

— E Miguel? — perguntou Leonardo — Ele também a treinou muito imagino.

— Uma vez ele me disse que queria me tornar a melhor guerreira dos Sete Céus — falou Auriel.

— E você acha que se tornou? — perguntou Leonardo.

— Não me vejo assim — respondeu Auriel — Para mim, ainda tenho muito a melhorar.

— Acho que ele estava certo sobre você — falou Leonardo.

— Preciso melhorar muito se eu quiser vencer ainda mais — disse Auriel — A caminhada ainda não chegou ao seu final.

— Você mesma falou que já venceu vários adversários bem mais poderosos que você — disse Leonardo.

— Me dediquei vários anos com intensos treinamentos de resistência — falou Auriel — Mas ainda não cheguei ao topo, e você? Ainda não me contou muita coisa.

— Verdade — respondeu Leonardo, aos risos — Mas nem sei por onde começar. Passei por tanta coisa também, mas nada se compara com o que você me contou.

— Comece pelo início — brincou Auriel.

— Você deve saber que a vida de um humano também não é fácil —disse Leonardo — Ainda mais quando se vive no mundo de hoje, onde está por toda parte.

— Compreendo — respondeu Auriel — O mundo humano vive a beira de um colapso.

Auriel raramente se abria para estranhos, mas com o tempo foi se aproximando mais de Leonardo e começou a ficar mais próxima do mortal. Eram quase duas horas da manhã mas os dois ainda conversavam no quarto. Leonardo permanecia deitado e encostado na parede, com a ophanim a seu lado.

— Sofri muito preconceito no passado, e ainda sofro, seja pela minha cor ou por...esquece — desistiu Leonardo.

— É um dos grandes males da humanidade — disse Auriel — Por séculos, eu vi humanos oprimindo outros humanos por julgarem-nos inferiores. Não consigo entender isso.

— Eu perdi meu pai muito cedo nas mãos da polícia, mas ele não cometeu nenhum crime — falou Leonardo —, assim, tive que ajudar mais minha mãe em casa com várias funções.

— Já vi casos como o do seu pai, e infelizmente as autoridades nunca fazem algo para mudar essa realidade. No céu, todos os anjos tem uma função diferente — disse Auriel —, existem cantores, soldados, nobres, uma hierarquia consolidada.

— Me desculpe se eu não me abrir muito — pediu o rapaz — É que ainda é meio estranho conversar com um ser milenar.

— Não, tudo bem — respondeu a alada — Eu já vi muitas pessoas como você. A parte ruim de ser imortal e não envelhecer, é que você pode perder gente que gosta, ficar sozinho e nunca se reunir com eles.

— Eu só queria entender mais a humanidade — disse Leonardo — Sinto que está no limite do fim.

— Nenhum anjo sabe, nem mesmo Malakiel, o anjo que vê todo o Universo, apenas podemos sentir que esse tempo se aproxima — respondeu Auriel.

— É triste ver a que ponto chegou o homem — disse Leonardo.

— Já vi muitos homens malignos por vários lugares, e a cada dia que passa, penso que há tipos bem piores que eles — relatou Auriel — Sejam políticos, militares ou civis comuns.

— Deus deve ser alguém com uma calma impressionante — pensou Leonardo.

— Yahweh é alguém sábio e paciente — retrucou Auriel — Mas não é bom ir contra ele por um motivo fútil, Lúcifer é o maior exemplo disso.

— Você me diz que já passou por tantas aventuras ao longo da história — disse Leonardo — Deve ser uma guerreira formidável.

— Alguns acham que sou uma princesa em apuros, coisas que já ouvi e vi, inclusive a todo momento falam que vão me matar — dispara ela — Mas na realidade sou alguém forte e bastante preparada.

— Falta pouco, talvez — disse Leonardo — Acho que pode fazer isso, você tem muitas qualidades.

— Obrigada — agradeceu Auriel —, mas prefiro manter meu pé no chão.

— De todas as experiências que passou, qual você acha que foi a maior delas? — perguntou Leonardo.

— Uma das mais impactantes e sem dúvidas a que mais me amadureceu foi a que ocorreu no ano 30, de acordo com o seu calendário — respondeu Auriel — O tempo que passei com o Enviado

— Enviado? — perguntou Leonardo, espantado — Você conheceu ele?

— Sim — respondeu Auriel — Eu fui incumbida de acompanha-lo. Estive com ele desde o nascimento.

— Incrível — disse Leonardo.

— Você é o primeiro mortal que realmente eu me abri para esse estilo de conversa — afirmou Auriel, segurando na mão dele — Dá para ver que é alguém de caráter, admiro isso.

— Mas agora me conte mais sobre o Enviado — pediu Leonardo.

— Até hoje eu tenho a imagem dele quando morreu — falou Auriel — Ele estava completamente desfigurado.

— Mas e os quadros sobre ele? — questiona o mortal.

— Esqueça todos os retratos que você viu dele — pediu Auriel — Eles em nada representam o que foi.

Cavaleiros do Ar: Elos do ParaísoOnde histórias criam vida. Descubra agora