PERSENA

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Ano 1431. A jovem Joana, perseguida ou pelo menos cobiçada por todos os adultos masculinos em todas as circunstâncias onde estivesse, causava todo tipo de impressão, involuntariamente, apenas por existir e por estar ali, bela e inacessível ao passar. Provocava, da mesma forma que uma borboleta azul metálico, profunda inveja nas gordas e ricas mariposas da noite, entre garotas, meninas, mulheres, moças, velhas, fêmeas de todos os tamanhos. Ao caminhar tinha a graça de uma serpente na vertical. Em outra polaridade, provocava a fúria (mista com desejo) dos senhores mais conservadores, casados, responsáveis, propriedade física das respectivas honradas esposas, proibidos de possuí-la mesmo em pensamento. 

A desgraça de Joana começou numa missa em que compareceu, a convite de algumas primas e amigos da mesma vila, naquele domingo em que o bispo da província de Merda viria rezar pessoalmente. Iria vomitar alguns salmos e sermões decorados sobre a cabeça de mais alguns ignorantes camponeses, primeiro em falso latim, depois em falsa tradução de latim para impressionar. Tudo para impressionar uma massa de ancestrais da sociedade primitiva capitalista, que jamais pusera as mãos num livro, mesmo porque não havia livros disponíveis além de alguns ao preço de uma casa. O efeito moral dos imponentes paramentos clericais, o latim, as palavras difíceis, o coro logo atrás impressionava às lágrimas. No momento do ritual da comunhão, eis que o orador, maníaco sexualmente abstinente, se encantou com a bela Joana, que passou a ser protagonista de todas as suas fantasias.  

Em certa ocasião, Joana atravessava uma praça da cidade, portando algumas guloseimas numa sacola pendurada no corpo, rumo à casa de uma tia, pois fariam uma modesta festa pelos seus 18 anos de existência. Em direção oposta vinha uma mulher com um cão enorme na coleira de uma grossa corrente. O cão, sem motivo aparente, rosnou furiosamente para Joana, a mulher não conseguiu segurar e ele partiu para cima da moça. Foi salva das mordidas pelas camadas de tecido do seu farto vestido medieval, pois o cachorro abocanhava os panos com ódio mortal, sacudindo a cabeça como um possesso, enquanto a moça desesperada conseguiu sair de dentro das vestes, articuladamente como uma aranha troca a pele do corpo. Nua, para total deleite dos pedestres masculinos presentes ao redor, entre eles, o bispo. 

Mortalmente humilhada, a moça tentou esconder-se entre uma minúscula moita de roseira, formando uma mágica tentação visual de corpo e flores iluminada por um sol radiante da manhã.  

- Por misericórdia cristã, alguém tire minhas roupas da boca dessa fera e me devolvam. Estou a desfalecer de vergonha! 

Ninguém se candidatou, talvez por medo do cachorro, talvez por outro motivo. Sem pressa nenhuma, um bêbado saiu da mesa de um boteco e quebrou um porrete na cabeça do cachorro, que partiu em disparada. Para tristeza dos espectadores, atirou o vestido para Joana que praticamente engoliu o corpo com o vestido. Partiu dali sem olhar para trás, rubra até o calcanhar.  

O bispo, durante todos os minutos do maravilhoso episódio, lambia repetidamente os lábios como um torcedor fanático durante um pênalti. Até tremia. Aquilo amplificou intensamente seu desejo pela moça, que trinta dias depois seria sua vítima. Ardilosamente, espalhou um comentário de que aquele cão era o bicho mais dócil da Terra, ninguém jamais conhecera sequer o tom do seu rosnado. Então porque se enfurecera tão profundamente e tão de repente? Só poderia mesmo estar diante de uma bruxa! E deixou esse boato alastrar-se. 

Joana, apavorada com os comentários, trancou-se em casa. Recentemente assistira a incineração de um rapaz em praça pública e sabia dos horrores dessa circunstância. Os olhos explodem. Ninguém sobrevive ao terceiro minuto. Os amigos desmaiam. O corpo se torna uma escultura de carvão. Matar-se-ia antes que se aproximassem dela: então passou a guardar consigo um pontiagudo punhal.

Num daqueles dias seguintes, ouviu bater à porta, conciliador, o generoso Bispo Marcelle. O cínico sugeriu-lhe uma maravilhosa solução para provar ao povo que não era bruxa: tornar-se uma devota freira do convento sob sua jurisdição. E Joana aceitou: caiu na armadilha como um pernilongo na teia de uma aranha.  

Logo no sábado da primeira semana Joana aceitou vinho oferecido pelo religioso e embebedou-se até ficar inocente. Acordou sobre as tábuas de um profundo porão com o corpo nu, acorrentada em "x" por grossas correntes. Foi quando percebeu a artimanha do malandro, mas era tarde. Violada por diversos dias, não tinha outra saída. Alguns dias depois o bispo resolveu libertá-la, sob custódia, dentro do convento, desde que não o denunciasse. Se tentasse, seria a próxima vítima do fogo. Recebia esporadicamente visitas noturnas do tarado, sem outra saída além de calar-se.  

Alguns meses depois Joana engravidou, mas escondeu o fato. As vestes femininas da época, muito largas e cheias de pano favoreceram a ocultação de sua barriga larga. Curiosamente, por este período, o bispo havia sequestrado outra vítima, então deixou Joana temporariamente em segundo plano. Joana tinha uma amiga confidente, Monique, criada do convento, que residia num casebre à beira de uma estrada fora daquela fortaleza de pedras. Monique soube de tudo e acompanhou dia a dia o infortúnio de Joana. Quando nasceu um casal de gêmeos, Joana entregou aos cuidados de Monique, que fora sábia o suficiente para fingir, ela própria, uma gravidez vista aos olhos de todos. Tinha um marido alcoólatra repleto de amantes e frequentador de casas noturnas, que jamais a procurava nua ou vestida, banhada ou suja, desde que punha arroz à mesa. Sob essa convincente forja nasceu então um casal de gêmeos, Persena e Jean Pierre. Jean Claude, o marido, acreditava serem seus, até com a semelhança do nariz. E ficou extremamente comovido com a surpresa que a mulher lhe reservara de modo tão astuto.  

Dez anos depois, Monique, a mãe postiça das crianças, numa noite de festas, revelou secretamente para uma prima toda a tragédia de Joana, inclusive o nascimento das crianças que não eram seus filhos. De boca em boca, meses depois o comentário chegou aos imundos ouvidos do bispo. Soube que havia dois descendentes seus soltos pelas ruas e quando o papa soubesse, seria o fim de sua carreira política na igreja. Recordou-se do episódio entre Joana e o cão na praça, então resolveu retornar aquilo ao público. Conforme as palavras de sua língua, Joana era uma mulher maldita, seguida por escorpiões e ratos e onde tocava permanecia uma marca de queimado.

Domingo

Persena e o irmão faziam farra com uma bola de pano, quando souberam que haveria a incineração de uma bruxa naqueles dias. Inocentes, ambos com dez anos, foram ver do que se tratava. Ao ver uma mulher sendo arrastada por cavalos, chutada, cuspida e humilhada, Persena vomitou: sentiu-se muito mal com a vida. Pouco depois Joana foi presa por troncos atravessados entre os braços, pendurada pelas axilas, onde ficou por três longos dias. Três intermináveis dias. Comovida, por todas as noites anteriores ao flagelo Persena trouxe água para a suposta bruxa, nas altas madrugadas frias, tamanha a piedade que lhe incomodava o sono, mesmo arriscando-se a ser acusada de filhote de bruxa. No último daqueles dias, Persena e Jean Pierre assistiram ao pior dos espetáculos de suas vidas, pois conforme as regras, quem não assistisse a incineração poderia ser acusado de cumplicidade com a bruxaria.

Depois

Pouco tempo depois Jean Pierre foi convocado para compor as tropas de elite juvenis do rei, então nunca mais se viram, mas ela continuou vivendo com Monique, sobrevivendo com a venda de legumes numa feira local. Numa ocasião de inverno com neves infinitas e muitos ventos maldosos, apanhando lenha para a lareira, Monique foi picada por uma serpente.  

Persena, com uma força inexplicável, conseguiu juntar os cães e rolar o corpo da mãe quase morta para dentro de um trenó. Conseguiram se deslocar até um ponto de subida onde era impossível continuar. Monique despertou da febre. Sabia que estava nos últimos minutos de vida, então revelou toda a verdade para Persena. Ao saber que aquela mulher torturada, violada, amarrada, chutada e depois queimada viva era sua mãe... Persena entrou em paranoia. Assistiram a incineração da própria mãe! Jean Pierre jamais poderia saber daquilo! 

A partir de então Persena se tornou a criatura mais terrível da existência. Herdou a incrível genialidade da mãe, mais uma beleza indescritível em palavras e um profundo, inextinguível desejo de vingança. Deus, o Diabo, os bispos, os políticos, os alienígenas, alguém pagaria por aquele trauma. E que ninguém cruzasse seu caminho com outra proposta.  

Alguns anos depois Persena se tornou veterinária em Paris. Poderia ser médica, porém sentia um desprezo indescritível pela raça humana, então preferiria curar os ratos, se preciso fosse. Persena morreu sem marido nem filhos, depois de uma vida incomum, anônima, solitária, alcoólatra. Ironicamente, morreu limpando uma arma de fogo, a arma disparou e ela morreu instantaneamente, dentro de casa. Foi descoberta semanas depois por um dos raríssimos amigos. Fato ausente da menor importância, ela foi sepultada sem velório, quase como indigente, numa quinta-feira chuvosa.

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