Balufe

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Enfim, minha vez. De frente com o pálido e barbudo senhor, cujo rosto ficará na memória apenas aqueles profundos e tristes olhos negros, ajoelhei-me, aguardando clemência, pois até ali eu acreditava que estava mesmo diante de Deus. Após longos minutos, provavelmente lendo minha ficha, finalmente o guardião me encarou com um sorriso leve e generoso, acenando para a esquerda - o lado das naves brancas e anjos do bem. Em sua moderna mesinha acrílica em forma de meia-lua, amontoavam-se centenas de passaportes digitais, que eram trazidos conforme a demanda. A mesa na verdade era um painel de tecnologia superavançada, com tantos comandos que parecia o painel de uma nave espacial, cheia de "leds" de todas as cores, telinhas e centenas de botões. O anjo ordenou que eu me aproximasse e que colocasse minhas digitais todas, cada qual sobre um cristal ótico, luminoso e circular. Assim que os cristais procederam a leitura ótica das digitais, o anjo acionou um botão que fez projetar da mesa um tipo de binóculos, onde eu deveria enfiar os olhos para outra leitura, a leitura completa da íris e da retina. Em seguida essas informações, que são únicas em cada ser humano, foram transmitidas para um cartão muito similar a um cartão de banco. O chip teria que ser entregue aos anjos do Porto Espacial – a imensa plataforma de embarque para suas respectivas naves: os bons para o céu, os maus para as naves do inferno. Era uma logística muito similar à estrutura de qualquer aeroporto, cada qual com seu destino.

Pois bem: teoricamente os cartões – que eram externamente idênticos para evitar fraudes e somente as máquinas conseguiriam proceder as complexas leituras de identificação radiográfica – deveriam ser entregues no embarque geral, tal como no aeroporto onde quem compra seu bilhete tem que apresentar ao recepcionista de embarques. Portanto, formava-se então uma segunda fila antes do embarque definitivo para o céu ou inferno. Eu tinha quase certeza de que iria para o céu, considerando a benevolência do guardião principal, que inclusive me pareceu ter feito um comentário amistoso. "Serás bem-vindo ao paraíso Argemiro, tem muita gente tua por lá." Algo desse tipo!

Esta segunda fila se formava numa pista entre muros brancos, no alto de um penhasco de pedras. Na verdade era fila indiana tripla. Os muros serviam de base para uma cobertura de cristal que assim formava um longo corredor, de forma a evitar tentativas idiotas de suicídio, por parte daqueles mais culpados, que tinham certeza que seu cartão era para o inferno. O penhasco servia como ponte entre dois imensos chapadões onde estavam centenas de naves aguardando os condenados e os absolvidos. Na saída deste corredor, os guardiões celestiais procediam a leitura ótica do cartão, encaminhando cada um para seu destino. Evidente que as pessoas absolvidas, encaminhadas para o céu iam de bom grado. O mesmo não ocorria com os condenados sentenciados, que reagiam de forma desesperada, alguns até mesmo com arrogância:

- Sabes com quem estás falando, mísero guardinha? Vou denunciá-lo nas instâncias superiores por desacato.

Enquanto a fila ficava lentamente mais curta, pelo menos à frente, eu procurava ocupar o tempo observando os demais ocupantes. Um grupo de homens que estava imediatamente à minha frente não me parecia estranho. Pelo menos alguns deles. Parlamentavam entre si com fervor. Aquele que aparentemente era o líder do grupo, então, parecia-me ainda mais familiar, embora visivelmente tenso e contrariado. Percebendo minha curiosidade, o cidadão me abriu um generoso e retangular sorriso, com os olhos fixos na minha figura:

- Argemiro? Você não é o jornalista Argemiro Ramos Marques, do jornal Colunas Sociais e da TV Cultural?

Ao estender a mão para o sujeito, reconheci o tom metálico da voz e o sorriso-padrão que ele esboçava a todo instante. Que mão gelada! O cara era inconfundível, estava sem os horríveis óculos, mas era ele, não podia ser outra pessoa: O deputado Mauro Balufe!

Ocorreu o seguinte: pouco depois, algumas horas após minha morte, o tal político sofreu uma queda de avião, em cujo acidente faleceu, não apenas ele, mas toda sua tripulação ao fugir de uma perseguição aérea da Interpol, próximo aos Alpes Suíços! O jatinho estava abarrotado de sacolas com dólares, mal cabia, além deles, uma caixa de champanhe gelado que eles usariam para brindar mais aquela remessa para o Exterior!

AS SETE PRAGASOnde histórias criam vida. Descubra agora