Ilustres & Canalhas

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Entre ilustres & canalhas 

Fez-se enfim ouvir o som metálico do sino de uma campainha numa mesa, ofuscado pelo burburinho de deputados presentes sob a redoma do Congresso. Pauta: votação de aumento salarial deles próprios, de seus apadrinhados e de serventuários da justiça, mais algumas correções. A convocação, urgente, reunira absolutamente todos os eleitos, sem uma única cadeira vazia em todo o plenário e nem uma vaga livre no estacionamento lá fora. Após breve introdução, com as mesmas justificativas de sempre, o melancólico presidente da casa colocou em votação os 80% que pretendiam. Com exceção de sete elementos contrários, o aumento seria concedido, aprovado e carimbado rapidamente: Sete contra 593, considerando-se que o benefício envolveria também a categoria dos senadores: uma vitória esmagadora!  

Cafezinho para lá, entre um whisky e outro, os ilustres já comemoravam o aumento, entre alarmantes demonstrações de saudades e afeto entre si, pois pouco se encontravam anualmente. O assunto predominante era as próximas eleições, quem ficaria com quem, quem deixou quem, quem ficaria com quanto disso ou daquilo e, claro, o aumento. O processo todo, incluindo o discursinho lido pelo presidente, levou 23 minutos com aprovação imediata. No momento em que o presidente lia o último entediante parágrafo de encerramento, um puxa-saco anônimo veio por trás e cochichou alguma coisa no ouvido do sisudo apresentador de pautas. Ele se interrompeu, pálido, olhando para o vazio da cúpula azul do plenário, como que crucificado. O súbito silêncio no microfone convergiu a atenção da tribo toda, quase que simultaneamente. Questionado por um membro lateral da mesa, retomou o fôlego, fingindo pouca preocupação: 

- Senhores, parece que temos visita. Temos mais de quinhentos manifestantes adeptos do "mago" (era como a mídia vinha se referindo a Yuri) lá na portaria querendo assistir nossa votação secreta. Permitiremos? 

Uma floresta de dedinhos para o alto, sacudindo negativamente, indignados com a "invasão" dos subversivos adeptos do charlatão futurista. O puxa-saco, algo parecido com um maestro ou um mordomo da Família Adams, insistiu discretamente junto à orelha esquerda do doutor Gastão Guerra, fazendo aparentemente algum acréscimo ao recado. Nisso, o presidente da Câmara, num sorriso amarelo, corrigiu-se: 

- Senhores, peço permissão para me corrigir: são quinhentos mil! 500 mil manifestantes e não 500, como eu havia entendido. Segundo o meu porta-voz, o teto do "nosso" plenário está forrado de manifestantes. 

O pânico começou a tomar conta do ambiente.  

- Alguém aí, chame a guarda nacional! 

- Quem esses comunistas estão pensando que são? 

- Assina logo nosso aumento e vamos embora, presidente! 

- Cadê minha caneta? 

- Estou passando mal, quero uma ambulância! 

Todos falavam ao mesmo tempo, sem que ninguém entendesse nada, numa cacofonia ininteligível aumentada pela acústica da cúpula. Um deles, grande, de cabelos fartos e lisos e louros, cochichou para um colega de cadeira: 

- Lá se vão meus 30 paus para a casa do caralho! 

Subitamente, entrou pela porta lateral, acompanhado de um rapaz franzino, nada menos que o indesejável Yuri. Em linha reta, percebendo que abriam caminho como zebras na frente de um leão, Yuri foi direto ao presidente. Sério, sem cerimônia, aquele homem de olhar assustador, entregou um papel ao deputado e juiz Gastão, provavelmente o manifesto do plebiscito. Cheio de empáfia, silencioso, o magistrado ajeitou os óculos e passou à leitura silenciosa, somente para si, do conteúdo. Na platéia, pura angústia. As reações mais bizarras possíveis. Alguns enxugavam o farto suor, outros se mantinham prostrados na cadeira olhando para o nada com olhos de peixe morto, estáticos, muitos recorriam ao celular com o desespero de uma vítima de acidente aéreo, despedindo-se da família. Sair para encarar quinhentos mil pares de olhos furiosos, nem pensar. O deputado enfim levantou os olhos, indignado, vitimado pela mais profunda angústia, dirigindo-se ao plenário: 

- Mas isso é absurdo! Impossível! Bizarro!  

- O senhor vai ler isso em voz alta ou quer que eu o faça?  

Sem a menor fineza, Yuri puxou o papel das mãos peludas do político, tirou o microfone do suporte e se voltou para a platéia, lendo o texto na íntegra: 

"A nação brasileira, cuja maioria, aqui representada pelas mais de 150 milhões de assinaturas deste manifesto, ora designado como plebiscito popular, vem exigir que se cumpra, conforme o exposto na Constituição, nos capítulos sobre o direito de manifestação e liberdade, as seguintes providências - sem emendas ou rasuras..."

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