O COTIDIANO NO INFERNO
Entre os fiscais voluntários do trabalho havia antigos operários na Terra que morreram em obras faraônicas de edifícios, construção de navios, metrôs, em estradas e túneis de rodovias. Alguns foram soterrados em minas de carvão, enfim, trabalhadores assalariados, todos com final trágico na vida terrena, de onde partiram sem deixar outro patrimônio além de saudade e fome para os filhos e esposas. Mas havia também empregadas domésticas, prostitutas que passaram o diabo nas mãos daqueles caras, porteiros, garçons e diversas categorias de gente humilde, gente feia, loucos, gordos, velhos, paralíticos, cegos, albinos, anões e até prisioneiros inocentes que cumpriram cinco, dez ou mais anos no sistema judiciário. Gente como a garota Persena. É grande, muito numeroso o sortilégio de infelizes que se arrastaram por longas vidas aqui na Terra, num coquetel de tragédias que ocorre todos os dias sob as asas dos aviões.
Os condenados, outra categoria de cidadãos, compunham, em sua maioria, empresários exploradores, políticos sujos, juízes corruptos, traficantes de droga e vigaristas de toda espécie, cafetões, jornalistas mentirosos, padres pervertidos, entre outras aberrações. Gente com muita, muita grana e pouco, pouquíssimo caráter. Um grande time composto pela verdadeira escória social da Terra. Mas havia também culpas mais leves, daquelas donas-de-casa, algumas até famosas, que maltrataram suas domésticas, maus pagadores de dívidas, fofoqueiros e difamadores, vizinhos encrenqueiros e brigões, entre outros que, apesar de tudo jamais empunharam uma arma contra ninguém. Tratava-se, porém, de gente de todas as raças, de todas as culturas e religiões e procedentes de todos os países. Assim, era comum encontros memoráveis e surpreendentes como a seguir.
SOTERRADOS
Pois bem: Alfredo Bulhões de Magalhães, um ex-empreiteiro de obras, antes riquíssimo, foi flagrado sem trabalhar, quando descobriu que o fiscal era nada mais nada menos que um de seus antigos operários. Sussurrou engasgado:
- Joaquim, meu bom homem, você aqui! Quanto tempo...
Tentava ele disfarçar e ganhar tempo, temendo uma vingança iminente que certamente iria arder em seu rabo. Mas recebeu de Joaquim o tratamento disciplinar merecido. Permaneceria várias horas além do expediente normal a perfurar um paredão, até que parecesse um queijo suíço. Mais tarde, já entediado, Joaquim pôs-se a caminhar, indo embora, deixando para trás os sons metálicos da marreta contra o ponteiro de ferro manejados pelo antigo patrão. Enquanto caminhava, vinha-lhe à memória a tragédia do soterramento nas minas:
"Era tarde da noite, passava das dez. Ele, mais o seu grupo todo receberam ordens do patrão, através do capataz da mina para perfurar o solo por pelo mais cinco metros. Um subsolo duro e quase rochoso, recheado de pontos com pedras. O escoramento era precário e as covas apertadas. Mas ai de quem fosse embora: mesmo com fome e frio tinham que cumprir aquela meta. De repente um estrondo que ele jamais soube onde começou. Subitamente seu túnel foi invadido por uma avalanche de terra solta, que entrou como se fosse água. Antes da luz do túnel principal desaparecer, tentou sair fugindo por cima do volume de terra que crescia embaixo dele. Esforço inútil. Ficou prensado contra o teto do túnel, admirado com a força daquela terra que parecia fofa e frágil, que passou a exercer uma pressão incalculável em seu peito, como se deitasse sob um elefante, um elefante gordo. Com os braços estirados para frente ainda tentou respirar uma última lembrancinha de oxigênio, quem sabe sobrevivesse mais uns trinta preciosos segundos. Foi o minuto mais maldito de sua vida. Terra irritante sob as pálpebras. Com braços e pernas inutilizados como que fossilizados na terra, sentia-se imóvel e sólido como uma raiz de pinheiro que nunca mais se moveria. Em seu último desespero irracional, precisava respirar o que quer que fosse. Encheu irreversivelmente os pulmões de terra, engasgado, sentindo-se implodir por dentro até que a pressão caísse à zero, sentindo lentamente sumir o estado consciente. No dia seguinte, eis que surge aquele reboliço todo de imprensa com ambulâncias em busca de vítimas e centenas de curiosos. O proprietário das minas, como se nada tivesse acontecido, confirmou, afirmou e jurou que era dia de folga: que não havia vitimas lá embaixo. Imprensa e autoridades locais mantiveram essa afirmação."
Ao surgir em sua mente os detalhes daquele pesadelo, do pouco-caso da imprensa e do patrão, do desespero das filhas, dele mesmo soterrado como ossos de frango nos fundos de um restaurante, Joaquim deu meia volta. Ao retornar encontrou o ex-patrão a cochilar, apoiando a testa no cabo da marreta: afinal estava na penúltima fresta. De repente a marreta sumiu e ele despencou o rosto contra o chão, assustando-se. Lá em cima, parecia-lhe alto como um edifício, viu o rosto irado de Joaquim, que o puxou pelas orelhas, torcendo bem.
- Alto lá, vadio: estás vendo estas frestas? Não tens vergonha disso, vagabundo? Estão estreitas demais, veja isso! Como poderei enfiar uma dinamite nesse buraco de lápis?! Comece tudo de novo, mesmo que amanheças sem dormir. Quero estas frestas "dessa largura". Dizendo isso, disparou-lhe um choque com a pistola, ameaçador: dependendo do resultado, amanhã os choques serão dentro da água.
No dia seguinte e por muitos outros sucessivos, do alvorecer ao entardecer, ali estava Joaquim na sua cola, até que se enojou de seus farrapos arrependidos e foi fiscalizar outros perversos. Passou a procurar o sujeito bêbado que atropelou sua mulher e seu filho durante um "racha" na Avenida Marquês de São Vicente.
É comum encontros desse tipo e outros bastante interessantes no inferno. Entre um fã e seu antigo ídolo, entre antigos escravos e senhores, estupradores e vítimas, traficantes e mães que perderam o filho nas drogas, psiquiatras e pacientes... Recém-chegado a este paraíso invertido logo depois chegou aquele homem do cheque de vinte milhões. Levou bala no mesmo assalto onde estava a maldita Suzane, que matou os próprios pais. Mesmo assim ele deixou na terra muitos outros milhões para o filho torrar com drogas, iates e boates.
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AS SETE PRAGAS
FantasyA saga se Inicia no Brasil e termina nos confins do Universo. Após a perda do seu império, num golpe sangrento aplicado pelo seu próprio filho no planeta Inferno, expulso de seu habitat, o diabo pediu clemência ao Deus criador e recebeu a seguinte...