A vingança

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Na terceira manhã daquelas ações, Persena comunicou Dante que se ausentaria, sem maiores explicações, pois então que ficasse despreocupado com sua demora. Entrou em sua moto nave, muito semelhante a um tubarão negro com um compartimento interno, no centro da espinha dorsal, protegido por uma grossa elipse de vidro, como se alguém tivesse enfiado um ovo nas costas do bicho. Estava totalmente paramentada, como um piloto de guerra: ela também tinha um acerto de contas para fazer. Da ponta da cauda do tubarão saiu aquele risco de luz que ficou para traz, quando ela partiu, veloz como um raio: seu destino, o Bosque dos Malditos. Pouco mais de uma hora após, eis que aterrissou aos pés da árvore de cabeças do bispo Marcelle. Ao fincar o primeiro grampo para escalar a árvore, ouviu o lamento da cabeça viva, aquela que estava acordada no momento. Subiu até chegar bem perto, extremamente próximo do rosto dele: 

- Como vai, sacerdote do inferno? Parece que você gosta de queimar pessoas vivas, então agora chegou sua vez. Não é justo? 

- Quem é você, alguma nômade louca da floresta? 

Em seguida, sem cerimônia, Persena acendeu um maçarico, alimentado por oxigênio de dois cilindros que trazia nas costas, e direcionou as chamas para uma orelha do seu inimigo, até torrar, sem piedade alguma dos berros. Depois a outra orelha. Depois os olhos, até que a cabeça toda virasse carvão. Assim que essa cabeça perdeu a vida, outra despertou, então, sucessivamente a jovem foi torturando cabeça por cabeça, enquanto o corpo completo do sacerdote rolava de dor, em algum lugar do planeta, nas grutas elevadas, longe dali. 

- Onde está seu corpo, amaldiçoado? Onde?  

Então revezava as chamas com choques elétricos no nariz e na boca da cabeça do desgraçado, até que a última cabeça revelou onde estaria o corpo:  

- Nas crateras do Vale, muito ao Sul, onde estão os buracos de rato. Estou lá, condenado por mil anos naquele covil! Já não basta? Agora chega, filha, tenha piedade deste velho!  

Apenas para finalizar, Persena queimou-lhe a boca até tornar-se uma só chaga de carvão, então partiu rumo ao Vale. Conhecia aquele lugar. 

Por instinto, seguindo um urubu, eis que finalmente sua luneta avistou o gordo corpanzil do miserável, ainda trêmulo e febril com as dores, que não sabia a origem. E trajava uma espécie de camisola curta, com as canelas peludas à mostra. Persena acionou toda velocidade em direção reta com a cela até certa distância, e saltou para fora da moto nave, que ficou girando em baixa velocidade, a desenhar circunferências perfeitas enquanto ela se mantinha no ar através de jatos flutuadores que a conduziriam literalmente até as grades. Parecia um ninja dos mais habilidosos.  

Ao turbinar na direção dele, foi interrompida pela súbita chegada de um vigilante, o carcereiro Antunes - um velho de barbas brancas, sábio e famoso pacificador entre grandes conflitos mundiais. Postou-se entre os olhares dela e dele. Marcele estava aflito, apavorado, pois a memória da última cabeça lhe revelara que era a mesma moça.  

- Filha, não comprometa a integridade de sua alma com este piolho medieval que assassinou sua mãe. Ele não merece o nitrogênio de seu maçarico ou sequer o combustível gasto até aqui. Além disso, ele está sendo castigado com mil anos dentro desse orifício pouco maior que seu corpo: isso é muito mais agonizante que extinguí-lo pelas chamas, e é isso que ele deseja, pode apostar! 

Persena, até aquele momento esteve terrível, medonha, semelhante a um enorme inseto vingador, pronta para executar o inquisidor medieval da forma pior possível. O vigilante discursou por alguns minutos, até que ela, quase convencida, apontou para baixo o poderoso maçarico, enquanto o ancião estendia-lhe a mão, aguardando que ela lhe entregasse aquilo.  

Inofensiva, frágil, humilde, deixando cair as lágrimas no infinito, até então sem subir os olhos, Persena fez menção de entregar a arma para o vigilante, quando num relance captou com os olhos o sorriso cínico e debochado do bispo Marcele, por trás dos ombros de Antunes. 

Era o sorriso dos safados. O suspiro de alívio dos impunes. A empáfia dos poderosos. Subitamente ela se recordou de todo um longo filme que fora sua existência até ali. Recordou-se da mãe, totalmente imobilizada no alto de uma escada de madeira que uma dupla de carrascos foi deixando cair inclinada, passo a passo, na direção de uma enorme fogueira, de cara com o fogo, aos berros mais horríveis que ela já ouvira na vida. Lembrou-se também daquele momento na neve, quando soube que aquela mulher era sua mãe biológica.  

Rápida como um lince, Persena empurrou de lado o pobre velho e saltou na direção das grades com uma força que ninguém jamais explicaria. Os braços gordos e grossos do bispo não passavam pelas grades, não teve como se defender, esmurrar ou algo assim. A agressora feroz, com um dos dedos acionou um spider, que soltou o laço bem entre as pernas do pilantra. O spider é um dispositivo que projeta um laço de nylon grosso ou cabo de aço flexível, cujo laço sai de uma haste oculta no antebraço. Foi desenvolvido para capturar serpentes e é também usado por militares na selva para a caça de pequenos bichos ou mesmo peixes. Usando esse dispositivo ela laçou toda a genitália de Marcelle e então se pendurou naquilo até que ficasse todo para fora das grades, e da cor de uma berinjela. Agora era ela quem sorria. O sorriso insano da desforra, da justiça. Ele, apavorado, com os olhos maiores que duas batatas, de tanto pavor. 

- Que vai fazer sua psicopata? Tira essa maluca daqui! Socorro! 

- Vou fazer justiça. Sirva-se com o doce sabor da justiça, maldito! 

Então com a outra mão acionou o maçarico sobre os escrotos, sem piedade nem pressa, até torrar tudo, até virar carvão, sem desviar os olhos dos olhos dele. Antunes, perplexo, impotente diante de tanta fúria, virou o rosto para não assistir aquele suplício, parado como uma estátua sobre sua prancha flutuante. Somente ao concluir totalmente o serviço Persena então resolveu voltar para sua moto nave. Antes de partir, cochichou bem ao pé da grade:  

- Permita-me apresentar-me: sou a filha de Joana! Aquela que te odiará por toda a eternidade.

AS SETE PRAGASOnde histórias criam vida. Descubra agora