A chegada

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Alguns detalhes será importante saber: Eu e Thalia, filha de Valentina, nos conhecemos numa balada. Numa fútil balada da Rua Augusta, depois de uma meia-noite qualquer. Eu era um bom rapaz, até meio ingênuo, digamos. Aquele típico universitário paulistano bem comportado de classe média alta, aspirante a me tornar, num futuro distante, um famoso escritor ou jornalista. Ela, uma garota de origem muito pobre, filha de um pedreiro que se casara um dia com uma jovem feirante muito linda, que era a Valentina. Thalia, apenas mais uma cabecinha que entrava e saía pela ladeira da favela do Jardim Peri, bem na cabeceira de Sampa. Menina sem juízo e sapeca, mas ajudava a mãe na feira.

Segundo relatos, o pai de Thalia, com o passar do tempo, começou a trocar a pá pelo copo, num daqueles milhares de encontros de esquina com baralho, cerveja e cachaça, algo bem típico da periferia pobre brasileira. Segundo as más línguas, andava consumindo drogas, que escondia em casa para consumo próprio, mas a verdade mesmo é que o baixo padrão de vida da família foi despencando para bem próximo da miséria. Parte da grana da feira sustentava a casa, a outra parte era assiduamente depositada no caixa do boteco do Geraldo. Quando soube que outra parte do dinheiro da casa estava escoando para a boca do fumo, Valentina botou Justino para correr, ficando apenas Thalia e a mãe para sustentar a casa, dividindo aquela porção de miséria com outros dois irmãos pequenos. Escola, contas de consumo, roupa, comida, eram tantas contas que a pequena Thalia resolveu vender chiclete e lavar para-brisas na esquina da Augusta com a Oscar Freire. Depois se tornou guardadora de carros nas redondezas de um hotel de luxo. Como era uma menina muito linda e falante, permitiram desde que não andasse como uma mendiga por entre os carros de luxo.

Thalia

Thalia nunca mais viu o pai, mas com sua persistência de menina, mais a dos irmãos menores, eles conseguiram retomar um nível razoável de existência. Alguns anos mais tarde, mais mocinha e atraente, começou a despertar a atenção masculina. Inclusive de Teodomiro, o Ted, que morava num sobradão da rua de cima: um classe média metido a riquinho que gostava de exibir as melhores presas na garupa da sua moto de rodas largas.

Um vagabundão, filho de uma gerente de banco, nada mais que isso. Um dia recomendaram a Thalia que não se envolvesse com aquele playboy porque ele curtia pó branco e outras porcarias do tráfico. Deslumbrada com as baladas, Thalia não dava ouvidos. Foi numa dessas baladas que nos conhecemos e iniciamos um namoro. Aquele namoro básico, meio às escondidas, meio cheio de mistério, porque ela tinha vergonha de apresentar sua família pobre. Thalia mentiu que era filha de um desembargador, até que um dia eu descobri tudo através de sua mãe, que além de ser uma linda mulher, era digna e não suportava mentiras, então terminamos o relacionamento.

Até aqui temos um enredo típico para mais uma novela das sete.

Pois bem, decepcionada e com o moral baixo, Thalia passou então a se envolver com Ted, talvez para me fazer ciúme, mas acabou caindo no sinistro universo do tal de Ted: começou com o famoso "fuminho", depois passou para o pó, depois para o crack. Como toda família, sem exceção, onde um dos membros se envolve com drogas, Thalia começou direcionar a família para os caminhos da miséria. Dominada pela dependência química, a mocinha não admitia aquela situação: passar fome e levar tristeza para dentro de casa, jamais permitiria isso. Então ela passou a apelar para pequenos furtos junto a uma gangue de motoqueiros da Rua Augusta: Tornaram-se verdadeiras aves de rapina das calçadas, o terror das velhinhas aposentadas. Depois de um bom susto, perseguidos pelo esquadrão da R.O.T.A., Thalia se afastou do crime e resolveu voltar para a feira e ajudar a mãe. O pai, a esta altura, estava preso por tráfico de entorpecentes. Como todo dependente de drogas de baixa renda, Thalia abriu um "crediário" com os traficantes, em troca de pequenos favores, frutas de graça para os bandidos, lavava o carro de um, levava o filho de outro para a escola, diziam que até transava com um tal Pedrão em troca de uma boa pedra. O fato é que, gradativamente Thalia foi aumentando o "déficit" entre seu consumo e o seu orçamento, pois não estava mais conseguindo pagar. De porta em porta, entre uma gangue e outra de fornecedores, Thalia foi devendo cada vez mais, a ponto de não conseguir mais pagar as drogas. Certo dia as gangues resolveram se vingar e então mataram a bela Valentina, mãe de Thalia.

Diante da tragédia, Thalia resolveu se internar num programa social de recuperação e finalmente ficou livre do vício. A esta altura sua vida já estava toda confusa, mas conseguiu um emprego razoável, num shopping, para ajudar a sustentar o que sobrou da família: ela mais dois irmãos. O tempo passou, os irmãos menores foram se casando e até mesmo Thalia conheceu Carlos Henrique, estudante de Direito, com quem pretendia se casar em breve. Certo dia houve um assalto no banco do shopping e sobrou um tiro para Thalia, que despencou como uma boneca em cima dos eletrônicos, babando sangue sobre CDs e isqueiros, totalmente mortinha.

Eu próprio faleci alguns anos antes, entre as ferragens de meu carro, atingido por um idiota praticante de "racha" na Avenida Marquês de São Vicente. Sempre fui aquele rapaz correto, colaborador da TV Cultura, era inimigo profundo de falcatruas políticas, enfim, tentava ser aquele rapaz absolutamente normal e socialmente correto. Tinha uma brilhante carreira à minha espera até meu destino se cruzar com aquele casal de imbecis, filhos de juízes, a bordo de um Opala turbinado. 

AS SETE PRAGASOnde histórias criam vida. Descubra agora