tornei-me então a voltar para o lar

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933 palavras

(...) Entrei em detalhes sobre as origens da nossa vida onírica por ela ser o solo de onde, originalmente, nasce a maioria dos símbolos. Infelizmente, é difícil compreender os sonhos. Como já disse, um sonho em nada se parece com uma história contada com uma mente consciente. Na nossa vida cotidiana, refletimos sobre o que queremos dizer, escolhemos a melhor maneira de dizê-lo e tentarmos dar aos nossos comentários uma coerência lógica. Uma pessoa instruída evitará, por exemplo, o emprego de metáforas complicadas  a fim de não tornar confuso o seu ponto de vista. Mas os sonhos têm uma textura diferente. Neles se acumulam imagens que parecem contraditórias e ridículas, perde-se a noção de tempo e as coisas mais banais podem se revestir de um aspecto fascinante ou aterrador. [ Jung G, Carl; O Homem e seus Símbolos, pag. 43; editora Harper Collins.] 


O fogão de lenha estava aceso, saia da sua chaminé o cheirinho inconfundível da fumaça de feijão novinho. Corri rapidamente tão saudoso e inquietante. Que sensação maravilhosa a de estar regressando. O regressar sempre é encarado com vergonha, medo e arrependimento, mas eu o vejo como um recomeço ou quem sabe como a mais empolgante e poética continuação.

O lar.

O que deveria ser meu lar? Meu lar deveria ser qualquer lugar onde eu me sinta bem e querido? Meu lar deveria ser ao lado dos que me deram a vida? Meu lar deveria ser onde está o meu coração? Onde eu tenho vontade de estar, de voltar e me refugiar? Meu lar deveria ser aonde nasci, nos braços daqueles que me criaram ou aonde sinto pertencer?

A família.

Quem deveria ser a minha família? Aqueles que me deram a vida? Aquele a quem sinto pertencer?

Vovó costumava dizer que família é tudo que você ama e que recíproco sentimento é correspondido na mesma intenção. Vi num desenho, uma vez, que Família é nunca abandonar e nem esquecer, ouvi por aí... Será que eu fui esquecido? Eu não me esqueci, mas podem ter me esquecido como naquele filme em que esquecem o menino sozinho em casa no nata. Será que eu tenho um lar? Será que eu tenho a quem pertencer?

Mamãe sempre dizia uma frase quando estava brava: Eu não suporto mais pertencer a tudo e não caber em lugar algum. Eu me lembro que ela dizia sempre isso, eu me lembro... A arte de pertencer. Buscar pertencimento é inevitável. Por que é tão difícil se encaixar?

Questões, dúvidas, histórias.

O sol pintando entre as árvores, os aguapés boiando pelo cristalino rio  a  fluir pelo vale, os traços escaços abraçando os feixes de luz, a estrada sinuosa bordejada de árvores majestosas e a campina que florava bonita na vista. O som do capim alto e eu correndo, quase caindo, com o vento me empurrando. Paisagem composta de campos viçosos e quintas prosperas. No alto da colina, dominado  o vale, como uma joia está o celeiro vermelho da casa de Epaminondas. 
As gentis calêndulas nunca pareceram tão vivas. Minhas entranhas, vísceras e hormônios estavam florescendo pelos campos da minha expectativas. Que dia mais feliz!
As gentis calêndulas nunca pareceram belas. Minhas mãos, meus pés e meu olhos ansiavam pela oportunidade graciosa de estar novamente em casa. Que dia mais feliz! 

O ar está perfumado, cores sutis, beleza que encanta e alma branda se espanta mediante a grandeza que se é estar vivo. Ninguém acreditaria se eu contasse, mas esse é o dia mais feliz da minha vida todinha. Avistei de longe Lia e sua mãe cantando entre os lírios, próximas a uma porteira. Estavam deslumbrantes e sorrindo descontrações abanaram-me as mãos em cumprimentos singelos. 

Eu não parecia me cansar, o caminho não era longo e eu sempre amei correr por este trilho, mas agora eu corria com tanto vigor. E assim foi até botar os pés na porta da cozinha. Meu coração se acelerou quando os patos se assustaram voando para longe de mim surpresos. Eles destestavam a minha barulhada.

Bu!! — fiz os assustando mais ainda. — Seus patinhos idiotas. Sou eu, Luiz! Tão inofensivo quanto uma pulga, ou talvez menos pq não vou lhes arrancar sangue. —, gargalhei. — Vovó? Vovó sou eu!! Cheguei. — Chamei, mas tudo estava silencioso demais. Na verdade nem tudo, a panela de pressão no fogão de lenha fazia a mesma barulhada espalhafatosa que sempre era acostumada a fazer.

— Luiz menino! —, disse a vovó acertando seu broche no mesmo sobretudo azulão de sempre. — Te procurei a manhã toda. Vamos se arrume temos pouco tempo pra sair.

— Vovó! —, corri abraçando as suas pernas. Eu estava em muitas lágrimas. Que maravilhoso era poder estar abraçando a vovó de novo. Que sensação mais gostosa que eu não consigo nem mesmo descrever.

— O que aconteceu menino? —, ela se agachou para me abraçar. — Alguém fez alguma coisa com você? —, perguntou-me esboçando preocupação. — Com esse choro você me mata do coração.

— Não vovó. —, respondi desesperado com o que ela havia acabado de dizer. — Não morre não. Você é tudo que eu tenho e eu te amo tanto. —, abracei ela mais forte ainda, mas com cuidado pra não sufocar ela como a menina gigante da história que princesa Solitudine nos contou. — Eu só estava com saudades de você. Morrendo de saudades.

Ela acariciou meu rosto e meu cabelo com uma carinha de coração partido e em seguida me deu um beijinho suave na testa.

— Ah meu filho... Eu vou estar sempre ao seu lado e sempre com você até aonde eu aguentar porque eu te amo muito e você também é tudo que eu tenho. E mesmo se algum dia aconteça d'eu partir, serei imarcescível, permanecendo pra sempre contigo onde queres que fores. —, vovó também estava chorando. Mas ela gostava de ser durona e secava as lágrimas que caiam, diferente de mim que deixava as minhas secarem por conta própria.
— Vamos, vista-se de qualquer forma. Agora não dá tempo de se arrumar mais.... E também o Epaminondas já está nos esperando lá fora. —, Epaminondas buzinou sua carroça.

— Vovó eu posso ir com essa roupa mesmo? —, perguntei-lhe.

— Bom... Se vocês acha que consegue ir fedorento assim... Não me importo. Eu acho que até gosto mais de você assim, fedidinho e loquaz do que conspícuo e aromatizado. Se algum dia isso acontecer é que algo esquisito de verdade vai estar acontecendo...

— Então só me dê tempo de colher algumas flores. Quero levar flores bonitas pra mamãe e pro papai dessa vez. Flores bonitas pra colorir a casinha deles. Da última vez que os visitamos tudo estava tão cinza e as flores estavam secas. Sem cor alguma.

— Eu vou colher com você. Vamos fazer um arranjo bem bonito. Sua mãe ficaria muito orgulhosa de você. —, Vovó não conseguia parar de chorar. Hoje especialmente ela estava mais emotiva. Eu também estava.

— Eu queria ter dado todas as flores pra mamãe, assim como eu dou ora você vovó.

Fomos caminhando juntos rumo ao campos das mesmas Equináceas e Calêndulas. Não sei se meus pais gostam da combinação de lilás e alaranjado, mas com certeza vai ficar muito bonito sobre seus túmulos e tudo que eu quero é sentí-los sorrir dentro de mim.

A Ursa e o LoboOnde histórias criam vida. Descubra agora