como num passe de mágica

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Estávamos ainda perambulando como andarilhos, entre os pedregulhos e avencas, despencando, quando sem mais nem menos Yuka, que ia andando meio maltrapilho, logo a frente desapareceu na vista. Corri nas minhas quatro patinhas, buscando meio de encontrá-lo em paradeiro, mas acontece é que o coitado havia caído num buraco.

— Como foi que cê foi cair aí? — Dei uma gralhada olhando o coitado todo moribundo atirado meio sem jeito naquela fosse, que na verdade nem era tão funda. — Como que não vê um buraco desse tamanho, hein amigo?

— Não vi, porque estava tampado de folhas e matinhos. Forraram pra pegar o bobo e eu caí nessa. É coisa de Saci, que eu sei bem.

— E num consegue escalar, não? — Perguntei já suspeitando de que ele não ia conseguir.

Nem esperei a resposta, corri em busca de um cipó, e como agora não tinha mãos e nem polegar opositor, usei a a boca, quer dizer, os dentes. Dentes que não eram mais quadrados, mas sim afunilados, mas não como funis , como fincos, que vertem-se para baixo, tendenciosos e afiados. O cipó estava bastante enroscado, tanto que tive que puxar bem, até cerrar os dentes, impulsionando pra trás o traseiro, empinando-o enquanto forçava os meus antigos joelhos, talvez ainda sejam joelhos... uma dorzinha sem graça no calcanhar, talvez seja minha fraqueza, hoje penso em Aquiles, mas no dia havia esquecido e metade era força pra arrancar o cipó na força do ódio e a outra metade era força pra lembrar dele, o mito: Aquiles. E depois, com muito esforço, lá estava ele de fora da cova, empareado de mim, a resfolegar cansando como quem passa pela agonia da desistência e precisa rapidamente amadurecer pra encarar a verdade. E do mesmo jeito que estávamos fitamos de longe uma pequena cabana escondida mínima no meio de uns arbustos, que não eram páreos para disfarçá-la.

Talvez aquela fosse uma daquelas tardes fresquinhas do meio de maio, em que o sereno caía cheiroso, perfumado e neste caso era perfumado pela existência de um canteiro de jacintos, que dispostos belamente enfeitavam o jardim que se dispunha na frente da cabana, protegendo-a num abraço fraterno, silencioso e florido. Examinávamos desolados, encucados, temendo invadir, mas com uma baita vontade que não cabia no peito e naquele momento voltava a ser menino e justamente recolhia-me na minha idade, que por ironia era pouco e... ah, como imaginava! depois virava lobinho de novo e recuava em uma tentativa de retaguarda, mas não era nada mais que receio, de fato. O silêncio nos vigiava, inquieto, audível. E quando levo para os olhos o céu, via-os anoitecidos, e outro? anoitecendo. Os jacintos cada vez mais brancos na escuridão, paralisados se espiavam. 

— Sabe quem mora aí? — Perguntei hipnotizado. Dos jacintos eu não podia os olhos tirar. Nem se quisesse. Eles me tinham e os meus olhos, ainda que fantasiosamente, os tinha. 

Não sabíamos de muito coisa, estávamos esquecidos e só se podia dizer que tínhamos conhecimento da situação. Que existia aquela possível noite de maio, no interior do bosque, cada planta úmida, cada seixo, os sapos roucos aproveitando aquela túrgida confusão e que toda aproximação era muda e por assim ser, era o silêncio quem nos observava. Era ele, incumbido nos olhos, digo, nas pétalas daqueles jacintos. Entreolhamo-nos naquele estado de vigilância, despidos, e nossos rostos de lobo se apequenaram ainda mais, e senti o medo da infância me tocando suavemente, como só as mãos de uma criança ainda pura e ingênua pode o cacto tocar, sem imaginar que aquela pequenina coisinha, tão estranha e bonita, possa feri-la. Suspiramos densos, catapultados a um cataclismo fantasma, que não era nada se não a ansiedade de estarmos tão próximos de algo que nunca vimos: primeiro, fascinados, melhor, maravilhados; segundo que estranhamos tudo aquilo que não conhecemos, é primitivo e inato; terceiro e último, havia uma vontade. Credo! Me arrepio só de saber o que teria nos acontecido se tivéssemos sido corajosos os suficiente. Se por um impulso de valentia nós ousássemos e então não seríamos tão filhotes, mas adultos e então teríamos uma história pra contar, mas recuávamos. Não nos pés, porque permanecemos parados, ainda maravilhados, quase catatônicos. Recuávamos no olhar. Ainda me pergunto por que. Imagino que tínhamos medo de encarar a certeza de que tínhamos medo. Tínhamos medo de olhar os nossos próprios medos. 

A Ursa e o LoboOnde histórias criam vida. Descubra agora